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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

Porque é que devemos ver já os nossos pais e avós

08 mai, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


Se os nossos pais e avós envelhecerem 3, 4 ou 5 anos durante os 3, 4 ou 5 meses da quarentena, isso não é uma grande vitória, aliás, será uma derrota que não estou disponível para apoiar com o meu medo. Defendo a vida, não o medo de morrer.

O sucesso da república, do capitalismo e da ciência criaram um enorme paradoxo: os ocidentais não sabem lidar com o risco e com a morte devido ao seu enorme sucesso político, económico e médico. Paradoxalmente, a nossa história triunfante desarmou-nos; somos flores de uma estufa ahistórica que não resistem aos ventos da história política e da história natural. O parlamento, a empresa e o laboratório (três conceitos desprezados pelo pós-modernismo das elites de esquerda e agora pelo pós-verdade do povo trumpista) são três escudos que filtram o caos que era normal nas gerações anteriores: o risco permanente, os dilemas morais a sério, as doenças, as epidemias, a morte como parte do dia-a-dia. O pináculo desta obsessão pelo controlo talvez seja esta: a nossa civilização aplaude a morte desejada e controlada pelo homem (eutanásia), mas fica paralisada perante a morte natural. Isto porque a morte natural escapa ao controlo antropocêntrico.

Nesta obsessão por evitar o risco, muitos dizem que, no quadro da covid-19, não devemos estar com os nossos pais e avós. É um risco, dizem. Pois é. Mas viver é um risco. Fumar é um risco. Conduzir é um risco. O parto é um risco. Fazer certos desportos é um risco. Certos alimentos são um risco, tal como certas bebidas. Fazer sexo pode ser um risco. Fazer uma empresa é um risco. Caçar é um risco. Ter filhos é arriscar. Sem risco não há vida, há apenas algodão ensopado em desinfectante, há apenas a dormência de uma sociedade esterilizada. Eu percebo a prudência, acho apenas que a prudência já descambou na servidão - a servidão do medo. Os nossos velhos devem, em nome da prudência, evitar a vida social, mas não podem ficar paralisados no medo e longe da vida familiar. Se os nossos pais e avós envelhecerem 3, 4 ou 5 anos durante os 3, 4 ou 5 meses da quarentena, isso não será uma grande vitória, aliás, será uma derrota que não estou disponível para apoiar com o meu medo. Defendo a vida, não o medo de morrer. Ver os netos é o alimento moral dos nossos pais. Privá-los dos netos é literalmente encurtar-lhes a vida, até porque a noção de tempo deles não é a mesma que a nossa. Para nós, seis meses são apenas seis meses; para eles, meio ano é um artigo de luxo.

É pouco provável que as minhas filhas infectem a minha mãe com covid, mas, sim, o risco existe. Tenho medo. Mas, por outro lado, é altamente provável que a ausência das minhas filhas atire a minha mãe para algo pior do que o vírus. A solidão e o pânico matam, sobretudo na velhice. Matam, porque aceleram problemas de saúde física. Matam, porque criam ou aceleram problemas de saúde mental. Lamento, mas a verdade é que os velhos têm razão desde o início desta crise: a quarentena é muito pior do que o vírus.

