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Pandemia de Covid-19

EUA. Geórgia reabre economia sem apoio de Trump, numa jogada de alto risco

24 abr, 2020 - 23:09 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

O governador da Geórgia teve o apoio do Presidente para reabrir a economia no estado, mas à última hora Trump tirou-lhe o tapete. A experiência servirá de “case study” para o país, enquanto se acumulam tensões entre governadores e presidentes de câmara com opiniões antagónicas sobre a quarentena. Quando os EUA ultrapassam os 50 mil mortos, Trump quer saber se o coronavírus se pode combater com desinfetante.

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Luz ultravioleta e injeções com desinfetante. As propostas perigosas de Trump para a cura de Covid-19
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Brian Kemp é governador da Geórgia há pouco mais de um ano. Venceu as eleições em novembro de 2018 por uma unha negra, batendo a candidata do Partido Democrático, Stacey Abrams, por escassos 55 mil votos em quase quatro milhões de eleitores. Abrams foi a primeira mulher negra democrata a concorrer ao cargo de governadora.

Republicano convicto e apoiante incondicional de Donald Trump, Kemp faz parte daquele lote de governadores conservadores que adotaram com relutância as medidas restritivas impostas pela pandemia. Num estado sulista como a Geórgia, onde os republicanos vencem normalmente as eleições, essa relutância pode até estar em sintonia com boa parte dos cidadãos, mas o cargo de governador requer uma responsabilidade que vai muito para além do populismo fácil para agradar aos eleitores.

Há cerca de duas semanas, Kemp afirmou numa conferência de imprensa que só tinha sabido “há 24 horas” que pessoas sem sintomas podiam espalhar o coronavírus. A notoriedade pública que a afirmação lhe trouxe nada é se comparada com a decisão que entrou esta sexta-feira em vigor na Geórgia: reabrir grande parte das empresas e fazer o estado regressar quase à normalidade.

Desde o início desta semana que Brian Kemp anunciou que estava a preparar a abertura da economia com o argumento habitual de que é insustentável manter o estado em quarentena por mais tempo. Encorajado por manifestações no passado fim-de-semana em estados como a Virgínia, o Michigan e o Wisconsin, em que algumas centenas de opositores à quarentena vieram para a rua exigir dos respetivos governadores que reabrissem as empresas, Kemp foi falando com a Casa Branca a dar conta dos seus planos.

Falou com o Presidente e o vice-presidente e ambos lhe manifestaram apoio no regresso à normalidade, garantiram inúmeras fontes aos media americanos. Resoluto, o governador decidiu então autorizar a abertura de cabeleireiros, manicures, ginásios, spas, lojas para tatuagens, salões de bowling, tudo a começar nesta sexta-feira. Restaurantes, cinemas e teatros abrem na próxima segunda-feira.

Para além de não se perceber a urgência de fazer tatuagens ou jogar bowling, Kemp não explicou como será possível manter algum distanciamento social em salões de cabeleireiros, manicures, ginásios, saunas, spas, etc. Uma das conselheiras científicas que trabalha com Trump na Casa Branca, a médica e diplomata Deborah Birx, interrogada sobre o assunto, ficou embaraçada e engendrou uma resposta diplomática: “espero que os georgianos sejam criativos”.

Mas nos bastidores, Birx e Anthony Fauci, o outro virologista a trabalhar na Casa Branca, terão convencido o Presidente sobre os enormes riscos dos planos do governador da Geórgia e Trump acabou por tirar o tapete a Brian Kemp. Na quinta-feira, no briefing diário, o Presidente disse que "não estava satisfeito” com os planos do governador e que eles “não cumpriam as diretivas da Casa Branca”. Criticou em particular a abertura de spas e, segundo a imprensa americana, Trump teria manifestado esse descontentamento em telefonema pessoal a Kemp.

No entanto, 48 horas antes, o Presidente tinha elogiado em público o governador e fez dele uma espécie de pioneiro na sua luta pela reabertura da economia do país. “É um homem muito capaz. Ele sabe o que está a fazer. Tem feito um trabalho muito bom como governador”, disse na terça-feira durante o briefing diário. No mesmo dia em que, em telefonema pessoal, encorajou Kemp a avançar com os planos, tal como terá feito o vice-presidente Mike Pence. E o governador avançou, convencido de que cumpria os desejos presidenciais. Tinha luz verde.

É uma mudança de atitude que não surpreende ninguém, naturalmente, vinda de alguém que é capaz de dizer uma coisa e o seu contrário na mesma frase. Mas numa crise como a do coronavírus, as constantes mudanças de posição e as mensagens contraditórias que Trump vai dando ao país são o espelho do absoluto desnorte presidencial e têm encorajado os seus adeptos incondicionais a tomar atitudes irresponsáveis que podem custar vidas.

