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Reportagem

Cuidadores informais. Em tempo de pandemia, "ir ao supermercado é quase fazer férias nas Maldivas"

08 abr, 2020 - 17:56 • Ana Carrilho

A Renascença falou com quatro cuidadoras, cada uma com a sua realidade. Foi saber como têm passado estes dias de pandemia e como é que “dão a volta” ao isolamento social. “Se eu for infetada, quem é que vem tomar conta das minhas filhas, da minha mãe, da tia e do meu marido?", pergunta Helena.

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Cuidadores informais - Em tempo de pandemia "ir ao supermercado é quase fazer férias nas Maldivas" -  08/04/2020

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“Fique em casa”. A palavra de ordem para todos os portugueses em tempo de pandemia não é estranha para muitos cuidadores informais. Alguns já experimentaram o isolamento social sem precisar da obrigatoriedade do estado de emergência.

Ainda assim, antes da Covid-19, havia as saídas com as pessoas cuidadas para ir às consultas, fazer exames ou tratamentos. Ou para deixar os filhos na escola. Agora é diferente e o stress aumenta para os cuidadores e aqueles de quem cuidam, frequentemente, os que mais querem ir à rua.

A Renascença falou com quatro cuidadoras, cada uma com a sua realidade. Foi saber como têm passado estes dias de pandemia e como é que “dão a volta” ao isolamento social.

Uma casa cheia de gente para cuidar

“Apanhámos” Helena Lagartinho fora de casa, já de regresso depois das compras no supermercado. Feitas em cerca de uma hora porque é doente oncológica e o atestado multiusos, dá-lhe prioridade no atendimento.

Lá em casa tem quatro pessoas a precisar de cuidados: as duas filhas de 24 anos, com paralesia cerebral; o marido, doente oncológico e a mãe, de 81 anos, que já teve um AVC. Há dias tinha também uma tia, de 84 anos que, entretanto, foi internada com uma pneumonia. E confessa à Renascença que teve que educar as duas idosas sobre os riscos da Covid-19 já que viam a doença como “mais uma gripe” e insistiam em sair, para ir tomar chá à pastelaria.

Há um mês que a Faculdade fechou e, desde então, Inês e Rita nunca mais saíram de casa. Os dias da mãe e cuidadora passam-se entre banhos, vestir, apoio nas refeições e nas idas à casa de banho, mas também nos trabalhos que os professores vão enviando nas aulas online. Ou a cozinhar, lavar roupa, a limpar e a desinfetar a casa.

“24 sobre 24 horas. Sozinha!”, desabafa Helena. Todas as pessoas, lá em casa, são casos de risco nesta pandemia, “mas alguém tem que ir fazer as compras”. E admite que sair um bocadinho, acaba por “ser libertador, quase como ir de férias para as Maldivas”.

Passar tranquilidade sem mostrar o imenso medo

“O meu dia a dia é tentar acalmar uma casa cheia de gente e já completamente descompensada. Mas o que me custa mais é gerir o medo que eu não quero transmitir a quem cuido e que me tira o sono”, confessa Helena Lagartinho.

“Se eu for infetada, quem é que vem tomar conta das minhas filhas, da minha mãe, da tia e do meu marido? Principalmente, das minhas filhas? É o que me causa maior frustração.”

Diz já estar habituada ao isolamento social, a não saber o que é – há 24 anos – uma ida ao cinema, ao teatro, por exemplo. Mas agora vive aterrorizada com medo de uma contaminação.

Essa é uma das razões para Helena não aceitar a ajuda de algumas amigas. “Neste momento não me podem vir ajudar a dar um banho, a passar um trabalho da Faculdade, a fazer o comer. Agora não quero mais ninguém dentro da minha casa. Não sei de onde é que essas pessoas vêm, se estão contaminadas ou não”.

O cuidador está sozinho e sem apoio, enlouquece

Helena Lagartinho é uma ativista em defesa dos direitos dos cuidadores informais, papel que assume desde o nascimento das filhas, há 24 anos. Não se cansa nem hesita em denunciar a contínua falta de apoio do governo, entidades locais, de saúde e Segurança Social, aos cuidadores. No dia a dia, mas também para situações como esta, de pandemia, ou numa catástrofe natural.