Comentários
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  • Margarida
    13 mai, 2020 Porto 23:44
    Embora compreenda alguns dos aspectos focados neste texto, creio que o Autor ignora o perigo que a disseminação do vírus representa, podendo facilmente conduzir à ruptura do Serviço Nacional de Saúde.
  • Madalena Duarte
    12 mai, 2020 Guimarães 15:10
    Uma perspectiva muito válida. Morrer feliz e realizado é melhor do que morrer de coração vazio pela solidão ❤️💔
  • Noribal Cabral
    10 mai, 2020 Leiria 09:20
    Obrigado pelo belo e sério artigo que escreveu sobre o confinamento total de todos os mais idosos. Concordo em absoluto consigo. Como muito bem explicita, viver é um risco. Pois é. Mas para quem tem mais de 80 anos e menos, confina-los ao isolamento é mata-los mais depressa em poderem estar perto dos seus descendentes . Obrigado Henrique Raposo.
  • Carlos Freitas
    10 mai, 2020 Lisboa 08:46
    Que artigo irresponsável porque está a fomentar o contacto social quando, à luz da evidência científica atual, a sua evicção é a única forma de travar o vírus. Concordo que somos “flores de estufa” perante a morte mas se o Henrique morrer porque foi caçar , ou porque fuma é completamente diferente do que se a mãe do Henrique morrer porque foi contaminada pelas netas. Pelo menos para a sua consciência. É perfeitamente possível promover um equilíbrio entre a contenção do vírus e a sanidade mental dos nossos idosos: recorrer às novas tecnologias , visitas rápidas sem contacto físico, fazer um bolo e levar sei lá . E até pode liberalizar os beijinhos e abraços aos avós se quiser , vivemos num país livre. Mas não venha defender isso num sítio tão visível , sob pena de muitas pessoas menos informada começarem também a liberalizar os contactos sociais aos avós . E assim o pequeno risco das suas filhas infectarem os avós transforma-se num grande risco global para os idosos do nosso país. Veja-se o exemplo de Itália ou EUA: idosos a morrerem sozinhos , famílias sem possibilidade de fazer o luto , caixões empilhados nas igrejas a espera de vaga.. É esse cenário que se quer evitar , não a morte em si.
  • António Cunha
    09 mai, 2020 Viana do Castelo 23:33
    Sr. Henrique Raposo, concordo 100%! No meio de tantas notícias, opiniões, comentários, etc., que se podem ler a toda a hora e em todos os locais, que parecem formatados pelo mesmo pensamento, devo dizer que foi uma grande alegria ler o seu texto, foi uma lufada de ar fresco. Obrigado!
  • Mélanie
    09 mai, 2020 Porto 16:07
    Faça-me um favor. No dia em que ficar com COVID , mantenha a coerência das suas opiniões e fique em casa. Mesmo quando já não conseguir respirar e precisar de um ventilador, fique em casa. E chame os seus pais para lhe fazerem companhia não vá eles morrerem de saudade pelas semanas que teria de ficar internado no hospital. Afinal se assume o risco de ter de morrer de alguma coisa, morra em casa e não nos venha infectar no hospital. Muito obrigada. Com os melhores cumprimentos. Mélanie Duque, médica Anestesista.
  • Vitor Prata
    09 mai, 2020 Lisboa 16:05
    Este é o texto que faltava ser escrito, neste tempo em que alguns estão apostados em lançar o medo e o pânico sobre muitos. Tenhamos juizo.
  • Nuno pato
    09 mai, 2020 Arruda dos Vinhos 11:27
    Um dia destes, os meus dois Filhos, cansados de estar em casa disseram-me, em tom “desesperado e entristecido” - temos saudades da avó! Pois... se eles, os mais pequenos, têm, o que não terão os avós ao fim de tanto tempo. Para todos, netos, filhos, pais e avós, aqui vai... https://youtu.be/a7KBhJ5ZzoQ
  • Manuela
    08 mai, 2020 Lisboa 20:03
    Olá Henrique Raposo, eu acho que morre quem tem que morrer! também acho que se tivéssemos mais confiança nos serviços dos hospitais, vivíamos mais sossegados! porque o medo vem daí! uma doença que mata e que faltam condições para a tratar, gera medo! e não me admiro nada que muitos morram de susto e não do vírus! A democracia tem um defeito, é transparente demais! ao passo que uma ditadura esconde demais os problemas graves, a democracia estabelece uma confusão, na forma como transporta as informações! Eu vou contar uma coisa que não tem nada a ver com esta conversa, mas até certo ponto tem algo que bate certo, ao ponto aonde eu quero chegar! eu faço fracturas nos ossos com facilidade, de maneira que os meus filhos resolveram pôr uma câmera na cozinha, para gravar se eu subo no banco, se subo no escadote... mas se eu cair, porque calhou, mesmo sem estar empoleirada, eu sofro na mesma com a queda!! eu não sou nenhum biblô! Eu tenho que ter cuidado, porque há dias que eu consigo mexer-me melhor, é conforme a temperatura ou a humidade da atmosfera! Eu falei em ter 'cuidado'! é isso! 'o cuidado' é a chave de qualquer problema! Se há máscaras, as crianças podem ir visitar os avós! não precisam de andar agarrados! Lembro-me de um dia na véspera de Natal ir visitar os meus pais! entrei com as prendas e disse-lhes: hoje não há beijinhos porque estou com uma tremenda constipação,vim vê-los, mas vou já, para não vos pegar! Se eu não fosse,eles pensavam que eu estava muito mal,doía-me!
  • João Lopes
    08 mai, 2020 Viseu 11:26
    Excelente análise de HR. Concordo: «a nossa civilização aplaude a morte desejada e controlada pelo homem (eutanásia), mas fica paralisada perante a morte natural. Isto porque a morte natural escapa ao controlo antropocêntrico». E ninguém fala da grande pandemia mundial: 6 milhões de abortos…que envergonham a Humanidade!