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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

A solução não é o teletrabalho, é sair às cinco

29 mai, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


Por desejo ou por inércia, os portugueses acabam por almoçar com os colegas de trabalho em vez de jantarem com os filhos. É isto moralmente sustentável no pós-covid?

O teletrabalho tem sido apresentado como a panaceia que resolverá a tensão entre o trabalho e a vida familiar. Lamento, mas o teletrabalho não é uma utopia, é uma distopia ainda mais individualista por várias razões. Em primeiro lugar, permite o abuso das chefias; o fluxo de trabalho não tem fim, porque não há respeito pelo horário de trabalho. Ou seja, o teletrabalho reforça a perversão que o telemóvel já tinha introduzido: o desprezo pela fronteira entre o tempo do trabalho e o tempo da família; é sempre tempo de trabalho, porque o funcionário está sempre do outro lado do mail.

Em segundo lugar, o teletrabalho permite a desumanização das relações. É difícil despedir uma pessoa que se conhece cara a cara (e deve ser difícil). Não é difícil despedir uma pessoa que não se conhece, uma pessoa que não passa de um avatar do zoom ou do webex, uma pessoa que é só um endereço de mail. Em terceiro lugar, não se cria um espírito de corpo à distância. Uma empresa é um corpo social, não é um mero agregado de indivíduos. Grandes ou pequenas, as empresas que perduram têm um sentimento de pertença que se cria no contacto diário e pessoal. São pequenos exércitos, são colectivos, são mais do que a soma das suas partes. Em quarto lugar, ir para o trabalho e voltar para a casa do trabalho são rituais que arrumam a nossa cabeça; a viagem até ao trabalho desinfecta a mente das questões caseiras, preparando-a para o trabalho. A viagem de regresso faz o processo inferno. Porque é que acham que há espaços de co-work para pessoas que poderiam perfeitamente trabalhar em casa?

Não, o desejado equilíbrio entre trabalho e família não vai ser feito com o teletrabalho. A solução, a meu ver, continua a ser a mesma. Era assim antes do covid, é assim depois do covid: a solução passa por sairmos do trabalho às quatro ou cinco, e não às seis, sete ou mesmo oito. O longo almoço dos portugueses, quase sempre entre as 13h e as 14h, é uma aberração que torna impossível um regresso a casa em tempo familiarmente útil. Se saímos às 18, 19 ou 20h, não temos tempo para estarmos com os filhos, que crescem sozinhos, e, já agora, também não temos tempo para vermos os nossos pais, que envelhecem sozinhos.

O longo repasto reforça assim uma ideia muito típica do chefe português: o bom funcionário tem de ficar até às seis, sete ou oito, pois caso contrário é censurado. É o exacto oposto do que se passa na Alemanha, por exemplo, país onde o funcionário é censurado precisamente se ficar a trabalhar até tarde. Se não faz o seu trabalho até às quatro ou cinco, o funcionário não está a ser produtivo para a empresa e, acima de tudo, não está a ser amigo da sua família.

Espero, portanto, que estes meses de teletrabalho questionem pelo menos esta cultura presencial e sacrificial das empresas portuguesas. Se organizarmos o trabalho de forma a sairmos às cinco, seremos mais produtivos no escritório e seremos sobretudo melhores pais em casa - uma utopia, eu sei. Mudar um hábito tão enraizado como o almocinho é talvez impossível. Mas a incapacidade para mudarmos deixa-nos neste cenário embaraçoso: por desejo ou por inércia, os portugueses acabam por almoçar com os colegas de trabalho em vez de jantarem com os filhos. É isto moralmente sustentável no pós-covid?

