Centeno, um nome para a História. O tecnocrata que fez o que parecia impossível

09 jun, 2020 - 15:39 • João Carlos Malta

Saiu do Banco de Portugal para o Governo com a aura de competência técnica. Valeu-se da arma que dispunha e fez-se político. Pelo meio, conseguiu o que ninguém tinha alcançado em democracia: um excedente orçamental. Os críticos argumentam que apenas surfou uma onda de crescimento europeu e que o difícil era não ter bons resultados. Mesmo assim, poder-se-à contra-argumentar que em circunstâncias parecidas, no passado, outros não o conseguiram. Apesar das discordâncias, que sempre vão existir, Mário Centeno inevitavelmente é um nome para a posteridade.

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É um número pequeno, apenas 0,2%, mas é um valor que catapulta um homem, neste caso um ministro das Finanças, para a História. Mário Centeno constará dos livros como primeiro político a atingir, em democracia, o desígnio de alcançar um excedente orçamental. Parecia uma miríade inalcançável até para os “otimistas irritantes”.

Aconteceu em 2019. Os factos são os factos, mas depois as interpretações são mais do que muitas, e dividem-se. Se para uns é resultado de capacidades fantásticas que lhe valeram o epíteto de “Ronaldo das Finanças”, para outros será obra do “Senhor Cativações” que apenas soube como surfar a onda positiva que se viveu na Europa pós-austeridade.

Mas vamos à jóia da coroa do legado de Centeno e aos mágicos 0,2%. Portugal teve um excedente folgado de 403,9 milhões de euros em 2019, ou seja, um superavit de 0,2% do PIB. E se não fosse ter de contabilizar a condenação do Estado em tribunal no processo da Douro Litoral, o excedente teria sido ainda maior, de 0,3%.

A última vez que tal tinha acontecido fora em 1973, quando Portugal teve um excedente de 5.769 milhões de escudos, cerca de 1,7% do PIB. Nessa altura, muito à custa do “imposto extraordinário para a defesa e valorização do Ultramar”.

Ainda na senda dos números, e na pesada herança que se dá pelo nome de dívida, podemos ver que o ministro Centeno reduziu o seu volume em quase 15 pontos percentuais, dos 132,9% do PIB, em 2016, para os 117,7% do PIB, no ano passado. Ainda assim será um peso que continuará a onerar os próximos anos.

A tríade de sucessos financeiros fecha-se com a saída de Portugal do procedimento por défice excessivo, em junho de 2017, e com a subida o rating da República, poucos meses depois. Em setembro daquela ano, a S&P torna-se a primeira das três principais agências de rating a melhorar a notação financeira. Em dezembro foi a vez da Fitch seguir-lhe os passos. Ao mesmo tempo, os juros portugueses continuavam a cair.

Apesar de todos os feitos, muitos lhe apontam agora as fragilidades. Os argumentos invariavelmente são os de que Centeno aproveitou a maré favorável para navegar em águas seguras e governar para os números, e que mal a conjuntura virou com o impacto do coronavírus − e as previsões apontam para uma recessão sem precedentes de 6,8% − bate com a porta com estrondo para salvaguardar o legado e o marco que atingiu.

E do não-político se fez um hábil ministro

O ano de 2017 é extraordinário para o titular da pasta das Finanças. Os sucessos começam a valer-lhe as comparações com Cristiano Ronaldo. Para comissário europeu Pierre Moscovici era o “Ronaldo da economia portuguesa”, e para o ministro alemão das Finanças Wolfgang Schäuble era o “Ronaldo das finanças”.

Há cinco anos − e depois de ter entrado para o executivo de Costa à boleia do grupo de peritos que escreveram o programa macroeconómico do futuro Governo socialista − Mário Centeno não fazia equivaler as suas qualidades técnicas aos dotes políticos, o que lhe valeu ouvir do líder da bancada socialista no Parlamento, Carlos César, que não o escolheria para orador num comício.

Na altura, a resposta de Centeno mostrou a antecâmara daquilo em que a tarimba executiva o transformou: um político de alma e corpo. À época disse: “O exercício da governação não é um comício”.

O maior peso político de Mário Centeno foi, numa primeira fase, adquirido pela conjuntura: o PS precisava de uma figura que lhe desse a credibilidade necessária para que o país esquecesse a imagem de desgoverno do reinado Sócrates, em que Portugal soçobrou às mãos da troika. O ex-quadro do Banco de Portugal teve aí uma função inexcedível, a de mostrar que os socialistas sabiam ter contas certas. Mas foram os resultados, e os sucessivos sucessos, que lhe deram mais confiança e mais poder dentro do Governo.

Sempre acima das previsões, um “toque de Midas”?