O exemplo mais extremo ocorreu no passado fim-de-semana quando, perante as manifestações de opositores à quarentena em três estados, Trump twitou a seguir “Libertem a Virgínia! Libertem o Wisconsin! Libertem o Minnesota!”. Foram manifestações promovidas por gente ligada ao Tea Party (uma fação radical dos republicanos) e, em alguns casos, a movimentos conotados com a extrema-direita, onde se viram armas empunhadas por homens vestidos como paramilitares e bandeiras da Confederação sulista, derrotada na guerra civil que pôs termo à escravatura em meados do século XIX.

São estados governados por democratas que aplicaram medidas de confinamento e que as vão manter enquanto a situação o exigir e os especialistas o recomendarem. Ao encorajar à “libertação” desses estados, Trump não só reduz a questão do confinamento a uma luta partidária entre democratas e republicanos, como incita à rebelião contra governadores que afinal estão a fazer aquilo que a Casa Branca, apesar de tudo, ainda recomenda — manter o país em quarentena. E, ao fazê-lo, exacerba ânimos e suscita tensões em torno de um problema em que o país deveria estar unido e articulado.

Mayor versus governador

É o que está a acontecer na Geórgia. E um pouco por todo o país, onde se geraram tensões entre presidentes de câmara e os governadores dos respetivos estados. Na Geórgia, a mayor de Atlanta, a capital e a maior cidade do estado, com quase 6 milhões de habitantes, defende a manutenção da quarentena, em total oposição à decisão do governador.

Embora a decisão do governador seja soberana nesta matéria, a mayor da cidade apelou aos seus habitantes para que mantenham as medidas cautelares adotadas desde cedo. Atlanta é uma cidade com um significativo poder económico e simbólico. É a sede da Coca-Cola, da CNN e da Delta Airlines, a maior companhia aérea americana. O seu aeroporto é um dos maiores do país e funciona como um “hub” importante para a América Latina.

Terra natal de Martin Luther King, desempenhou um papel decisivo nas lutas pelos direitos cívicos dos anos 1960. De lá veio o primeiro embaixador negro americano nas Nações Unidas, Andrew Young, escolhido pelo Presidente Jimmy Carter, também ele georgiano. Young foi companheiro de Luther King e depois de ter sido embaixador na ONU, foi eleito mayor de Atlanta. A cidade tem tido sempre presidentes de câmara eleitos pelo Partido Democrático, o que contrasta com o resto do estado, sempre governado por republicanos.

A atual mayor, Keisha Bottoms, é uma mulher negra que avançou com medidas de confinamento na cidade semanas antes do governador ter tomado qualquer atitude e agora discorda abertamente do seu fim. No que tem o apoio dos especialistas de saúde locais, que o governador não consultou. Não pode sobrepor-se à decisão de Kemp e confessa que ficou surpreendida com as críticas que Trump lhe fez. “E ainda estou mais surpreendida por concordar com o Presidente”, ironizou. Mas a sua atitude firme já lhe valeu um insulto racista recebido no telemóvel: “Preta (nigger), cala-te e reabre Atlanta”.

Os números no estado parecem dar-lhe razão. O departamento de saúde pública da Geórgia revelou que morreram 872 pessoas e há 21.500 infetados, sendo que desde o momento em que o governador anunciou os planos de reabertura morreram 100 pessoas e surgiram mais 2 mil infetados. No sudoeste do estado há locais com algumas das maiores taxas de infeção. Apenas num concelho com menos de 100 mil habitantes há mil infetados e dezenas de mortes. Mais: até quinta-feira só tinham sido feitos 101.062 testes, o que dá uma média de 981 por 100 mil habitantes. Neste aspeto, a Geórgia estará no 36º lugar entre os estados americanos, uma má classificação.

O governador escolheu um painel de especialistas em saúde para o aconselhar, mas não os consultou antes de decidir reabrir os negócios, nem informou as estruturas locais de saúde para se precaverem para as novas diretivas. Segundo o “Washington Post”, há vários responsáveis de centros de saúde e hospitais a queixarem-se da falta de recursos.

Também há responsáveis locais republicanos a discordar do governador. A autarca de uma cidade subúrbio de Atlanta, Roswell, entende que Kemp está a avançar demasiado cedo. “Tenha cuidado, mantenha-se seguro. A ordem do governador não obriga as empresas a abrir. Não obriga os cidadãos a comparecer ou a ir a esses locais”, alertou, dirigindo-se aos habitantes.

