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Stanley Ho: Mitos, perseguições e piratas. Histórias do “padrinho do jogo” de Macau

26 mai, 2020 - 15:30 • João Carlos Malta com João Cunha

Stanley Ho é um nome para a História. Não só de Macau, não só da China, mas do mundo quando se falar de jogo e de casinos. Ele fez com que uma pequena cidade do sul da China, com poucas centenas de milhares de habitantes, passasse a ser a capital mundial para jogadores da sorte e do azar. Um homem com muito poder visível e invisível que desenhou o Macau moderno.

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Uma vida longa e uma vida plena. Stanley Ho nasceu rico, no seio de uma família abastada de Hong Kong, e morreu ainda mais rico. Chamam-lhe, e bem, magnata. Pelo meio, ao longo de 98 anos construiu um império que começou em Macau, mas tem várias ramificações pelo mundo. Viveu com quatro mulheres das quais teve 17 filhos.

Uma fortuna desta dimensão dificilmente se constrói sem mitos, histórias mal contadas, e outras dignas de filme. Stanley foi perseguido, perseguiu, teve de lidar com forças antagónicas, com o crime organizado, a China e o Japão. Soube sempre adaptar-se. E reinou de forma a lhe colocarem epítetos como o “Padrinho do Jogo”.

O jornalista Ricardo Pinto, proprietário do jornal Ponto Final e da revista Macau Closer, foi dos últimos a entrevistar Stanley Ho. A conversa ocorreu em 2007, para o n.º 1 da então recém-criada revista, e Ho, claro, teve honras de capa. Vivia-se um momento particularmente sensível na história dos negócios do “Rei do Jogo”. Quatro anos depois da liberalização dos casinos em Macau, a Sands, detida pelo arquirrival Sheldon Adelson, construía o icónico Venitian que punha em risco a hegemonia da atual Sociedade de Jogos de Macau, detida pela família Ho.

Mas se a atualidade da época ocupou parte da conversa, Ricardo Pinto quis também saber a versão de Ho sobre muitas das lendas que preenchiam o imaginário dos que se dedicavam a ler sobre a vida do empresário. Uma delas foi a de que Pequim se teria oposto, em 1962, à sua entrada na concessão dos casinos em Macau.

Stanley recordou, nessa entrevista, que durante a guerra da Coreia, a China se aliou ao Norte, contra o Sul apoiado pelos Estados Unidos e pelas Nações Unidas. Nessa época houve um embargo de produtos fundamentais para Pequim, como o petróleo e armas, e Hong Kong e Macau, como noutras alturas da história, serviram a porta de entrada de mercadorias para a China. Ho e Henry Fok, que viria a ser seu sócio no império do jogo, foram “os empresários patrióticos” que ajudaram a manter as ligações com o resto do Mundo.

“Ele referiu o episódio da guerra da Coreia para afirmar que esteve do lado de Pequim para ultrapassar a fase de isolamento e embargo”, conta Ricardo Pinto, afirmando que Ho usava este argumento para desmentir que o Governo central tivesse feito oposição aos seus negócios.

Contrabando e tentativas de rapto

Em 1943, Stanley tinha-se refugiado em Macau, depois da invasão japonesa de Hong Kong. Foi através do contrabando de bens de luxo, para uma empresa oriunda do Japão, que fez crescer a fortuna que lhe permitiu depois entrar no negócio dos casinos. A missão que lhe estava destinada era de compra e venda de bens essenciais para uma cidade que então estava isolada do resto do mundo.

Por causa desta atividade, não foram poucas as vezes em que se teve de meter num barco para atravessar o rio das Pérolas. Numa dessas situações foi assaltado por piratas. Começa aí o mito.

O dono do jornal Ponto Final e da Macau Closer relata que, naquela altura, a zona estava em guerra e se tratava de um local onde a pirataria foi frequentíssima ao logo de séculos. “Os riscos eram muitos durante estas viagens e a embarcação em que seguia tomada por piratas”, começa por avançar Ricardo Pinto. O facto levou a muitas teorias sobre o que se passou realmente. "A ideia que se vendia na Internet era que o Stanley Ho tinha pegado numa pistola e morto grande parte dos piratas”, identifica.

O jornalista afirma que, naquela entrevista há 14 anos, Ho lhe contou a sua versão. A fazer fé nas palavras do empresário, eis o que se passou: “Disse que entregou o dinheiro que tinha para fazer as compras, e o mais que conseguiu foi fugir. Depois teve de explicar aos japoneses e às autoridades portuguesas porque voltava de mãos vazias e sem bens”.