Comentários
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  • Tiago
    03 jun, 2020 Lisboa 01:02
    O teletrabalho é uma excelente opção...para todos! Poupa recursos à empresa mas também ao trabalhador. O tempo perdido em deslocações diárias permite precisamente ganhar tempo adicional para dedicar à familia. Estar em casa permite igualmente almoçar num instante e ainda aproveitar para fazer uma soneca de 20 minutos (e mesmo assim não se gastam mais de 45 minutos). O longo repasto vem na consequência da mentalidade retrograda e de total falta de visão, competência e integridade das chefias, as quais consideram que um trabalhador apenas é eficaz se ficar até mais tarde. Esse sim é o problema. Por outro lado, o facto de fazer teletrabalho em nada muda (para melhor ou pior) a questão da fronteira entre o trabalho e o lazer, pois será sempre uma questão de princípio. Eu, no meu caso, não abdico dele. Quando saio do trabalho...acabou mesmo!
  • João Lopes
    02 jun, 2020 Viseu 11:25
    Artigo interessante!
  • Manuela
    31 mai, 2020 Lisboa 08:03
    Eu gostei deste texto! tem tudo o que era preciso ser dito! As pessoas têm todo o direito de escolher se querem trabalhar a partir de casa pela Net! podem até ganhar mais, se trabalharem para duas empresas ao mesmo tempo, ninguém impede! trabalham umas horas aqui e outras acolá! a informática dá, se a pessoa for interessada no que faz! e podem ter os filhos em casa até a hora do almoço, é bom para a mãe saber que os filhos comeram como é devido! Estar numa empresa preocupada com o almoço dos filhos no infantário, é um grande problema! mas cada um sabe de si! Procurem o que lhes der mais jeito! é preciso é que se sintam felizes! Os que não percebem de informática, que trabalham em empresas, deste modo, também ficam beneficiados, porque encontram mais empregos livres! Obrigada, Henrique Raposo, Bem Haja, pela sua prosa sempre de grande valor!
  • Paulo Freitas
    30 mai, 2020 Madeira 13:58
    Boas. Não costumo comentar artigos do género, mas o seu merece. Parabéns pela visão. Infelizmente o patronato continua a achar que trabalhar de segunda a domingo é que é, e pagar ordenado mínimo então nem se fala. Devemos mudar de fato a visão que já vem do tempo da monarquia em que a plebe matava-se a trabalhar e a nobreza gozava os seus repastos. Oxalá um dia voltemos a centrar as atenções naquilo que é preciso. Este virus veio a recordar que não somos invencíveis. Pelo contrário, somos tão frágeis. Não deixa de ser caricato que aqueles que carregam os seus trabalhadores mal remunerados e muitos vezes explorados psicologicamente. São os primeiros a gritarem por socorro, pois deixaram de ter verba para sustentar os seus luxos. E depois é vê-los regatear míseros euros de aumento no ordenado mínimo, muitas vezes fazendo depender o mesmo de uma baixa da TSU. Que este 2020 abra as mentes de trabalhadores e empregadores. Oxalá um dia possamos ter esse horário que sugere, ir ao supermercado durante a semana e ao sábado de manhã, e os domingos serem de descanso para a família pois esta ultimamente tem sido quem sofre com esta escravidão de que padece a sociedade moderna. Não há muitos anos, os feriados eram sinónimo de alegria para as famílias que reuniam-se. Parabéns pela sua visão. Quem sabe se uma instituição sob a tutela da Igreja como é a RR não seja das primeiras a implementar esse regime, e continue a promover o teletrabalho aqueles em que tal seja possível. Saúde a todos
  • Nuno Bejinha
    30 mai, 2020 Santiago do Cacém 10:58
    E será que na Alemanha não almoçam? Ou será que se calhar trabalham menos de 40h semanais? Muita da função pública sai do trabalho às 16h30. E com o tal almocinho! O que há em Portugal é muita desigualdade, normalmente a castigar quem trabalha no setor privado.
  • Fernando
    30 mai, 2020 Lisboa 04:32
    Bem... Lamento, mas não é assim, pelo menos no meu caso. Isso de que no teletrabalho se confunde os períodos de lazer é apenas fruto de má gestão pessoal do tempo. Quanto à permissão do abuso das chefias, é realmente a falta de saber dizer não. Despedir as pessoas e contratá-las deve continuar a ser feito ou pessoalmente ou via teleconferência. Mesmo assim, é comum despedir-se pessoas que não se conhece, que o digam os trabalhadores de multinacionais despedidos por elementos de RHs localizados noutro País. Tenho pena que sinta isso. É sinal que tem pouca noção das coisas que se podem fazer em regime de teletrabalho. Eu trabalho nesse regime desde 2014 e sempre primei pelo limite bem definido do meu tempo. Digo mais: quando trabalho em escritórios até é mais fácil ficar "até mais tarde" com a malta lá.. seja por reuniões, seja por convívios ao ginal do dia. Em casa isto não acontece. Eu não deixo. Ponto.
  • Maria Silva
    29 mai, 2020 Beja 22:29
    Eu vejo o teletrabalho como uma situação alternada com outros colegas. Ou seja, a pessoa não estaria sempre no escritório nem sempre no teletrabalho. Assim conseguem se os dois objetivos. Estar mais tempo com os filhos e descongestionar o trânsito nas cidades. Cumprimentos.
  • Cidadao
    29 mai, 2020 Lisboa 12:58
    Chama "longo repasto" a ter 1h para almoço? E acha mesmo que se os funcionários suprimissem, de qualquer forma, essa hora de almoço, esse tempo não seria abusivamente aproveitado pelo patronato para continuar a laboração? E mesmo que não fosse, acha mesmo que o patronato habituado a abusar, deixaria sair os funcionários sobrecarregados de trabalho em que por via de não se contratar o pessoal necessário cada um faz o trabalho de dois, deixava-os mesmo sair à hora? Você vive na Lua, é?
  • Maria Sousa
    29 mai, 2020 Fafe 08:57
    Li este artigo e, no final, saiu-me boca fora "Adorei!" Acho que é mesmo isto, resume tudo. Por vezes, há coisas que parece que só passam pela minha cabeça, mas afinal há mais pessoas que vêem e pensam nestas situações. Estou em casa, em teletrabalho e nem sempre é até às 7 ou 8, às vezes também é o serão. Geralmente, o computador é ligado entre as 8 e as 9 da manhã e faz pausa para refeições. A própria chefia envia documentos de trabalho à noite, bem tarde, e ao fim de semana. Tento nem abrir e deixar para um horário menos incorreto. Como mãe, fico várias vezes a pensar que estamos todos os dias, todo o dia, a 1 metro de distância, a trabalhar, e acabamos por estar menos próximas. Porque estamos a trabalhar, sem horário. Nunca me debrucei à procura de uma lei que o diga mas, também passou a estar implícito, como se fizesse parte do indivíduo, em determinadas profissões, ter um determinado telemóvel (que permita acesso a Internet, etc), computador e Internet! E, por isto, viver obrigatoriamente numa zona onde haja boa cobertura de Internet. E. já agora, o telemóvel pessoal passou a ser de trabalho, como se a entidade patronal pagasse a conta ou, então, passasse a ser dona do trabalhador e dos seus bens pessoais. E o tal direito de proteção de dados, onde fica? Tudo isto passou a ser natural e eu continuo a tentar resistir mas é impossível. Nota: No segundo parágrafo "processo inferno.", será inverso.
  • César Saraiva
    29 mai, 2020 Maia 08:27
    Plenamente de acordo; Pura realidade! Espero que este artigo ajude a abrir as mentes...