Os números de “Super Mário” foram sempre melhores do que as previsões. O Orçamento de 2016 previa um défice de 2,2% e, afinal, foi de apenas 1,9%.

No ano seguinte, previa 1,6% e o défice foi de 0,9%. Em 2019, os deputados aprovaram um Orçamento com uma previsão de défice de 1%, e no final do ano foi de apenas 0,4%. E o resultado só não foi melhor porque o Novo Banco não ajudou, com a sua recapitalização a ser uma sombra que Centeno carregou todo o tempo que esteve no Terreiro do Paço.

Na última e recente polémica em que esteve envolvido com aquela instituição bancária, no momento em que foram injetados mais 850 milhões para a recapitalização, o ministro soltou: “Foi a mais desastrosa resolução bancária alguma vez feita na Europa”.

Finalmente, no ano passado, Centeno previa um défice de 0,1% e, afinal, eis que o país teve um excedente de 0,2%.

A mão de Centeno estava em tudo o que mexia no Governo, e acreditava-se quase num “toque de Midas”. Isso valeu-lhe um índice de popularidade entre os portugueses que rivalizava com o do próprio primeiro-ministro, António Costa, e do super-popular Marcelo Rebelo de Sousa. Um feito inaudito para a figura de ministro das Finanças, a quem cabe normalmente o papel de mal-amado do Governo.

Tudo isto, convém lembrar, foi feito sendo Centeno membro de um Governo apoiado por comunistas e bloquistas, para quem os números do défice e da dívida não eram vistos como uma prioridade. A isto acresce ainda que foi conseguido numa fase em que Governo apostou e fez bandeira da devolução e recuperação dos rendimentos dos portugueses.

Mas se para muitos se começou a criar uma certa ideia de mito à volta de um homem que conseguiu nas finanças públicas o que se pensou ser inalcançável, para outros Mário Centeno não era mais do que a figura de proa da austeridade que não se assumia no discurso mas que era vertida no papel do orçamento em forma de cativações.

De cativação em cativação

E se Mário Centeno tem números que o põem no Olimpo dos ministros das Finanças, tem outros que lhe valeram críticas de vários quadrantes. De acordo com os dados da Conta Geral do Estado de 2016, dos 1.733,5 milhões de euros de cativos iniciais, aos quais se juntaram 12,7 milhões adicionais, ficaram por gastar 942,7 milhões, o correspondente a 54% do valor inicialmente cativado.

No segundo ano da legislatura, que começou com 1.451,5 milhões de euros cativos, a percentagem que Mário Centeno deixou sem saírem dos cofres baixou para 29%, num total de 425,3 milhões de euros.

Também em 2018, o valor que se manteve 'congelado' ascendeu a cerca de 30% do total de cativações feitas nesse ano (1.110,4 milhões de euros), a que correspondem 330,3 milhões de euros.

Nesses três anos, a soma chega a 1.698,3 milhões de euros. O tema das cativações persegui-o ao longo dos anos, e motivou críticas a Mário Centeno durante toda legislatura passada, e nos meses deste segundo período de governação socialista.

O caso mereceu o reparo da então presidente do Conselho de Finanças Públicas, em novembro de 2018. Teodora Cardoso afirmou no parlamento que só em 2016 houve um "excedente" em termos de cativações, um nível "muito acima do normal", o que fez com que a partir desse ano o tema entrasse na ordem do dia, porque "até aí ninguém tinha dado por elas".

Segundo referiu na altura a economista, "as cativações são necessárias, ou pelo menos são convenientes, no atual sistema de enquadramento orçamental porque no fundo são a maneira de o Ministério das Finanças poder gerir despesas sem ter que andar a aprovar novas medidas".

Mas as reações mais virulentas e mais fortes vieram das alegadas cativações no setor da Saúde, que deixavam o SNS depauperado. Em junho do ano passado, Mário Centeno responde às críticas rejeitando-as: “Não há cativações no Serviço Nacional de Saúde [SNS]. As únicas cativações que existem no Ministério da Saúde são cativações em áreas administrativas que não estão associadas ao SNS. E são cativações como existem em todos os ministérios”.

O princípio do fim

Centeno parecia o todo poderoso do Terreiro do Paço, e uma figura indestrutível dentro do Governo. Mas também nesta dimensão, o que parecia difícil acontecer tornou-se realidade. O ministro das Finanças foi perdendo força sucessivamente, sendo que nos últimos meses a sua demissão e substituição eram quase tema semanal.

Haverá um conjunto de razões que justificam o "divórcio" entre o primeiro-ministro, António Costa, e o titular das Finanças. Mas uma foi mais pública do que as outras. Esse marco foi o da candidatura para a liderança do FMI. Estávamos em Julho, já na pré-corrida para as eleições legislativas, e o anúncio mereceu uma reação do primeiro-ministro que foi uma mistura de desvalorização com desilusão.