A vida agitada do homem que ainda há poucos anos era o 68.º mais rico do mundo - fortuna foi estimada em 3,1 mil milhões de dólares pela revista Forbes -, tem mais episódios. A sua entrada no jogo em Macau foi tudo menos pacífica. Envolveu perseguições e tentativas de rapto.

Estávamos em 1961, e as anteriores concessões lideradas pelos locais Fu Tak Iam e Kou Hou Neng estavam em perda, os casinos estavam desatualizados. Era preciso sangue novo e novos investimentos. Do seu lado, estes dois empresários, tinham Y.C. Liang, outro patrão do comércio do jogo. O trio não via com bons olhos a vinda de um novo “player” porque isso significava a perda do negócio.

Houve ameaças muito violentas contra a vida do Stanley Ho e dos colaboradores. O episódio mais rocambolesco dá-se quando um grupo de homens o persegue em plena avenida Almeida Ribeiro, no centro de Macau, até à sede do Banco Nacional Ultramarino, e procuram raptá-lo a poucos dias da abertura da nova concessionária.

Ho lembra na entrevista à Macau Closer que enfrentou os quatro homens, recusou-se a segui-los, chamou a polícia e não cedeu à chantagem. “Ele via essa sua atitude sobre o que era justo como algo de inegociável, mesmo em situações críticas como a ameaça à sua vida”, recorda Pinto.

“Era implacável neste tipo de situações, quando era ameaçado não se ficava”, explica, acrescentando que em 1962 ficava a impressão de que se houvesse uma ação violenta sobre as suas concessões as mesmas não ficariam sem resposta.

Ricardo Pinto privou em inúmeras situações com o magnata, quando ainda era jornalista da Televisão de Macau (TDM), e em todas elas encontrou um homem “afável e de uma simpatia extrema”, “muito inteligente e muito educado”. “Muito respeitador com as pessoas que o rodeavam, e com os jornalistas a quem prestava uma atenção muito séria, muito profissional”.

Diz que a Stanley assenta bem a marca de “visionário”. Há várias situações que o demonstram, umas mais longínquas do que outras. Em 1966-67, em plena revolução cultural liderada por Mao Tsé-Tung, e num período em que poucos acreditavam que Macau continuaria a ser governada por Portugal, Ho viaja para Lisboa para tentar aprovar o projeto do hipódromo. “Acreditava que os problemas seriam resolvidos, em breve, e que valia a pena continuar a investir no futuro”, explica o jornalista.

Sobre o legado do homem que pôs o pequeno território do sul da China no mapa, Ricardo Pinto diz que apesar de este não ter inventado o jogo na cidade, que existe desde o século XIX, conseguiu olhar para Macau nos anos 60 do século passado, e ver uma oportunidade. “Criou, primeiro, a capital do jogo asiática e depois a capital do jogo mundial”, relembra.

O mesmo acrescenta que Stanley percebeu ainda que Macau se podia desenvolver muito mais “se as receitas do jogo pudessem crescer de uma maneira exponencial”.

“Percebe como fazer isso, ligando Macau a Hong Kong e depois fazendo a defesa da abertura à China. Não quis que a abertura internacional acontecesse, depois tentou que fosse apenas mais uma concessão, mas a verdade é que acabaram por ser três, e hoje são seis pelo advento das subconcessões”, relata.

Um homem excecional que não se fechou ao mundo

Amigo pessoal de Stanley Ho, o presidente da Associação de Advogados de Macau (AAM), Jorge Neto Valente, não hesita em dizer que se tratava de “um homem excecional”.

Acrescenta às qualidades de Ho o facto de ser “um homem muito inteligente, um homem multifacetado, um homem muito culto, um homem generoso, um homem simpático, um homem que criava empatia com as pessoas com que interagia”.

Neto Valente diz que foi acima de tudo um empreendedor. O que se fez e desfez em Macau, durante décadas, teve a sua impressão digital. “Não houve nenhum projeto em que não estivesse envolvido. Não era um homem que criasse riqueza apenas para si próprio. Ele queria transformar a sociedade e tinha visão. Tinha-o porque era culto e falava várias línguas. Não tinha uma visão estreita da realidade, ou só da sua cultura chinesa”, explica.

Tinha os valores ocidentais e era um homem que conhecia Portugal, onde investiu”, soma.

O advogado, há várias décadas no território que até 1999 foi administrado por Portugal, não tem dúvidas em catalogar o dono do casino Grande Lisboa como “um patriota em relação à China”, com quem “sempre teve boas relações”. “Foi muitas vezes ponte entre os interesses portugueses e chineses designadamente na política”, explica.

