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Pandemia da pobreza

Pedidos de comida triplicam em Loures e há quem vá buscá-la da Amadora a Lisboa

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Pedidos de comida triplicam em Loures e há quem vá buscá-la da Amadora a Lisboa

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02 jun, 2020 - 08:00 • Joana Bourgard (fotografias e texto)

Apenas Lisboa regista mais novos casos de Covid-19 do que Loures e Amadora, mas enquanto a capital assegura refeições à maioria dos pedidos, nos subúrbios os cabazes alimentares não chegam para todos. "Os contágios de Covid-19 no concelho de Loures têm muito a ver com a pobreza", reconhece o pároco do Catujal.

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A meia hora do início da distribuição dos cabazes alimentares na Igreja do Catujal, em Loures, dezenas de pessoas aguardam pela abertura da porta. Quem chega por último tem de procurar a última pessoa na fila e fixar a sua vez. A temperatura ao sol é de 34ºC e são poucas as sombras junto à moderna Igreja São José da Nazaré.

A azáfama é grande dentro do edifício, onde os poucos voluntários se distribuem por várias tarefas. Há alimentos para preparar e novos pedidos de apoio à espera. Dezenas de pessoas chegam pela primeira vez para pedir alimentos, uma tarefa complicada pela necessidade de fazer o registo formal de cada pedido.

Quem está à frente de toda a distribuição de alimentos é o Pe. Mário Faria Silva que, além de ser o pároco da igreja, é técnico social e o único apto a fazer as avaliações dos pedidos.

"Não queremos entregar os alimentos por entregar. Fazemos sempre a aproximação de diagnóstico. Para além dos cabazes, as pessoas podem estar em situação de receber o rendimento mínimo ou pensões de sobrevivência. Nós não entregamos alimentos, em princípio, sem aproximação de diagnóstico e, além de não haver tempo para tudo, não temos espaço nem voluntários", desabafa o pároco.

Até ao início da pandemia, a paróquia distribuía cabazes a 50 famílias, num total de 150 pessoas. Em pouco mais de dois meses, os pedidos mais do que triplicaram.

Na passada quinta-feira, dia semanal da distribuição de cabazes, mais de 152 famílias foram buscar alimentos, num total de 485 pessoas. A Renascença sabe que, desde a última distribuição, a paróquia já recebeu dezenas de novos pedidos, mas ainda não os tem contabilizados.

Empregadas de limpeza e trabalhadores de montagem de eventos

Além dos imigrantes irregulares, que deixaram de conseguir rendimento com "biscates", o pároco do Catujal alerta para "um outro grupo, que são as pessoas da limpeza.

Habitualmente, são senhoras que agora não têm trabalho nem ‘lay-off’, sem contratos consistentes e em situação de grande precariedade. Antes, não eram beneficiárias."

Trabalhadores de feiras, de montagem de eventos, palcos e sistema de som, "também à base do biscate", são outros grupos que pedem apoio alimentar. A paróquia chegou a dar cabazes de alimentos a um dentista que neste momento já não precisa de apoio.

No grupo de 12 voluntários a trabalhar na distribuição de cabazes está Belmiro Barros, um jovem de 23 anos, natural da Guiné-Bissau, empregado de um restaurante de chef na Baixa de Lisboa e atualmente em regime de ‘lay-off’. Há 10 anos, quando a família de Belmiro chegou a Portugal, foi uma das que foi apoiada pela igreja do Catujal.

"Hoje já tenho a oportunidade de estar aqui para ajudar e não para receber, mas no início foi um bocadinho difícil e precisámos de muita ajuda. Usufruímos do cabaz da igreja para ajudar com as coisas lá em casa. Os meus pais trabalhavam, mas mesmo assim não dava para tudo: a renda, a alimentação e tudo o resto", explica Belmiro.

"Infelizmente, conheço muitas pessoas a viver em situações más e, por causa do que vivi, acabo por perceber um bocadinho mais o que estão a passar e disponibilizo-me para ajudar e ir contra esta situação, que não é boa", reconhece.

A viver num dos bairros junto à igreja, Belmiro convive com famílias que a pandemia atirou para o desemprego, desencadeando situações de grande vulnerabilidade e exclusão social.

Voluntário há sete anos, o jovem especialista em gestão hoteleira fica assustado com o aumento dos pedidos que todas as semanas chegam à paróquia. Antes da pandemia, o grupo de voluntários distribuía os cabazes em algumas horas. Agora, ficam pelo menos até às 20h00 e várias vezes têm de voltar ao armazém para dar alguns alimentos extra a algumas famílias.

"A ideia é que os alimentos durem para toda a semana, mas há casos em que as pessoas telefonam para virem buscar mais alimentos, algo que antes da pandemia não acontecia, porque encontravam sempre forma de se desenrascar", diz o Pe. Mário, que elogia o trabalho dos voluntários. "Isto é muito duro e também perigoso, porque a Covid-19 aqui nesta zona não nos deixa."

Nos últimos sete dias, Loures foi o concelho que registou mais casos de Covid-19, com 238 novas infeções. Um aumento que o pároco atribui à situação de pobreza em que vivem muitos habitantes do município. Reconhece que não é possível ter um grande nível de preocupação com o vírus quando há sobrelotação nas casas, com poucas condições de habitabilidade.

