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Postal de Quarentena - Cidade do Luxemburgo

A Redoma Dourada

20 mai, 2020 - 08:00 • Lourenço Cordeiro*

O Luxemburgo entrou na pandemia com um trunfo e uma dificuldade muito particulares. Por um lado, a economia é pouco dependente dos setores mais afetados e facilmente se adaptou ao teletrabalho, mas, por outro, o fecho de fronteiras era inconcebível. Neste postal, um português que vive e trabalha no país explica como foi viver a quarentena nestas condições.

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Como em todas as terças-feiras desde setembro, na manhã de 17 de março eu estava numa reunião a coordenar os trabalhos de uma empresa de construção civil luso-luxemburguesa, de um canalizador belga, de um eletricista português, de um carpinteiro alemão e de um pintor francês, com o objetivo de garantir a conclusão da obra de renovação de uma casa de uns clientes ingleses, até ao verão. Nessa semana os meus filhos já estavam em casa em regime de ensino à distância e a minha mulher já tinha improvisado um escritório no nosso quarto de onde trabalhava, sob a pressão acrescida causada pela resposta à Covid-19 que a instituição europeia onde trabalha se viu obrigada a dar.

Fora as atividades essenciais, a construção era dos poucos setores que se mantinha ativo, e os escritórios de arquitetura como o meu ensaiavam regimes de teletrabalho parcial seguindo as recomendações de distanciamento social já anunciadas no país. Nessa altura o governo luxemburguês ainda não tinha concretizado nenhuma medida de compensação económica a atribuir às empresas afetadas pelas medidas de contenção da Covid-19 e as empresas geriam a sua capacidade de resposta na medida do que ia sendo acordado com os empregados. No meu escritório a discussão tinha acontecido uns dias antes: numa equipa de oito pessoas e seis nacionalidades (luxemburguesa, portuguesa, belga, espanhola, grega e italiana) a solução adotada foi a de manter no escritório quem quisesse ficar no escritório e mandar para casa quem se sentisse mais confortável em casa. No que respeita à evolução da maneira como cada pessoa estava a reagir às notícias da epidemia, cada dia parecia uma semana, e as notícias que chegavam das famílias nos respetivos países de origem variavam de pessoa para pessoa – a situação na Grécia ou Portugal era muito diferente dos casos espanhol ou italiano, por exemplo.

A incerteza daquilo que aconteceria na construção no Luxemburgo no curto prazo acabaria nessa manhã de 17 de Março: a juntar-se ao “lockdown” decretado no dia 15, o Governo anunciava o fecho de todas as obras e um pacote de compensação financeira de combate ao desemprego: era criada a figura do “desemprego temporário” onde o Estado assumiria o pagamento de 80% do salário de cada trabalhador até um teto de 2,5 vezes o salário mínimo nacional, ou seja, 5.354€.

A capacidade financeira do Luxemburgo deixou o país numa posição privilegiada para impor medidas de combate à Covid-19 – o Luxemburgo é, de longe, o país da OCDE com maior PIB per capita, é o país da União Europeia com salários mínimo e médio mais altos, e tem uma dívida pública baixíssima (30% do PIB). A sua economia depende muito pouco do setor mais afetado pela pandemia (hotelaria e restauração) e mais do sector legal e financeiro que se adapta melhor ao teletrabalho. Também contribuiu para a tranquilidade com que as medidas foram recebidas o facto de metade da população residente estar alheada da discussão política por ser estrangeira – sem, por isso, direito de voto.

Por outro lado o Luxemburgo enfrentou um desafio particular. Uma das medidas mais populares adotadas pelos vários governos na Europa foi o fecho de fronteiras, reivindicado pelas populações como ideia de proteção de uma ameaça que viria do exterior. Ao contrário de outros países, é impossível ao Luxemburgo ensaiar um fecho de fronteiras. Quase metade da população empregada não vive no país. A somar às 250 mil pessoas ativas residentes no Luxemburgo entram no país todos os dias mais 200 mil pessoas: 100 mil vindas de França e 50 mil da Alemanha e da Bélgica, respetivamente. Muitos desses trabalhadores transfronteiriços dizem respeito a atividades consideradas essenciais durante a pandemia, como a distribuição alimentar ou o setor da saúde (dois terços do staff hospitalar é estrangeiro). Ou seja, mesmo numa situação de pandemia mundial, a ideia de “fecho de fronteiras” é absurda no contexto luxemburguês, como é evidente através deste exercício de geografia alternativa: se Lisboa fosse a cidade do Luxemburgo, Cascais seria na Bélgica, Vila Franca de Xira na Alemanha, Setúbal em França, Coimbra na Holanda – e metade da população não saberia falar português. Por isso, o Luxemburgo foi forçado a organizar a sua resposta à Covid-19 sabendo que não poderia dispensar grande parte das pessoas que entram no país diariamente, adotando medidas como pedindo aos hotéis que disponibilizassem quartos para as famílias dos profissionais de saúde de modo a mantê-los no país sem separá-los da família, caso algum dos países vizinhos decidisse decretar um fecho agressivo das fronteiras.