Era um homem ouvido por todos os governadores portugueses, que o auscultavam para saber a sua opinião. A ideia vigente era de que nada acontecia, na cidade do sul da China em que agora vivem quase 700 mil habitantes, sem a sua aprovação. Mas Stanley não sofria de soberba e não fazia gala desse poder que tanto era visível como invisível.

Era alguém a quem as pessoas recorriam e ouviam a opinião, mas ele não se gabava disso, nem das conversas nem dos conselhos que dava aos governadores”, explica o presidente da AAM.

Além de uma vida de sucesso empresarial, e apesar de nunca ter querido assumir lugares políticos em Macau, participou na elaboração da Lei Básica do território (a sua mini-Constituição), e era delegado à Conferência Consultiva Política do Povo Chinês em Pequim. “Tinha a capacidade de apreender a realidade com muita rapidez. Tinha muita intuição”, conta Valente.

Ele inspirava respeito e era respeitado. Era uma pessoa que tinha amigos, e eu sou um deles, que hoje está muito triste com o seu desaparecimento”, lamenta.

Em relação ao futuro da SJM, e sobre as disputas no seio do universo de descendentes que tem marcado os últimos anos, Jorge Neto Valente crê que o património há “muito tempo que foi distribuído pelos herdeiros, mas claro que há uma parte importante a ser discutida e dividida”. Ainda assim, não crê que a morte seja um momento marcante, porque, depois do acidente em que teve um traumatismo craniano há 10 anos, que Stanley “não tem influência, a presença dele era mais simbólica”.

Falta massa? Chama o Stanley

Albano Martins está há quatro décadas em Macau. O economista foi presidente da Autoridade Monetária de Macau, mas foi quando esteve como diretor da Companhia de Desenvolvimento Nam Van que mais contatou com o dono do jogo de Macau. Na altura, década de 1990, estava em causa a criação dos grandes aterros que fizeram ganhar espaço à água, e “que hoje marcam e definem a cidade”, onde foi construída a icónica Torre de Macau.

Martins lembra “um grande empreendedor, um individuo que galgou, subiu na vida à custa de grandes empreendimentos onde ele liderava e levava-os em frente”.

Sobre o enorme poder que o empresário detinha, Albano Martins define-o assim: “Sabia-se que quando havia falta de dinheiro, por exemplo para acabar o terminal marítimo do Porto Interior, o Stanley entrava com a massa”.

“A imagem que tenho é do homem que fez crescer Macau, amigo dos portugueses, afável e de bom trato”, lembra. A simpatia chegava ao ponto de, às vezes, em reuniões e assembleias gerais em que estavam chineses e portugueses “até se dar ao cuidado de traduzir do chinês para o inglês para nós percebermos”.

“Morreu um amigo de Portugal”

Por esta e outras atitudes de Stanley Ho, e por todo histórico nas relações com os portugueses, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, disse à Renascença que “morreu um amigo de Portugal”. “Hoje, que morreu, curvamo-nos perante a sua memória e lembramo-lo com saudade”.

Santos Silva destaca o papel que Ho desempenhou ao longo de muitas décadas, tendo “contribuído quer para a economia de Macau como para a economia de Portugal, visto que também fez vários investimentos importantes” no nosso país como os casinos de Lisboa, do Estoril e da Póvoa do Varzim.

Também o general Garcia Leandro, que foi governador de Macau de 1974 a 1979, recorda os tempos em que negociou com Stanley Ho a difícil revisão do contrato de jogo, assinado em 1976.

“Tínhamos posições muitos diferentes, à partida. Ele queria pagar o mínimo, eu queria que pagasse muito mais. Chegámos a um resultado muito bom e que foi muito importante para a recuperação de Macau, que estava naquela época com alguma falta de confiança no futuro”, recorda Garcia Leandro.

Na altura, a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM), detida por Stanley Ho, passou a pagar a renda anual de 30 milhões em dólares de Hong Kong (3,5 milhões de euros ao câmbio atual), sendo que as obrigações anuais passariam a mais de 80 milhões em dólares de Hong Kong (9,5 milhões de euros ao câmbio atual) contra os 9 milhões do contrato que terminava (um milhão de euros ao câmbio atual).

Apesar desse período difícil, manteve-se a amizade ao longo dos anos. “Nós tivemos uma relação bastante agradável. E depois de ter acabado esse período complicado, ficámos amigos e com uma relação muito boa. Sempre que ia a Macau estava com ele, ou em Macau ou na sua casa, em Hong Kong”.

Para o antigo governador daquele território, “a marca de Stanley Ho em Macau é uma marca que nunca irá ser apagada”.

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