Pandemia de Covid-19

Berlengas, onde o confinamento é um hábito e o turismo uma incerteza

16 abr, 2020 - 07:00 • Luís Aresta

Enquanto as empresas de lanchas turísticas torcem para que a pandemia passe depressa, pescadores e faroleiros entregam-se ao isolamento absoluto no arquipélago a Oeste de Peniche.

A+ / A-

Quando o faroleiro Pedro Sousa percorre a escada que o conduz até ao ponto mais alto do farol da Berlenga, sabe que cada um daqueles 95 degraus vai valer a pena "porque, a partir da lanterna, a vista é deslumbrante".

Uma paisagem no mínimo reconfortante, para quem se habituou ao isolamento por ciclos de sete dias, com a semana a começar à terça-feira, quando o navio da Marinha "N.T.M. Berlenga" chega à ilha para assegurar a rendição.

Por precaução, são sempre dois os homens de serviço permanente no farol da Berlenga, norma que decorre "da eventualidade de uma emergência, para que haja sempre um outro camarada que possa lançar o alerta, seja à própria Marinha seja ao ISN (Instituto de Socorros a Náufragos", explica Pedro Sousa, à Renascença.

De há quatro anos para cá que este faroleiro se habituou a ter no farol a sua "primeira casa", seja na ilha da Berlenga, seja no farol do Cabo Carvoeiro, onde também presta serviço.

Para um faroleiro, o isolamento "é banal"

"Um faroleiro tem que estar preparado para se sentir isolado", diz Pedro Sousa, reconhecendo, porém, que, no caso do farol da Berlenga, "estar literalmente no meio do mar reforça esse sentido de isolamento". As tarefas para cumprir garantem que são poucos os momentos de monotonia do faroleiro. Vão desde a verificação das cisternas que armazenam água da chuva para consumo no farol, à verificação regular da operacionalidade dos quadros técnicos que garantem o funcionamento do sistema luminoso, "a principal preocupação, porque a luz do farol é a salvaguarda de quem navega no mar".

Esse importante sinal da presença física da ilha, que abrange 20 milhas náuticas (37KM), é emitido a partir da torre de 29 metros de altura, onde duas óticas de "leds" desempenham agora o mesmo papel que, em 1842 (ano da entrada em funcionamento do farol da Berlenga), era assegurado pelos refletores parabólicos associados a 16 candeeiros de Argand, alimentados a azeite.

A energia solar, que chegou ao farol no início deste século, e os geradores, como alternativa, alimentam o sistema que Pedro Sousa e o camarada de serviço na Berlenga, como "faroleiros e homens dos sete ofícios", têm a obrigação de manter operacional.

Quando o trabalho não lhe toma todo o tempo, o faroleiro preenche as horas mortas a fazer aquilo que mais aprecia. No caso de Pedro Sousa, "ler, pintar, ver televisão e fazer algum exercício porque, em sete dias de isolamento, é importante assegurar alguma atividade física", assinala, rejeitando estados de depressão. Reconhece, no entanto, que "há momentos em que o isolamento se torma mais difícil, como por exemplo, na passagem de ano ou na quadra natalícia em que, felizmente agora, as novas tecnologias permitem alguma proximidade à família, mesmo estando distante".

Alguma paz não faz mal a ninguém

"Este sossego é extraordinário, digo-lhe, já estava com saudades de estar aqui", diz Pedro Jorge, pescador profissional, surpreendido pelo telefonema da Renascença, acabado de chegar às Berlengas "para ficar enquanto o estado do tempo permitir".

De há dez anos para cá que um abrigo "virado à parte sul" da Berlenga Grande é como se fosse a primeira casa de Pedro Jorge; dele e dos dois homens da "companha", com quem reparte os silêncios do lugar e o bater das ondas no casco da embarcação em que diariamente se entrega à faina.

"É o dia todo no mar, sem ir à ilha. Saímos antes de o sol nascer, trabalhamos até ao meio-dia e o almoço é sempre, sempre peixe. A seguir voltamos à pesca; só acabamos o trabalho pelas nove ou dez da noite. Aí, vamos para dentro, fechamos a porta e ali estamos os três", diz o pescador de 45 anos, para quem o isolamento é ditado pela pesca no mar das Berlengas e não uma obrigação decretada por uma qualquer epidemia.

Robalos, sargos e douradas - espécies "pescadas à cana" - são, para Pedro Jorge, mais do que o pão de cada dia na hora de almoço, o ganha-pão para todo o ano. Mesmo nesta época, com muitos dos restaurantes de Peniche encerrados por culpa no novo coronavírus.

