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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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1,5 biliões é muito dinheiro. São doze zeros à direita

22 abr, 2020 • Opinião de Graça Franco


O princípio é claro: para grandes males, grandes remédios. Estando a União confrontada com uma depressão económica ao estilo de 1929, não é crível que possa resolvê-la com base em formulas que, até agora, se mostraram escassas para resolver crises quatro ou cinco vezes inferiores.

O primeiro ministro espanhol não faz a coisa por menos: ou a Europa cria um fundo de reestruturação económica de, pelo menos, 1,5 biliões de euros (dos velhos ou seja 1,5 milhões de milhões e não milhares de milhões) ou a ajuda ficará sempre aquém do necessário. Nesse caso, a União arrisca-se a perder a guerra, não propriamente contra o vírus inimigo, mas contra todos os outros vírus que a ameaçam: do vírus da irrelevância, a acabar no vírus da dissolução. Talvez o socialista espanhol tenha razão. Macron, mais modesto, reclama apenas 400 mil milhões, mas também a fundo perdido. Como sempre, cabe à Alemanha escolher.

No próximo Conselho Extraordinário Europeu, previsto para esta quinta-feira, não vai ser a economia “stupid”, mas a política a jogar-se no tabuleiro mundial. Não haverá mais tecnicidades do estilo, financiamos as ajudas com “coronobonds” ou “eurobonds”, através do Mecanismo de Estabilidade ou do Banco Europeu? A forma será uma questão subalterna a remeter, desta vez, para a Comissão Europeia.
Do que se trata é do reconhecimento unânime do princípio da necessidade de um novo fundo. Foi isso que conseguiu o Eurogrupo: levou três dias a debater e, ao fim de uma longa maratona, chegou apenas a acordo sobre os fundos de emergência imediatos: 540 mil milhões de ajudas a repartir entre todos: 100 mil milhões a desviar do actual Quadro Plurianual, 200 mil milhões a emprestar através do BEI às PME e outros 200 mil milhões de empréstimos diretamente aos Estados a efectuar pelo MEE (o gestor dos fundos de resgate), mas, agora, sem memorandos obrigatórios desde que se destinem a cobrir as verbas gastas direta ou indiretamente com o combate à crise sanitária. O mais, e “o mais” aqui é o essencial, ficou reservado ao Conselho Europeu desta semana, com a recomendação para que se cumpram os princípios fixados nos Tratados (uma subtileza visando impedir a emissão conjunta de dívida), embora fique em aberto toda a margem de criatividade.
Agora, está apenas em causa o mandato que os 26 vão dar à Comissão Europeia para pôr em marcha o plano de reestruturação.
Terá de ser uma decisão política: quanto e como estará o clube disposto a gastar em benefício de todos. Sabendo bem que, seja o que for que fique decidido, terá de ser financiado. Por obrigações perpétuas? Como sugere o chefe de Governo espanhol? É uma possibilidade. No fundo, um empréstimo em que apenas os juros serão pagos ao longo de um período suficientemente longo, bastando para isso criar novos impostos ambientais ou outros.
Hoje, o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, aqui na Renascença, sugeria uma espécie de imposto de “guerra”, aplicado ao património de todos os cidadãos europeus. Mas pode ser outro mecanismo qualquer. O montante em causa? O equivalente a três por cento do PIB comunitário, sugerem vários primeiros-ministros encabeçados pelo nosso vizinho Pedro Sanchez. Um dos mais afectados (como a Itália) pela pandemia. Sabendo que o actual Orçamento ainda está abaixo dos 2 por cento, não vai ser fácil.
O princípio é claro: para grandes males, grandes remédios. Estando a União confrontada com uma depressão económica ao estilo de 1929, não é crível que possa resolvê-la com base em formulas que, até agora, se mostraram escassas para resolver crises quatro ou cinco vezes inferiores.
No fundo, ao mais alto nível político ( ultrapassado o plano técnico dos ministros das finanças), os grandes decisores europeus vão escolher amanhã se são ou não dignos do legado que receberam.
Para que vale ser cidadão da Europa? Provavelmente, para isto: ouvir a uma só voz,como ouvimos a do ex-presidente do Banco Central travar o último ataque especulativo em plena crise da Troika, uma afirmação de solidariedade sem limites. Draghi teve a coragem de salvar o euro através de uma declaração política: o Banco Central Europeu fará tudo o que for preciso (e creiam que será o suficiente!) para salvar o euro.
Hoje, trata-se de dizer o mesmo: creiam que os 26 farão tudo o que for preciso para salvar o Mercado Comum. Com a garantia renovada de que será “o suficiente”. E, acreditemos ou não, é mesmo essa coisa básica e essencial, o princípio da livre circulação de mercadorias na zona que, desta vez, está em perigo. Como ontem recordava Mário Centeno, em entrevista ao Público, é isso que está posto em causa. O princípio mais básico e inicial da união.
Portugal, lembrou Centeno, tem hoje 45 por cento da sua riqueza dependente das exportações, maioritariamente para os países da zona. Mas, esta excelente notícia até há poucos meses, tornou-se, ultimamente, uma quase ameaça. A solução não está, não pode estar, num regresso aos proteccionismos.
O mundo está confinado. E, tal como os respectivos cidadãos estão fechados em casa, os países começam a fechar-se em si mesmos. A pensar que, se calhar, não foi assim tão boa ideia colocar as suas redes de energia nas mãos das empresas estatais chinesas, as suas indústrias têxteis nas mãos das fábricas de confecção chinesas, as suas máscaras cirúrgicas nas mãos da indústria chinesa, a sua banca e as suas indústrias seguradoras nas mãos dos accionistas chineses. Tal como o Japão do princípio dos anos 90, antes de ficar apanhado nas redes da deflação, a China parece agora querer dominar o mundo. Parece, aliás, que já o comprou.
