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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

O fim das crianças super-protegidas

24 abr, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


A brutalidade da covid-19 também acabará com esta deseducação moral das crianças. Amá-las não é fingir que o mundo é uma utopia sem dor, medo ou morte. Amá-las é prepará-las para a dureza da vidinha

Nós levámos pela mão a nossa filha mais velha a um velório quando ela tinha quatro anos. Calculo que boa parte das pessoas fica chocada com esta imagem: uma criança a entrar no ambiente soturno da capela mortuária. Fica ou ficava? Se calhar, faz sentido usar o passado, porque um dos efeitos morais da pandemia é o fim da super-protecção das crianças, uma moda iniciada nos anos 90 e que perdurou até hoje, até este momento.

Essa super-proteção, que critiquei nesta coluna dezenas de vezes, era uma marca de um ocidente rico e que se julgava uma ilha mágica a flutuar acima dos conflitos da história humana e acima dos ataques da história natural. A covid-19 estilhaçou essa levitação ahistórica: os ocidentais têm agora os pés enterrados no lodo da história natural, uma peste. A superproteção das crianças, um luxo da levitação ahistórica, não sobreviverá a esta nova dureza histórica. A geração covid será intrinsecamente mais dura ou madura.

"É preciso educar para a dureza da vida". Esta frase, que me educou e que tento aplicar às minha filhas, cria urticária à pedagogia do Neverland. A super-proteção faz com que todas as crianças sejam tratadas como “crianças especiais”. É como se todas as crianças tivessem alguma condição especial do foro neurológico. Ora, felizmente, a esmagadora maioria das crianças é neurotípica, não tem de ser tratada como se fosse portadora de uma condição debilitante. É só uma criança. Mas, ao ser educada com o escudo permanente da superproteção, a criança transforma-se num jovem que não sabe lidar com a dor, frustração e medo. Como têm salientado autores americanos como David Brooks ou Jonathan Haidt, os efeitos desta educação estão à vista de todos: os números de depressão e ansiedade nos adolescentes e jovens adultos são altíssimos, tal como os números do suicídio, mesmo em raparigas.

Ao retirar o ocidente da sua bolha a histórica, a brutalidade da covid-19 também acabará com esta deseducação moral das crianças. Amá-las não é fingir que o mundo é uma utopia sem dor, medo ou morte. Amá-las é prepará-las para a dureza da vidinha. Ir a velório não é ofensivo para a infância. É uma vacina moral necessária para o jovem adulto.

Comentários
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  • Manuela
    25 abr, 2020 00:46
    "Amá-las é prepará-las para a dureza da vidinha." As crianças do meu tempo iam para a escola aos 7 anos, agora vão para a pré-primária aos 5 anos! As crianças devem ter um tempo para aprender a andar, depois para aprender a falar, depois um tempo para brincarem com brinquedos e dos 5 as 7 anos é tempo para se habituarem a saber estar na vida, para não irem de 'chucha' para a escola! têm que aprender a estar, saber que a partir daí, os brinquedos são guardados! e que na vida é preciso saber ler, escrever, somar, subtrair, multiplicar e dividir! porque um dia vão ter uma profissão como o pai e a mãe, porque a comida não cai do Céu! o vestuário não cai do Céu! nada se consegue sem esforço! As crianças vão com a mãe às compras e habituam-se! depois vão sozinhas comprar o pão ou as bolachas! Isto que eu acabo de escrever, foi mais ou menos como se estivesse a falar com as próprias crianças! Nos tempos de Hoje as mães são muito novas, as crianças nascem e vão de fralda para um infantário! as educadoras ensinam a cantar, a correr, a recortar bonecos de papel, a fazer jogos e por fim a estarem quietos, senão surge uma palmada de vez em quando! do infantário vão para a escola e da escola vão para casa a esfregar os olhos com sono porque saem da cama muito cedo de manhã! O tempo não estica e é este ritmo que seguem! Se apanharem uma professora que seja meia psicóloga, têm muita sorte! senão, não crescem por dentro, regam-se com o chuveiro e crescem como as plantas! Bom fim de semana!
  • Cidadao
    24 abr, 2020 Lisboa 13:27
    Antes de pensar em educar as crianças, pense em educar os "adultos" que deviam educar essas crianças. Alguns, parecem não ter deixado a idade da adolescência. Outros não inculcam nada na mente das crianças: dão-lhes telemóveis, playstation, gadgets de electronica e deixam-nos à vontade. A falta de orientação de certos "adultos" vê-se tão bem agora em confinamento, quando se percebe que deixam as crianças dormir quase todo o dia, e à noite, às 4 da madrugada elas ainda estão acordadas, a correr e a guinchar pela casa ...
  • João Lopes
    24 abr, 2020 Viseu 11:44
    Artigo interessante!