Robalos, sargos e douradas - espécies "pescadas à cana" - são, para Pedro Jorge, mais do que o pão de cada dia na hora de almoço, o ganha-pão para todo o ano. Mesmo nesta época, com muitos dos restaurantes de Peniche encerrados por culpa no novo coronavírus.

"Vendemos a mesma quantidade, os valores é que foram mais baixos, mas as coisas nem correram tão mal quanto isso. É verdade que no ano passado batemos recordes de preços e pela Páscoa chegámos a vender o quilo do robalo a 40 euros. Este ano não esteve tão bom, mas ainda vendemos a 22 ou 23 euros, e a dourada entre 18 a 24 euros. Não é verdade que o peixe esteja a ser vendido tão barato como por aí se ouve dizer", esclarece o pescador, menos temeroso do mar do que dos efeitos do novo coronavírus.

"Há quatro anos foi-me diagnosticada uma bronquite asmática e receio que a nova doença me possa atingir", diz, para logo a seguir se entregar de novo à "paz e à tranquilidade" do seu abrigo nas Berlengas, tão longe quanto possível dos noticiários que, pela hora do jantar, servem números de vítimas, de máscaras e de ventiladores.

"Como as coisas estão tão complicadas aí no continente, às vezes é melhor não ouvir tantas notícias. São muitas horas sozinhos e pode a cabeça não funcionar como deve ser", faz notar Pedro Jorge, para quem o isolamento em metade do ano se tornou numa rotina, habitualmente quebrada com a chegada dos primeiros turistas. Só que, este ano, não foi assim.

"Normalmente as empresas turísticas já estariam a trazer algumas pessoas para aqui, mas este ano é mesmo um isolamento total. Não vemos ninguém", nota.

À espera dos turistas e que a pandemia vá de vez

É o isolamento absoluto das Berlengas, associado às caraterísticas únicas do lugar, que fazem do pequeno arquipélago situado 6 milhas a oeste do Cabo Carvoeiro, um ponto de atração turística. Reserva Natural da Biosfera, as Berlengas incluem uma zona marinha de 985 hectares e servem de "habitat" a várias aves migratórias, alguma ameaçadas, como o Airo - um pássaro que mais parece uma "miniatura de pinguim", eleito como símbolo da área protegida.

A vegetação inclui espécies como a Armeria berlegensis e a Herniaria berlengiana, cujos nomes, como se percebe, estão associados à Berlenga, ilha que compõe o arquipélago, juntamente com os ilhéus das Estelas e dos Farilhões.

Pois, não fora a Covid-19 e, por esta altura do ano, já Joana Completo estaria a transportar turistas para o local. Joana é sócio-gerente da "Feeling Berlenga", que "representa a união de esforços entre três das mais antigas empresas a operar na área geográfica de Peniche" e que neste ano de 2020 completa uma década de viagens marítimo-turísticas, entre Peniche e as Berlengas. A empresa tem licença para desembarcar 116 pessoas das 550 que, face ao risco de descontrolo ambiental, as autoridades fixaram como limite máximo para permanência, em simultâneo, na ilha da Berlenga.

"Dispomos de oito embarcações, algumas rápidas, para ligações de 20 a 25 minutos, com capacidade entre 12 a 18 passageiros ou, em alternativa, embarcações calmas para 45 a 50 minutos de ligação e capacidade entre 12 a 20 passageiros", explica a empresária, confrontada com tudo aquilo que não queria para assinalar os 10 anos de atividade.

"No início de março ainda fizemos duas ou três viagens, mas quando se começou a falar da pandemia, e antes de qualquer proibição, decidimos encerrar até que tudo estivesse mais calmo. A nossa clientela é muito heterogénea, com turistas de várias origens, quem sabe até se algum que pudesse ser portador do vírus sem o saber", esclarece Joana Completo, que contabiliza em "alguns milhares de euros" o prejuízo provocado na empresa pela impossibilidade, que entretanto se tornou um impeditivo legal, de transportar turistas para as Berlengas.

"Estamos muito preocupados", sublinha, "porque para além de não sabermos quando poderão reabrir as atividades marítimo-turísticas, existe a perfeita noção de que este será um ano muito difícil, como provam os cancelamentos de reservas feitas por grupos de 40 e 50 pessoas". Joana sabe que a crise provocada pela pandemia "vai ter impacto em toda a época, porque há quem já tivesse cancelado as férias, há estudantes que vão ter exames mais tarde e há até quem esteja sem receber ordenado e para quem as férias serão a última das preocupações".

Em suma, visitar as grutas marinhas em lanchas com fundo de vidro, procurar golfinhos, fazer batismos de mergulho ou passeios pedestres guiados nas Berlengas, serão, este verão, um privilégio para poucos, muito poucos.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+