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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Ecologia em tempos de pandemia

27 mai, 2020 • Opinião de José Miguel Sardica


A "Laudato Si’" do Papa Francisco é uma reiteração contemporânea do Cântico das Criaturas de um outro Francisco. O Santo medieval de Assis encarava a Terra como “Mãe” e todos os seus recursos como “Irmãos”. O parentesco poético é a metáfora de um respeito que se perdeu. E é porque se perdeu que a encíclica é de (re)leitura importante.

Evoca-se por estes dias o 5.º aniversário da encíclica "Laudato Si’", publicada pelo Papa Francisco em maio de 2015, que assinalou a definitiva consagração do ambientalismo como valor nuclear da moderna Doutrina Social da Igreja. Partindo de um diagnóstico preocupado e crítico do desenvolvimento consumista e da exaustão dos recursos do planeta, e apelando a uma “ecologia integral” que reduza o peso da pegada ecológica, o Santo Padre deixou, na verdade, um forte apelo a um compromisso inter-geracional no “cuidado da casa comum”. Viemos a esta vida, diz-nos a "Laudato Si’", e estamos neste mundo não para o exaurir, mas para o habitarmos de forma responsável e prudente, porque o recebemos das gerações anteriores e temos de o deixar sustentável para os vindouros. A não ser os negacionistas das alterações climáticas ou os lóbis dos combustíveis fósseis, ninguém discordará disto.

E no entanto, cinco anos passados sobre este alerta, não só a degradação ambiental parece não estar a ser travada, como a atual pandemia e os seus efeitos poderão piorá-la. É certo que os confinamentos globais tornaram o ar mais respirável e travaram a fundo inúmeros consumos que repercutem negativamente sobre os recursos do planeta. Mas as incertezas ambientalistas do desconfinamento e do pós-pandemia (até que ela volte de novo em força?) acumulam-se.
Desde logo, é decerto um paradoxo que a economia – tal como ela está montada à escala glocal – ameace o colapso quando a humanidade consome apenas o necessário para a sobrevivência. Ou seja: o que seria ambientalmente desejável é economicamente impossível, porque o tecido socioeconómico do mundo de hoje exige o consumo, o uso, o descarte, a troca, a compra, a viagem, a estadia, etc. Por outro lado, se o medo pandémico instalar opções de maior autarcia de países ou continentes, terão de se multiplicar reindustrializações ou duplicações de produção que impactarão de forma negativa nos recursos do mundo. Acresce que esse mesmo medo pandémico vai contrariar, pelo menos no curto prazo, opções corretas como a do uso de transportes públicos ou a da partilha de automóvel. Poderá haver menos aviões no céu, mas haverá (muito) mais carros na terra, dada a desconfiança de qualquer viagem ao lado de um desconhecido cuja situação clínica ignoramos. E, com pandemia ou sem ela, continuarão as querelas entre os grandes países poluidores e os que, querendo fomentar o seu crescimento, declaram não poder deixar (ainda) de poluir, ou porque o ambientalismo é luxo ideológico de ricos, ou porque exaurir os seus recursos oferece lucros fáceis e tentadores (ex: a floresta amazónica, que um certo Brasil trata como coisa sua e descartável).

A "Laudato Si’" do Papa Francisco é uma reiteração contemporânea do Cântico das Criaturas de um outro Francisco. O Santo medieval de Assis encarava a Terra como “Mãe” e todos os seus recursos como “Irmãos”. O parentesco poético é a metáfora de um respeito que se perdeu. E é porque se perdeu que a encíclica é de (re)leitura importante. Se calhar não por acaso, e segundo os dados da Global Footprint Network e da associação ambientalista portuguesa Zero, anteontem, dia 25 de maio, os portugueses “esgotaram” os recursos naturais que tinham disponíveis para este ano. A partir daqui, quando ainda falta mais de meio ano de 2020, o que gastarmos é a crédito sobre o ano que vem. E assim acontece sucessivamente, ano após ano. Se viver a crédito bancário já é mau, viver a crédito do planeta é péssimo, porque o planeta não é um banco emissor capaz de criar “moeda” conforme as necessidades.

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