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Covid-19 e as desigualdades

“Há uma diminuição do sistema imunitário das famílias em relação à pobreza"

10 abr, 2020 - 08:40 • João Carlos Malta

Carlos Farinha Rodrigues, uma referência nacional na área do estudo de desigualdades, defende que não é com as receitas do passado que vamos resolver os problemas que o novo coronavírus vai trazer. Argumenta que a paragem necessária nas escolas, mesmo com todo o esforço, já está a exponenciar os efeitos da crise e os desequilíbrios sociais. E deixa um alerta: “Vamos ter uma curva na exclusão social que também temos de aplanar”.

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Carlos Farinha Rodrigues é professor e investigador no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e uma das vozes mais avalizadas em Portugal para falar de desigualdade, área a que tem dedicado longos anos de estudo.

Em entrevista à Renascença alerta para a forma como os “invisíveis” estão já a sofrer com a pandemia do Covid-19, nomeadamente os que trabalham na economia informal.

Em relação ao interior do país, já antes abandonado, pensa que se hoje estamos a falar de isolamento social, para muitas das famílias que nessas regiões vivem trata-se apenas do acentuar de um isolamento pré-existente.

O coronavírus está já a ter impacto nas desigualdades em Portugal? Se sim, quais são as áreas mais evidentes?

Estamos a verificar já um forte agravamento das condições sociais, principalmente daquelas populações em situação de maior vulnerabilidade. Como é que podemos ver isto?Obviamente a quebra dos rendimentos está já a ser, para muitas famílias, muito expressiva. O aumento do desemprego que também já é possível verificar, vai ter consequências muito profundas.

A lição que tirámos na última crise, é que o desemprego a partir de certos níveis tinha efeitos devastadores em termos das condições sociais e dos níveis de pobreza. Aí claramente já estamos a detetar um conjunto muito forte de indícios que infelizmente se vão acentuar nos próximos dias. E não temos só a economia formal, temos a paralisação de muitos setores da economia informal − que era a forma de sustento de muitas destas pessoas.

Serão esses a sofrer mais?

Sim, essa economia informal que não é abrangida em larga medida pelos apoios que o Governo está a dar. Aí será o impacto maior.

Pode dar alguns exemplos?

Basta pensar em todos os pequenos comerciantes ambulantes, ou na comunidade cigana, para perceber que aí haverá consequências muito fortes resultantes desta paralisação. Há um outro dado que gostava de realçar que é a experiência que tirámos do ponto de vista social de crises com estas características − apesar de nenhuma ter a dimensão que esta é possível antecipar que irá ter.

Mesmo num cenário em que vários setores da população são afetados, nem todos o são da mesma forma. A intensidade dos efeitos da crise será maior naqueles já eram particularmente vulneráveis. Apesar dos avanços positivos nos últimos quatro a cinco anos em termos de pobreza, continuamos a ter um tecido social muito vulnerável. Esses vão ser os primeiros a sentir o impacto desta crise.

Quem são?

Os indivíduos com uma fraca ligação ao mercado de trabalho, seja porque são trabalhadores informais, seja porque estão a prazo, seja porque têm contratos parciais, vemos que na forma de mitigar a crise através das medidas que o Governo está a ter, estes são os que terão mais dificuldade em beneficiar destas medidas. Não há nenhuma relação formal anterior que lhes permita aceder às medidas que o Governo tem proposto.

Não vamos ter um agravamento apenas das condições sociais e da pobreza que já é hoje óbvio, mas também das desigualdades que se manifestam a vários níveis, da distribuição dos rendimentos, mas também na desigualdade de acesso aos serviços. O que está a acontecer no ensino é um agravamento das desigualdades. Temos tido devido ao esforço abnegado de escolas, professores, e do próprio ministério da Educação para tentar mitigar os efeitos da crise no ano letivo. Mas fazer isso pressupõe ter possibilidades materiais e familiares para o poder fazer. Quando pensamos que há milhares de crianças e jovens que não têm acesso à internet, nem a computadores pessoais, concluímos que são confrontados com uma situação desigual em termos de acesso aos serviços educativos que a escola está a fornecer.

"Quando isto passar os fatores de crise ficam cá e muitos deles vão-se repercutir no futuro e vão ter um longo período para nós podermos recuperar"

Hoje será conhecida a decisão do Governo para as escolas. O possível aprofundamento da tele-escola e do ensino à distância aprofunda as diferenças entre ricos e pobres?

Certamente que sim, nós podemos tentar mitigar, mas isso acontecerá sempre. Deixe-me dar dois ou três exemplos: quando as aulas começarem a ser dadas pela televisão, não é a mesma coisa eu estar em casa com uma família que pode apoiar o desenvolvimento do estudo e incutir métodos de trabalho, que pode acompanhar o estudo, ou, por outro lado, estar numa família em que os país não têm qualquer condição para fazer.