Há vários anos que Cristina e Paulo participam nas campanhas de recolha de alimentos nos supermercados para o Banco Alimentar (BA). A pandemia atirou o casal para um ‘lay-off’ que optou por usar o tempo livre para dar apoio na paróquia.

"Eu sabia que havia pessoas com alguma dificuldade porque é um bairro numa zona menos nobre da região de Lisboa, mas nunca pensei que fossem tantas famílias." Cristina sente-se "impressionada" com a evolução dos pedidos desde março.

Paulo é um dos responsáveis por ir buscar alimentos ao BA e mostra preocupação com o futuro do apoio alimentar. "Vou ao BA buscar os alimentos, com a equipa da junta de freguesia, e já houve algumas situações onde o cabaz era fraco e isso é alarmante. O próprio BA começa a não ter capacidade de sustentar tantas instituições."

Da Amadora até Lisboa para conseguir uma refeição

Fundadora da Refood de Alfragide, a primeira Refood fora de Lisboa, Carla Gonçalves começou a receber novos pedidos de apoio alimentar "logo na primeira semana de estado de emergência".

"Tenho inúmeros contactos telefónicos por dia. Algumas pessoas identificam-se como sendo de Alfragide, outras não. Referem que estão a passar fome, que não têm apoio ou estão em fila de espera", conta.

Fundada na sequência da crise de 2012, a Refood de Alfragide veio dar resposta às necessidades do subúrbio de Lisboa que concentra um número elevado de bairros sociais. O número de pedidos registado durante a crise gerada pela pandemia ultrapassa em muito os pedidos de 2012.

Carla vive em Alfragide, mas é assistente social na Câmara de Lisboa e reconhece que na capital existe uma melhor sinergia entre as instituições do Estado e privados, de forma a dar apoio alimentar ao máximo de pessoas possível.

Na Amadora, existem várias famílias à procura de apoio alimentar, ao ponto de se deslocarem até Lisboa para conseguirem uma refeição oferecida.

Neste momento, o apoio alimentar no concelho da Amadora chega através de várias instituições, como o Moinho da Juventude, a paróquia de Alfragide, a CooperActiva e a Academia do Johnson.

A viver uma mudança de paradigma, as duas Refood da Amadora encontram-se fechadas. Fundada em Portugal pelo Hunter Halder, a Refood assume a missão do combate ao desperdício alimentar. Os donativos aos 7.000 beneficiários vinham sobretudo da restauração e de cantinas, um paradigma profundamente alterado durante a pandemia.

Ao todo, as Refood da Amadora e Falagueira apoiam 210 pessoas. Desde meados de março, além de terem perdido grande parte dos voluntários, deixaram de poder contar com o excedente de alimentos dos restaurantes e cantinas.

Carla explica que a Refood continua com a missão do combate ao desperdício alimentar, mas noutra perspectiva. "Havendo desperdício de comida, nós recolhemos. Mas a partir de agora esperamos contar com os desperdícios dos grandes supermercados e das frutarias e comercio local".

Carla reconhece que a reabertura da instituição vai depender da forma como a sociedade se adaptar a viver em pandemia. "Enquanto se mantiverem as escolas fechadas e as pessoas em teletrabalho, as cantinas não vão estar a funcionar e teremos seguramente muito menos refeições, mas assim que começar a haver oferta de refeições, gostaríamos de regressar."

Quando questionada sobre a forma como a população em geral pode contribuir para a procura de alimentos, Carla diz que "o mais importante é as pessoas contribuírem para o Banco Alimentar".

"É a instituição mãe que está a tentar dar resposta a todo um país que está em situação muito difícil", sustenta. "Outra possibilidade é cada um contribuir com as paróquias e entidades locais que estão a dar apoio neste momento."

Segundo a presidente da Federação de Bancos Alimentares, são mais de 430 mil as pessoas apoiadas pela instituição neste momento. Perto de 58 mil chegaram com o confinamento imposto pelo novo coronavírus.

“Já recebemos mais de 15.900 pedidos, que correspondem a cerca de 58 mil pessoas, que vêm acrescer àquelas que já recebiam o apoio alimentar”, afirmou Isabel Jonet à Renascença a 21 de maio. As contribuições podem ser feitas através do site do BA.

O concelho da Amadora é o terceiro com mais casos de Covid-19 registados na última semana. Ao todo, 198 pessoas deram positivo no teste do novo coronavírus.

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  • CZA da SSVP
    04 jun, 2020 Amadora 17:43
    No passado dia 2 foi publicada uma reportagem "Da Amadora até Lisboa para conseguir uma refeição" na qual mencionava o nome das instituições no concelho da Amadora que davam apoio alimentar. Lamentamos imenso que sejam publicadas informações incorretas, sem serem atempadamente analisadas. No Concelho da Amadora está no terreno a Sociedade de S. Vicente de Paulo, que através das suas "Conferências Vicentinas" que neste Concelho são seis, apoiam cerca de 1500 Famílias, ultrapassando as 4400 pessoas.

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