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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Os pais, os escravos da quarentena

22 mai, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


Uma geração de jovens adultos (30 e 40 anos) está neste momento com a vida em suspenso, sem direito à liberdade, sem direito à carreira, sem direito aos filhos, porque estar em prisão domiciliária não é o mesmo que gozar os filhos.

Esta é uma sociedade de famílias sem filhos ou de filhos únicos. Já dura há vários anos, e já nos habituámos a pensar as famílias assim. É esta realidade que cria um quadro mental que não contempla os dilemas das famílias com filhos, no plural. Temos visto esta tendência na quarentena. Já li e ouvi um cento de vezes a seguinte fantasia: "as famílias estavam muito separadas, a quarentena é uma oportunidade para nos encontrarmos ”. Ora, eu gostava que me respondessem a esta pergunta: como é que se faz um exercício espiritual de auto-encontro no meio dos tufos e tufões de cotão que rodopiam pelos cantos da casa? Como é que se encontra esse "eu" salvífico entre as pilhas de roupa e loiça por lavar? É antes ou depois dos jantares e banhos por fazer e dar, de estudar a planificação dos trabalhos de casa e das salas de aulas virtuais com respectivo desdobramento doméstico, das brincadeiras, das birras, da gestão dos conflitos entre irmãos? Como é que se faz o tal “lifestyle” da procura do “eu interior” quando, em cima da estiva paternal, temos de completar o nosso próprio trabalho?

Mas olhemos também para a forma como se impôs a escola à distância. Como é que se faz isso quando se tem dois ou mais filhos? Dois ou três computadores? Mesmo que existam dois ou três computadores, não existem dois ou três pais à disposição, visto que pelo menos um está a trabalhar na cozinha, ou deveria estar no computador, ou então está a estender a roupa, ou a tratar das compras da casa. E lembremo-nos também que muitos professores são pais, ocupados agora a controlar salas de aula virtuais, forçados a esquecer os seus próprios filhos. Para complicar as coisas, criaram regras arbitrárias, separando creches e jardins de infância das escolas primárias. Ninguém pensou nos pais que têm um filho na creche e outro na escola primária, dada a proximidade de idades. Ninguém se lembrou de que será mais fácil explicar diferenças destas a um adolescente do 11.º, mas não a crianças tão pequenas.

Em entrevista à Renascença e ao Público, o Ministro da Educação diz que o próximo ano lectivo poderá ser, na prática, uma continuação deste regime, com aulas presenciais e aulas à distância. Aliás, não diz nem deixa de dizer, lança apenas o boato, como se a ideia fosse simples. Lamento, mas isto não é aceitável. A vida dos pais não é argila à disposição do experimentalismo do Sr. Ministro. A nossa vida não pode ser desfeita desta forma. Os pais, sobretudo aqueles com filhos ainda pequenos, não podem ser os grandes sacrificados desta crise. Até porque representam boa parte da população activa, e deveriam ser uma prioridade no relançamento da actividade económica. Mas é isso que está agora em cima da mesa, como se nada fosse. Uma geração de jovens adultos (30 e 40 anos) está neste momento com a vida em suspenso, sem direito à liberdade, sem direito à carreira, sem direito aos filhos, porque estar em prisão domiciliária não é o mesmo que gozar os filhos. Sei do que falo: sou pai em full time durante três ou quatro meses por ano. E gosto. Isto que agora se passa não é ser pai em liberdade, como escolha; é outra coisa muito diferente.

Comentários
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  • João Lopes
    26 mai, 2020 Viseu 10:32
    Excelente artigo!
  • Miguel Gomes
    24 mai, 2020 Lagos 16:18
    Como eu o percebo. E como quem não está em teletrabalho não consegue perceber. Não tenho cotão nem pilhas de louça e roupa. Mas só tenho 1 filho, com o qual não tenho tempo para brincar, e não sei o que é dormir 7 h desde março. Sou prof e tenho mais de 100 filhos de outros pais para ensinar, orientar e ajudar. 7 dias por semana, com empenho e dedicação. Tenho saudades de mim e da minha família, apesar de estarmos juntos 24h por dia. Se tivesse mais do que um filho na escola para ajudar nas tarefas escolares, acho que teria o cotão e as pilhas de louça e roupa. Ou então, nem as 4/5 horas de sono seriam possiveis. Embora deva parecer, não me estou a lamentar. Cada um tem o seu trabalho para fazer. Eu faço o meu, orgulhosamente. Mas o meu filhote (e a minha esposa) é apenas uma pessoa que vive cá em casa. Já nem sequer se queixa de eu não brincar com ele. E isso, magoa!
  • Maria de Jesus Gaspa
    24 mai, 2020 Sobreda 06:46
    "Quem faz um filho/ fá-lo por gosto" e depreendo que com amor, amor que se vem a revelar, mais tarde, amor paternal. Disposto a tudo, sobretudo nestes momentos de dificuldade , pois um pai em "full time" é-o sempre e não apenas durante três ou quatro meses por ano... Neste caso, usa mal o empréstimo. A full-time, desculpe que o corrija, e muito bem, criou-me a minha mãe a mais três irmãos. E nunca se sentiu assim, tão infeliz, como o senhor. "Isto que agora se passa não é ser pai em liberdade, como escolha; é outra coisa muito diferente."... Ridículo, este senhor. A RR anda um pouco desorientada nas suas escolhas, o amor não tem - ou não deveria ter - limites, certo?!
  • Manuela
    23 mai, 2020 Lisboa 19:05
    Agora começou o desentendimento das pessoas umas com as outras! Agora não vale a pena discutir, mais sobre este assunto! é esperar para ver quem tem mais paciência ou não tem paciência para coisa alguma! Há uma coisa que é essencial, é salvaguardar a vida das crianças: não irem para a escola enquanto não houver vacinas em condições! de resto trabalhem como puderem, fora ou dentro de casa, como lhes der mais jeito! e considerem a situação normal, até que se descubra quem foram os autores da porcaria que fizeram, para causar uma situação deste tamanho todo! isso parece-me importante, para que no futuro próximo, não surjam outras experiências, que causem outras porcarias iguais ou maiores do que esta! O meu marido tem razão quando diz que isto é pior do que uma guerra, porque numa guerra só morre quem anda lá aos tiros!
  • jorge pinheiro
    23 mai, 2020 malveira 00:03
    Este cromo tão preocupado com a "família", porque se incomoda com suportar 24 h/ 7 dias por semana o(s) filho(s)????Quem o lê, deve pensar que é um desgraçado, um coitado que não pode trabalhar a partir de casa. Ó Raposo, levanta o cú e vai trabalhar como o português normal. Olha se todos tivessem uma avença, como este parasita??? Devia pensar que, quando estava em procriação, devia pensar que o filho vai ficar para sempre na escola, não?
  • João Lopes
    22 mai, 2020 Viseu 12:15
    Artigo interessante!