Temo ainda por milhares de crianças em que uma parte significativa da sua alimentação resultava da alimentação que lhe vinha através do sistema de ensino, e isso está muito fragilizado. Há aqui um conjunto de indicadores que nos fazem crer que vai haver um forte agravamento das condições sociais. Não há dúvida nenhuma que isso está já a acontecer.

Mas aquilo que está a ser feito pelas escolas para o travar é suficiente?

Em alguns casos as escolas até estão a dar equipamentos a alunos mais desprotegidos para que eles tenham alguma forma de acompanhar as aulas. Mas essas são formas de mitigação que não vão ter um resultado completo.

Isto vai ter consequências que vão ser tanto ou mais graves quanto maior for a duração desta situação de crise profunda. Neste período o que há a fazer, é controlar a epidemia e minimizar os seus efeitos em termos de medidas e de condições de saúde, mas quando isto passar os fatores de crise ficam cá e muitos deles vão-se repercutir no futuro e vão ter um longo período para nós podermos recuperar.

Que medidas terão de se tomar?

Quando olhamos para as políticas públicas temos de dividi-las em dois períodos: o primeiro, é aquele em que estamos neste momento, que é uma situação de urgência, em que há que tentar minimizar ao máximo s situações de maior precaridade ao mesmo tempo que os esforços principais são canalizadas para o salvar vidas e para o Serviços Nacional de Saúde.

Virá depois um período que tem já de começar a ser planeado, a ser pensado, em que temos de ter respostas de políticas públicas e dos atores sociais de forma a ter uma política integrada de apoio às famílias e aos indivíduos em situação de maior precaridade.

O rendimento mínimo será indispensável, mas não vai ser suficiente. No caso do abano de família igual.

Para quem estuda há muito as desigualdades, este período está a trazer novidades de como os acontecimentos estão a acontecer? Quais?

Nós somos um país que temos elevados níveis de desigualdade. Nos últimos três a quatro anos houve uma redução que foi significativa. Os últimos dados mostravam que os níveis de desigualdade eram os mais baixos desde que temos registo, mas isso não impede que tenhamos latente uma situação de profunda desigualdade.

Esta crise vai agravá-la. Penso que vai agravá-la essencialmente porque vai adicionar a uma profunda desigualdade em termos de rendimentos, uma forte desigualdade no acesso aos serviços, em termos de bens essenciais. Esse vai ser o novo fator de alerta. Esta crise vai acentuar todos os fatores de desigualdade que são epidérmicos quase em simultâneo. E isso que vai tornar a situação particularmente difícil.

Quer concretizar...

Temos o rendimento social de inserção que serve não para os mais pobres, mais para os mais pobres entre os pobres. O Governo, e bem, decidiu manter as pessoas que estavam no rendimento social de inserção, mas mesmo aí temos algumas limitações.

"O rendimento mínimo será indispensável, mas não vai ser suficiente."

O RSI nunca foi pensado exclusivamente como um subsídio, porque se o fosse era um subsidiozeco. Era visto como um apoio ao rendimento mais um esforço de integração social e de reforçar a coesão social dessas famílias. Mas isso agora está completamente parado, porque todos os nossos serviços da Segurança Social estão a fazer o que é possível em termos de teletrabalho e de acompanhamento à distância, mas o contato quotidiano não é possível.

Pode-se dizer que as desigualdades favorecem a propagação do vírus?

Eu teria algum cuidado em fazer essa afirmação, porque é evidente que quando nós temos situações extremamente precárias, quando temos situações sanitárias e de habitação que são muito deficientes e acima de tudo quando temos a necessidade de para sobreviver tentar tudo para obter o rendimento mínimo necessário para as pessoas conseguirem viver − tudo isso é um fator de potenciação.

Eu não diria que é um resultado direto da crise, mas um resultado indireto da própria epidemia. Nós tínhamos desigualdades pré-existentes que continuavam muito elevadas, e esta pandemia e as medidas necessárias para a controlar, reduzem os anticorpos que as famílias tinham para resistir à desigualdade. Há uma diminuição do sistema imunitário das famílias em relação à situação de pobreza.

Esta é uma situação sem precedentes, e por isso com contornos que não são fáceis de antever. Acha que tal como aconteceu com outras crises, não poderemos correr o risco de os mais ricos ficarem mais ricos?

Nesta como em todas as crises, e a experiência é quase unânime, há quem consiga ganhar com as crises. Mesmo quando os efeitos atingem grande parte da população atingem mais uns do que outros. Vamos ter um aumento das desigualdades, e para que isso seja reduzido é necessário que o Governo atue, nesse sentido, para limitar as pessoas que se tentam aproveitar da crise para enriquecer.

Temos conhecimento de casos em que a especulação do preço de bens ligados por exemplo à saúde, revelam comportamentos eticamente condenáveis e que devem ser legalmente punidos.

O que podemos ler, neste mês, sobre a reação à crise e à pandemia, se é verdade que grande parte das nossas empresas têm tido um comportamento altamente responsável e têm dado um contributo efetivo para atenuar a situação, também é possível identificar desde já empresas que se estão a aproveitar disso, para acentuar os seus lucros, ou formas que senão ilícitas pelo menos eticamente condenáveis de passar os custos integrais da crise para os mais vulneráveis, nomeadamente os trabalhadores.