Por isso, defende a realização de um levantamento, a nível de freguesias, de todos os cuidadores e pessoas cuidadas a precisar de apoio. E a constituição de uma bolsa de voluntários, com formação, que possam ajudar efetivamente e em segurança. A proposta já foi formalizada, por exemplo, junto do presidente da sua junta de freguesia, Massamá-Monte Abraão.

“Neste país, os cuidadores não são pessoas, são um número. E um número errado”, afirma, referindo-se aos cerca de 800 mil cuidadores estimados e sempre referidos publicamente, mas que, na sua opinião, são apenas uma parte do todo.

“Sozinho, o cuidador enlouquece”, desabafa Helena. E revela que, por vezes, o descanso só lhe acontece madrugada dentro quando “às 3 ou 4 da manhã venho sentar-me na varanda, muitas vezes, para apanhar ar. Está tudo tratado, está tudo a dormir, este momento é meu.”

Três semanas de isolamento social não custam nada a passar

Sílvia Artilheiro Alves é cuidadora informal do seu filho João, de 16 anos, que sofre de uma doença crónica. E para ela, esta situação não é nova.

João já esteve internado diversas vezes nos cuidados intensivos e o regresso a casa era feito sem passar pela enfermaria, com cuidados redobrados na habitação. “O que exigia de nós, como família, estes cuidados que o resto da população está a ter agora em termos de isolamento e distanciamento social. Não recebíamos visitas cá em casa porque ele precisava de ficar mais resguardado. Já tive alturas em passei três meses sem sair de casa porque era preciso proteger o João”, revela Sílvia.

E a situação repete-se agora, em tempo de pandemia. A família e os vizinhos mais próximos deixaram de aparecer, assim como as equipas dos cuidados continuados e cuidados paliativos.

“Há três semanas que não temos visitas domiciliárias e os contactos são telefónicos. Sentimo-nos mais seguros e faz todo o sentido, pelo menos até que não aconteça alguma situação grave”, argumenta Sílvia Alves, também presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais (ANCI).

Houve uma coincidência entre a orientação da Direção-Geral da Saúde (DGS) e a vontade que já tinha manifestado, com receio de contaminação. “Não me sentia muito segura a receber as equipas médicas e de enfermagem, que andam de casa em casa e que são um veículo possível de transmissão, ainda que involuntário”, confessa à Renascença.


É precisa imaginação para entreter uma miúda de três anos com muita energia

Uma alteração nas rotinas da família, mas não a única. A filha Maria Rita, de três anos, também deixou de ir à creche por causa da Covid-19. E de passar no parque para brincar um bocado, esgotando mais um pouco da muita energia que tem. “Essa questão não está a ser fácil de gerir”, diz Sílvia Alves, entre gargalhadas. Mas acaba por correr bem porque “eu deixo-a, os móveis estão todos presos à parede e às vezes fazemos aqui circuitos de ginástica, aulas de dança improvisada”.

Maria Rita pode não saber - como a maior parte de nós - o que é o coronavírus, mas já percebeu que provoca uma doença muito perigosa. E sabe que as pessoas têm que ficar em casa, “só podem sair para ir à farmácia, às compras ou trabalhar. Quando têm uma profissão importante, como a do pai”.

O marido de Sílvia é membro das forças de segurança e receia “o que pode trazer para casa. É difícil lidar com esse stress, apesar de todos os cuidados, que não são de agora”. À entrada da habitação há uma “zona de sujos” e é lá que o pai de João e Maria Rita se desinfeta cada vez que chega a casa, seguindo de imediato para a banheira. Todos os cuidados são poucos. E o descanso de Sílvia também. “Cinco minutos ou uma hora, hora e meia, se a Maria Rita e o João colaborarem. Depende”.

Uma idosa cheia de vontade de viver

Maria Antónia tem 88 anos, é invisual, mas não gosta de estar parada nem de ficar em casa. “Tem muito expediente, está habituada a andar na rua e a conviver”, diz a filha e cuidadora Maria dos Anjos Catapirra.