A população em geral foi também apanhada de surpresa e comerciantes que falaram ao “Post” mostraram-se indisponíveis para reabrir os seus negócios nas condições atuais. Pelo menos em Atlanta é provável que a maioria das pessoas opte por manter as medidas de segurança, seguindo os conselhos da presidente da câmara e não as diretivas do governador.

Esta tensão entre governadores e autarcas não é exclusivo da Geórgia. Noutros estados há braços-de-ferro idênticos, como no Oklahoma, onde o governador quer reabrir, mas os mayors das maiores cidades resistem. E no Nevada, sucede o oposto. A mayor de Las Vegas, que é independente, quer reabrir, enquanto o governador do estado mantém a quarentena.

Las Vegas vive dos casinos, do jogo, da vida noturna, dos espetáculos, do turismo, e neste momento está vazia. A presidente da câmara tem pressionado para a reabertura da “cidade do pecado”, como é conhecida, mas esta semana numa entrevista à CNN, interrogada sobre se levaria a família a um casino após a reabertura, foi incapaz de responder afirmativamente…

Mais perigos no sul

De qualquer modo, a Geórgia será o primeiro caso de um estado americano a levantar o confinamento social pela mão de um governador que dele discorda e está ansioso por ver a economia a funcionar. O que lá se passar nos próximos dias será um indicador importante para todos: para os não querem sacrificar vidas em nome da recuperação económica e para os que não se importam de arriscar vidas em nome dessa recuperação económica.

É um dilema que se situa hoje sobretudo no sul dos EUA, porque é aí que predominam os governadores republicanos, ansiosos por repor os negócios a funcionar. Mas é aí também que as consequências de decisões precipitadas podem ser mais mortíferas, porque é nessas regiões que existem alguns dos estados mais pobres do país, com populações mais vulneráveis, maior incidência de doenças cardiovasculares e diabetes, e serviços de saúde mais frágeis. Acresce que o desemprego galopante — que esta semana atingiu 26 milhões de pessoas — tem outra consequência funesta. A perda do emprego significa para muitos também a perda do seguro de saúde.

E é aí também que se encontram os eleitores mais fiéis de Trump e do Partido Republicano, que seguem atentamente as declarações do Presidente e a Fox News, que têm sistematicamente desvalorizado os efeitos do vírus. Se estes eleitores sofrerem na pele as consequências letais do covid-19 é provável que a sua fidelidade a Trump baixe significativamente. Daí que os desejos dos responsáveis republicanos de reabrirem a economia sejam refreados pelo risco político que essa decisão pode acarretar.

Na Florida, por exemplo, que sendo um estado rico tem uma população muito envelhecida, constituída sobretudo por reformados, a decisão de abrir as praias caiu mal entre os habitantes e uma sondagem recente colocava Trump pelo menos dez pontos atrás do seu potencial adversário, Joe Biden, entre os que têm mais de 65 anos.

De resto, se no início da crise provocada pelo coronavírus, as sondagens favoreceram Trump, agora parecem estar a puni-lo. Há algumas semanas, tinha atingido os 49% de popularidade, o índice mais alto desde a eleição, mas desceu entretanto para os 43%, os valores habituais. Em média, 51% dos americanos reprovam a conduta presidencial, enquanto 46% a aprovam, mas quase 58% pensam que o país vai na direção errada e só 35% acham que vai na direção certa.

Na verdade, é necessário algum esforço para acreditar que o país vai na direção certa quando se ouve o Presidente advogar o uso de desinfetante e de exposição à luz para combater o coronavírus. Foi o que fez no briefing público de quinta-feira, após ouvir a descrição de uma experiência laboratorial sobre os efeitos do calor no covid-19. Decidiu elaborar sobre o assunto e afirmou que seria interessante ver os efeitos da lixívia na limpeza do vírus do nosso corpo, que poderia ser submetido a raios ultra-violetas ou de outro tipo para ajudar na limpeza. “Seria interessante verificar isso”, ponderou.

Quem não achou a ideia nada interessante foram vários médicos e um fabricante de desinfetante que vieram a público alertar para os perigos de injectar ou ingerir lixívia. “As pessoas podem morrer. É altamente tóxico”, disse um médico da Columbia University, em Nova Iorque, preocupado com o impacto das declarações do Presidente junto de muita gente que o escuta.

Os Estados Unidos registam agora mais de 50 mil mortos, mais do dobro de Itália, e quase um milhão de infetados. Já são, de longe, o país com maior número de vítimas e tudo leva a crer que no interior do país a epidemia esteja longe de controlada.
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