Que casos o chocaram mais?

Não vou por nomes. Isto era inevitável que acontecesse, o que é necessário é que o Governo tenha atenção a esta situação e que tenha meios de controlo e de punir essas situações, quando for caso disso.

Que tipo de políticas podíamos estar a adotar que pudessem ser benéficas para atenuar a desigualdade?

Uma coisa são as medidas de emergência para esta situação, e a esse nível o Governo ainda que de forma insuficiente está a fazê-lo. Para isso é necessário um esforço muito grande dos serviços da Segurança Social, é necessário um diálogo muito grande e uma colaboração com as Instituições de Solidariedade Social, e outras da sociedade civil para minimizar os efeitos. O urgente é pensar em um, dois, três meses o que é que temos de fazer para ter um programa de urgência económica dirigida à economia.

"Temos de estar atentos para que as diferentes velocidades na recuparação não permitam perpetuar e acentuar alguma desigualdade"

Em relação à outra crise, poderia dizer que temos um Governo com uma maior sensibilidade social, mas é necessário que haja medidas concretas. Espero que as políticas que venham a ser criadas não sejam as políticas tradicionais, precisamos de políticas públicas integradas que tenham em conta a situação da pobreza, que tenham em conta as situações da saúde, que considere as questões do desemprego e da recuperação económica.

Na questão da pobreza e da exclusão social, vamos ter uma curva na exclusão social que também temos de aplanar e fazer voltar à situação inicial. Esta recuperação não vai ser rápida. Se tudo correr pelo melhor, é lícito esperar que a partir do terceiro trimestre deste ano, a economia possa voltar a funcionar e a recuperar. Mas não o vai fazer certamente à mesma velocidade em todos os setores, há alguns que vão ter uma recuperação mais lenta. Basta pensar no turismo. Aí temos de ter muita atenção na medida em que essas diferentes velocidades não permitam perpetuar e acentuar alguma desigualdade.

Muitos têm dito que o teletrabalho ir-se-á aprofundar. Que impacto terá sobre o trabalho e sobre as desigualdades no acesso?

As novas formas de encarar o trabalho já vinham de trás. Esta crise também aqui ter um efeito de aceleração. Nunca se pensou que ele podia ser feito a uma velocidade tão grande e também com alguma capacidade de adaptação. Mas isso será possível em alguns setores, mas não será possível em outros. É preciso um cuidado particular em relação aos setores que ficam para trás. Todas as revoluções tecnológicas e alterações no funcionamento do emprego têm consequências, há setores com tendência para desaparecer, outros a reforçar-se.

Mas o que posso dizer é que essas transformações no mercado de trabalho devem ser acompanhadas de grandes preocupações de natureza social.

É expectável que as regiões interiores mais abandonadas fiquem ainda mais abandonadas?

É ainda cedo para o dizer. Esta crise tem uma particularidade que é deixar a capacidade produtiva quase inalterada, mas depende do cuidado que viermos a ter na recuperação que é necessária.

Agora é evidente que nas zonas interiores em que os níveis de pobreza são tradicionalmente maiores do que nas grandes cidades, são sempre regiões muito vulneráveis, seja em termos de rendimentos, mas também em termos de acesso a bens e serviços. A isso junta-se o isolamento das pessoas que lá vivem e dos idosos. Portanto, também aí é preciso ter alguma atenção. Hoje estamos a falar de isolamento social, mas para muitas das famílias do interior do país é o acentuar de um isolamento pré-existente.

O que podíamos fazer de forma diferente para que as desigualdades decrescessem no Mundo?

O país e a Europa no se conjunto tem um conjunto de informação sobre desigualdades que sempre foi muito subalternizado comparativamente a outras áreas da economia. Enquanto tenho indicadores sobre a produção e inflação, ou mesmo sobre o desemprego a nível trimestral e mesmo mensal, a informação sobre as desigualdades que está já à partida restrita à parte económica só existe anualmente e com um ano de desfasamento. Se me perguntar quais os últimos dados oficiais sobre desigualdade dizem respeito ao ano de 2018, que nada tema ver com situação que estamos a ter neste momento.

Temos uma grande dificuldade por falta de informação, pela própria dificuldade de ter essa informação e a subalternização que as políticas públicas sempre colocaram na sua obtenção nestas áreas sociais que torna particularmente difíceis. O que temos é um conjunto de informações por via indireta, seja das IPSS, do Banco Alimentar Contra a Fome, da Cáritas, dos serviços da Segurança Social, através do qual podemos fazer um puzzle de como a sociedade está a evoluir em termos sociais. Não temos possibilidade de ter modelos rigorosos de como está a evoluir a desigualdade e a pobreza. Que está a evoluir diretamente, está. Mas só a posteriori vamos ver os efeitos.

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