Sentimo-nos mal. A febre subiu. Começamos a tossir e logo aí descobrimos, mesmo sem sabermos o nome do covid, que algo se alterou nos últimos anos em termos de diversificação das nossas fontes de fornecimento. Percebemos que o vírus da China chegou antes dos ventiladores que hão-de chegar da China, e as luvas e o gel e, nalguns casos os cientistas, os médicos, os equipamentos. Há uns meses, só queríamos comprar barato e agora pagamos o que for preciso para sobreviver. A China tornou-se a grande empresa que tememos que venha a abusar da sua posição dominante.
Em Janeiro, Pequim assinou com Trump um acordo preferencial de compra de petróleo, puxando o tapete a países, como Angola, que tinham mais de 75 por cento das suas exportações de crude dependentes da China. A maior potência asiática não deixará de somar à diplomacia “médica”, que está a atingir um pico inimaginável, a mais agressiva das políticas económicas. Agora que as suas peças de xadrez já ocupam os lugares chaves no novo tabuleiro do jogo internacional.
Caímos na armadilha da nossa própria ganância. A exploração do trabalho asiático ofereceu-nos produtos a preços imbatíveis, quisemos com isso reduzir todos os custos e ganhar cada vez mais. Finalmente, acordámos e espantamo-nos: vale a pena pagar um pouco mais para ser livre, e eis-nos todos a resvalar para a armadilha proteccionista. Os nosso super moderno “cluster” da moda depende, em mais de 80 por cento, das matérias-primas que nos chegam da China. Como é possível? A nossa indústria automóvel depende das peças que chegam da China, e assim sucessivamente.
Não produzimos nada inteiramente nosso? Os sapatos das feiras de Milão? Não. O que temos? Temos o velho queijo da Serra, as laranjas do Algarve, o azeite alentejano, vinho do Porto, bordados de Viana, doçaria regional, sardinha em lata (que não se fica pelo Metro!) . Vale nos a ciência, onde o conhecimento que produzimos é tão bom ou melhor que o dos demais Mas até esse beneficia de menores sinergias e massa critica, temos realmente pouco mais. Não chega. Fomos longe demais nas dependências.
Não tivemos a visão estratégica que se impunha. Nem nós, nem os nossos vizinhos. E, como Centeno lembrava, nós temos uma pequena e frágil economia aberta. Mas há, entre nós, economias ainda mais abertas, ainda mais dependentes da evolução da conjuntura alheia. Como os rabugentos holandeses que neste ponto não estão muito melhores do que nós. Talvez amanhã isso jogue a nosso favor.
Não nos podemos enganar e pensar que foi um erro cultivar a interdependência. Fomos longe demais? Talvez. Mas no mundo não é suposto nenhum país produzir tudo, o ganho da globalização é esse mesmo. O culto da auto-suficiência é um princípio caro, retrógrado e perigoso. É como reaprender a andar, sem reparar que só o conseguimos fazer devagar e em marcha atrás.
Afinal, também é chinês o velho ditado que diz que uma série de frágeis pauzinhos de bambu podem dobrar mas não quebram. Mas para os fazer quebrar é fácil, basta separá-los (foi essa a estratégia já adoptada com a guerra instada pela compra dos equipamentos médicos em falta….). Quem dá mais?
É altura de jogarmos com a mesma visão de longo prazo e usarmos a mesma paciência para sair da crise dos nossos fornecedores.
Amanhã o que está em causa não é apenas a salvação da nossa economia. Joga-se o nosso modo de vida. Os nossos valores de igualdade, solidariedade e liberdade. O risco é o de nos deixarmos convencer que estas crises são mais fáceis de combater olhando só às nas nossas próprias necessidades e opiniões, sem olhar às dos outros, invejando a falácia dos sucessos dos regimes ditatoriais. Com a economia joga-se a Democracia.
Esta segunda feira o mercado de futuros do petróleo em Nova Yorque apresentava um preço nunca visto ( menos 40 dólares por barril). Leu bem. Nas vésperas de fechar um gigantesco contrato de “futuros” os especuladores apenas queriam alguém a quem pudessem pagar para armazenar a mercadoria que nunca teriam capacidade de guardar e em rigor nunca tinham pensado adquirir. É o problema do jogo de apostas sobre preços futuros de mercadorias que ninguém quer comprar. Fora diamantes e sempre se arranjavam uns cofres, mas petróleo?
As reservas nacionais (USA incluídos) estão em máximos. Os petroleiros atracados aos portos, estão cheios, as refinarias estão na máxima capacidade. A procura escasseia. A Galp já fechou, transitoriamente, as duas refinarias.
E mesmo com uma retoma lenta e dolorosa o petróleo sofrerá ainda maior concorrência das eléctricas. O mercado rodoviário reconverteu-se. Vai ser preciso esperar pelo inverno a Leste para escoar alguma mercadoria.

Os especuladores não desapareceram na última crise. Estão de volta. Era bom não os deixar à solta mais uma vez. Quanto mais depressa nos reerguermos, menos margem de acção lhes deixaremos. As empresas de “rating” já nos fazem estremecer de novo. É as taxas de juro pagas pelas nossas emissões de dívida desta quarta-feira, a seis e dez anos ficaram-se pelos 450 milhões pagando ainda juros baixos mas três vezes superiores aos da última emissão. Vai ser esse o novo normal.

Comentários
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  • nwe
    23 abr, 2020 13:32
    todos nós temos dias maus.