Costa disse que a “hipótese” devia ser considerada, “mas não é objetivo” que tenha sido fixado, nem pelo Governo, nem por Mário Centeno. “A hipótese que surgiu e que está em cima de mesa é uma hipótese não podemos deixar de considerar, mas não é objetivo”, disse, acrescentando que “neste momento é prematuro estar a fazer juízos de probabilidade” sobre tal cenário.

A tensão pré-legislativas passa para o início da legislatura. Centeno vai-se apagando, e emerge da Horta Seca, o ministro Siza Vieira como novo número dois do executivo socialista. O titular das Finanças nunca pareceu muito conformado com esse papel. Cada pequeno, médio ou grande episódio serve para o queimar em lume-brando. Mas o ministro das Finanças foi deixando também vários sinais de mal-estar.

Mário Centeno: nas bocas do mundo e no coração de Giões
Mário Centeno: nas bocas do mundo e no coração de Giões

No início de setembro do ano passado, numa entrevista à SIC, António Costa diz que "cada um é livre de decidir o seu destino”. Mas acrescentou uma novidade, ao reconhecer que Centeno queria ficar: “Quando ele diz que quer continuar a ser presidente do Eurogrupo, sabendo que para ser presidente do Eurogrupo tem de ser membro do Governo, creio que é a melhor resposta, respeitando os portugueses, que pode ser dada”.

Eurogrupo com alguns amargos de boca

A baliza do mandato Eurogrupo foi respeitada, Centeno sairá, como hoje anunciou, a 13 de Julho o mandato que começou no final de 2017, e que nos bastidores se assumia há muito que não seria renovado.

Apesar dos elogios, o “Ronaldo das Finanças” não conseguiu facilitar o acordo para que existisse um orçamento comum: a constituição de um mecanismo para promover a convergência, competitividade e para estabilizar a Zona Euro. Um conjunto de países do Norte opõe-se sobretudo à função estabilizadora em situações de crise por pressupor a possibilidade de transferências.

Também na passagem por Bruxelas houve tempo para uma polémica. O momento foi o da oficialização da saída da Grécia do programa da troika. Centeno fez questão de o assinalar com um vídeo, em que a mensagem foi vastamente criticada internamente.

"O programa de resgate [da Grécia] chegou ao fim depois de um caminho longo e sinuoso, a partir do qual todos aprendemos lições. Mas agora isso é história", disse Centeno.

Quem não gostou desta versão dos acontecimentos foi o agora secretário de Estado da Energia, João Galamba, que não perdoou. "Um vídeo lamentável que apaga o desastre que foi o programa de ajustamento grego e branqueia todo o comportamento das instituições europeias".

Covid-19, o vírus do desaparecimento

Se o desgaste era evidente, a pandemia trouxe um Centeno cada vez mais apagado na comunicação do Governo. Não tomou o leme da ação política, primeiro na resposta ao embate da crise que se abateu no sobre o país, e depois, num segundo momento, no desenho das medidas que vão levar Portugal a recuperar do impacto do Covid-19.

Pelo meio, ainda estourou a polémica da recapitalização do Novo Banco com a tranche de 850 milhões a chegar ao banco que resultou da resolução do BES, sem que fossem conhecidos os resultados da auditoria.

Costa disse ter sido apanhado de surpresa, Centeno respondeu que não havia nada de novo uma vez que a verba estava prevista no orçamento aprovado no Conselho de Ministros. Houve ainda a célebre ida à Autoeuropa, em que o Presidente da República se uniu a Costa nas críticas ao ministro das Finanças. O mal-estar já não era só tácito, era público.

Houve ameaças de demissão pelos jornais, mas uma reunião à 25.ª hora, deu mais uns dias a Centeno à frente do ministério. Nesse período, em entrevista à Antena 1, e sobre o dossier Costa e Silva − homem escolhido pelo primeiro-ministro para desenvolver o programa de relançamento da economia no pós-Covid-19 − disse que nunca tinha reunido com o líder da Partex, nem sequer o conhecia.

Os sinais eram evidentes, Centeno se já estava há muito com um pé fora do Governo, agora tinha os dois. A concretização aconteceu esta terça-feira com o pedido oficial de demissão, depois de aprovada a proposta de Orçamento Suplementar, em Conselho de Ministros.

O futuro é ainda uma incógnita, mas há bem pouco tempo Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, lançou-o para o cargo. Se será esse o destino, ou se avançará para o ambicionado lugar internacional, é uma história que se vai escrever nos próximos meses.

Comentários
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  • Petervlg
    09 jun, 2020 Trofa 17:44
    Sejam sérios, agora que se ia ver a valência do "CR7 das finanças", foge.

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