A comunicação do Governo luxemburguês com a população foi sempre feita de uma maneira muito eficaz e transparente, através de conferências de imprensa diárias (com tradução simultânea) e da distribuição de informação feita através das autoridades locais (apesar de só ter 615 mil habitantes o Luxemburgo é dividido em cinco regiões e 102 “communes”, que são responsáveis por grande parte do trabalho público administrativo.) As regras do desconfinamento, por exemplo, foram-me explicadas através de um panfleto depositado na minha caixa do correio escrito em cinco línguas: as três oficiais (luxemburguês, alemão e francês) e as duas oficiosas (inglês e português).

Apesar de um aumento muito rápido do número de casos em março – um aumento alimentado pelo facto de o Luxemburgo ser um dos países que mais testa no mundo – os últimos dois meses foram passados com muita tranquilidade. A capacidade hospitalar do país nunca chegou a ser testada pela Covid-19, já que das 150 camas disponíveis de cuidados intensivos nunca estiveram ocupadas mais de 35, o que permitiu, inclusivamente, o acolhimento de alguns doentes franceses em hospitais luxemburgueses. Neste momento há 65 pessoas internadas, 14 das quais em cuidados intensivos. O número de novos casos diários estabilizou há mais de três semanas num número à volta de dez; o número de mortes total é de 107, e a idade média das mortes é de 85 anos.

A reabertura das obras aconteceu há três semanas, o que me fez voltar ao escritório depois de um mês em casa. Nunca tinha recebido uma segunda-feira com tanta alegria e entusiasmo. Foi estabelecido um conjunto de regras sanitárias que têm de ser cumpridas nos estaleiros, embora nem todas sejam exequíveis, e o sentimento geral dos trabalhadores é de alívio por voltar ao trabalho.

Na semana passada as restrições começaram a ser levantadas e a vida social retomou alguma normalidade, com visitas em casa a serem permitidas até um certo número de pessoas. As lojas reabriram com a imposição do uso de máscaras que foram distribuídas gratuitamente pelo Governo (à razão de 45 por habitante), mas os restaurantes e bares mantêm-se fechados. Algumas escolas começaram a reabrir, com rotação semanal de alunos e medidas sanitárias bastante apertadas (infelizmente os meus filhos ainda não estão abrangidos por esta reabertura). Muitas empresas vão manter até ao verão o regime de teletrabalho, e a maior inquietação de grande parte da população do país é saber se será possível visitar os países de origem nas férias. Há dois dias, depois de um impasse nas negociações, o setor da construção anunciou não ter chegado a acordo para a eliminação das “férias coletivas” – um período de três semanas no verão onde os trabalhadores gozam de férias obrigatórias – uma notícia que deve ter sido recebida com entusiasmo no norte de Portugal, de onde é oriunda a maior parte dos emigrantes portugueses.

A chegada do verão e a convicção de que a Covid-19 poderá ser uma doença sazonal faz com que se tenha instalado um ambiente otimista para os próximos meses. O Governo espera uma queda do PIB para 2020 de 6% (um número inédito) mas projeta um crescimento de 7% para 2021, apesar de antecipar um crescimento do desemprego que poderá chegar aos 9% em 2021. Para a população do Luxemburgo que sobreviveu à Covid-19 (99,999% das pessoas), o verdadeiro impacto da pandemia irá sentir-se a partir de agora. A redoma dourada que cobriu o céu azul da primavera luxemburguesa mais soalheira dos últimos anos terá de ser levantada, e a nós – como aos outros 300.000 emigrantes do país – cabe-nos fazer aquilo que nos trouxe aqui em primeiro lugar: trabalhar, e recuperar o tempo perdido.


*Lourenço Cordeiro é arquiteto e vive no Luxemburgo com a sua mulher, também portuguesa, e filhos.

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