“Para ela, as rotinas passavam por preparar o pequeno almoço (é a própria que o faz), arranjar-se e sairmos para ir passear e falar com os amigos. Claro nada disso acontece agora e a minha mãe vê-se fechada em casa, sozinha comigo porque não deixo aqui entrar mais ninguém. Tem sido um bocado complicado.”

Como a leitura ou a televisão não são alternativas, as tarefas domésticas ajudam a passar o tempo. “A dona Antónia vai lavando a loiça e fica muito feliz porque lava a loiça; vai estendendo a roupa e fica muito feliz porque estende a roupa”. Também limpa e passa o pano com lixívia nos puxadores porque está muito bem informada sobre o que se passa.


“Leva o dia a ouvir rádio, a única coisa que a liga ao mundo sem ser eu. E está muito afetada por ser a idade dela a mais atingida com a COVID-19”, justifica Maria dos Anjos Catapirra, também vice-presidente da ANCI e que por estes dias, recebe pedidos de informação de cuidadores que tiveram que deixar de trabalhar para cuidar dos ascendentes que estavam em centros de dia.

Tanta informação gera igualmente preocupações. “A minha mãe leva a noite inteira a pensar o que vai acontecer com os seus meninos (netos) porque alguns trabalham em áreas que neste momento estão fechadas; ou como é que este país se vira em termos de economia. São noites de insónia muito grandes”.

Por isso, para “preservar a sanidade mental e a mobilidade” de Maria Antónia, a filha confessa que, de vez em quando “furam” o isolamento social. “Temos um espaço aqui em frente da casa, onde damos umas voltas. Por volta das 14h00, quando está toda a gente a almoçar, andamos aqui às voltas, literalmente, durante um quarto de hora; no máximo, duas vezes por semana. Tem sido a saída da minha mãe neste tempo de pandemia”.

A cuidadora Maria dos Anjos tem de sair mais vezes, mas por pouco tempo, “cinco-dez minutos, aqui na praceta onde temos lojas onde posso comprar os produtos essenciais. Porque ela é uma pessoa de risco, não pode ficar muito tempo sozinha. E sinto-me numa prisão, parece que estou em prisão domiciliária”, desabafa.

Vizinhança atenta ajuda a quebrar o isolamento

Guilherme é doente de alzheimer, diagnosticado desde 2006. Cinco anos depois deixou de poder estar sozinho e a mulher, Julieta Moreira desempregou-se para cuidar dele. Mas há três anos acabou por ir para o Centro de Dia.

“Foi um escape, ajudou-me bastante, estava muito cansada. Mas agora estamos aqui fechados em casa, por causa desse vírus que anda para aí”.

Para Julieta, o maior problema é não poder sair com o marido, “porque ele é uma pessoa que gosta muito de andar na rua e de dar as suas voltinhas. Agora tenho receio. Há três semanas que estamos confinados aqui em casa. Tenho muito receio por ele e por mim”, confessa à Renascença.

Ainda assim, sente-se mais descansada por Guilherme estar numa fase mais calma. “Se fosse há uns dois meses, em que estava muito agressivo, não sei como iria estar aqui o dia inteiro, com ele. Agora está mais calmito, anda, corre a casa toda, desarruma o que quer e entende, mas tem que ser assim, não vale a pena zangarmo-nos”.

Guilherme anda triste e aborrecido, mas quando as funcionárias do centro de dia vêm trazer a comida, vê-as pela janela, reconhece-as e “lá dá um sorrisinho. Mas só as vê pela janela, mais nada”.

Outros bens também não faltam. Os filhos vêm trazer o que for preciso e há sempre alguém a quem telefonar.

Julieta revela que, às vezes, se sente um pouco triste com a situação, mas depressa pensa que não tem razão para tal. Vivem numa praceta pequena e “há sempre aqui vizinhos que veem se abro ou não janela, telefonam ou mandam mensagens para saber se está tudo bem. Fico mais descansada. E tenho aqui uma vizinha que todos os dias manda uma SMS ou está à varanda para me dizer adeus. Estamos sempre a ser ‘vigiados’ pelos vizinhos que aqui tenho”.

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