Tempo
|
Graça Franco
Opinião de Graça Franco
A+ / A-

Até domingo, em Milão

08 abr, 2020 • Opinião de Graça Franco


Há crentes e não crentes a partilhar a mesma solidão do Cristo no Monte das Oliveiras. Ele sabia que faltavam apenas três dias para vencer a morte. O mundo inteiro só sabe que foi varrido por uma tristeza de morte.

Há uma espécie de cheiro a morte no ar. De angústia que vai crescendo, dentro de nós, devagarinho. Entrámos na semana da Paixão. E nas TV vemos filas de caixões alinhados e hospitais de campanha. Desta vez, talvez, pela primeira vez, nas nossas vidas, fazem-nos falta os coelhos, os ovos, as galinhas para nos distrairem do que acontece. Para nos obrigar a não pensar no essencial. Afinal, sem planos de viagens e férias, as festas com a família e os amigos, as amêndoas, as flores e as iguarias, que fazemos nós fechados em casa todos estes dias? Que raio era suposto estarmos a comemorar? A morte de um sem-abrigo torturado e cruelmente espetado numa cruz? Não. A inesperada boa noticia: o vencer da morte na sua ressurreição.

Agora, o mundo parou, ao mesmo tempo, para que os sinos tocassem todos a rebate aos nossos ouvidos e não nos dessem sequer tempo para enterrar os mortos enquanto tratamos dos vivos. Ficámos, subitamente, exaustos só de contemplar a exaustão. E, numa negação colectiva, remetemo-nos à lengalenga infantil do “vai passar”. Sem admitir que ou ultrapassamos o medo do túnel da morte ou nunca encontraremos a luz do seu final. Vale a pena pensar naquilo que somos.

Trump está à beira de fugir para o seu "bunker". Entregou aos militares a gestão da crise. Fez do inimigo “invisível” um novo 11 de Setembro. Agora o poder está nas mãos dos generais que tomaram de assalto os próprios hospitais. Em poucos dias, mais de 10 milhões de americanos perderam o emprego e algumas cidades fecharam, com placards de madeira, as montras das lojas temendo assaltos e atos de vandalismo. As ruas de Nova Yorque estão vazias. As gôndolas de Veneza acostaram aos cais desertos. E, em plena Semana Santa, não haverá missa nem procissões em Sevilha.

A França estrebucha e confirma a recessão. A queda da riqueza nacional ultrapassou, no segundo trimestre, a registada no período homólogo de 68. Só em plena guerra se encontram números semelhantes. Na Grã Bretanha, o problema deixou de ser o das consequências do Brexit. Com o primeiro-ministro nos cuidados intensivos, a máquina vira-se para a produção de máscaras e ventiladores. Uma espécie de novos carros de combate.

Na Hungria, Victor Orban viu, na pandemia, a sua oportunidade de suspender, sine die, a frágil democracia. Governará, por decreto, durante o estado de emergência que ninguém sabe quando acabará. A Assembleia Nacional está suspensa e não poderá ter nenhuma palavra a dizer. A mordaça que já fazia perigar a liberdade de expressão é agora oficial.

No Brasil, um louco governa enquanto a ordem nas favelas é imposta pelos traficantes mas o “bicho com uma coroa de patas vermelhas” já começou a atacar e não teme os homens do BOPE nem as armas dos traficantes. Os pobres que vivem da economia informal são obrigados a escolher entre a doença ou a fome. Perdidos por cem, perdidos por mil. Percebe-se a recusa ao confinamento dos sem teto.

Tudo isto no mundo ao mesmo tempo? Tudo agora, aqui, nos mesmos dias.

E todos nos perguntamos: como é possível? De repente, não nos podemos abraçar, mas o planeta sofredor mostra-se na súbita convulsão como uma casa verdadeiramente comum.

Nem a morte pode ser celebrada. Os moribundos, rodeados de gente e máquinas que tentam tudo para lhes salvar a vida, acabam por morrer sozinhos. As portas dos hospitais são entradas para uma espécie de labirinto onde alguns se perdem sem garantia de encontrar saída. Seguirão nus, hermeticamente fechados, em sacos de plástico, directos para o forno crematório. Ninguém poderá passar-lhes a mão na face gelada numa última carícia. A família não poderá vê-lo uma última vez. Até o luto se tornou mais difícil e cruel e parece que o chão foge. As Igrejas fecharam as portas. E há uma dúvida pequenina como o virús a fazer o seu caminho: Por quê? Para quê? E, já agora, o que deveríamos estar a celebrar?

O condenado morto na cruz para gáudio da soldadesca Romana e sossego das elites dirigentes. Desprezado pela populaça e abandonado pelos amigos. Desacreditado. Volta-nos à memória.

Sem coelhos nem galinhas ou ovos para caçar que nos distraiam. Parece que o mundo inteiro entrou numa agonia lenta mergulhado num ambiente precoce de Sexta-feira Santa. E sem esperança na Ressurreição tememos que o Domingo não chegue ou venha demasiado tarde.

Isto vai passar! Mas o Domingo está longe, longe demais. Tememos que não chegue.

Há crentes e não crentes a partilhar a mesma solidão do Cristo no Monte das Oliveiras. Ele sabia que faltavam apenas três dias para vencer a morte. O mundo inteiro só sabe que foi varrido por uma tristeza de morte.

As TV debitam estatísticas e cada vida é um número: mais de um milhão de infectados, centenas de milhares de mortos. Entre a azáfama dos médicos e dos cânticos solidários às varandas uma imagem retemo destes dias. Um velho vestido de branco, cambaleante a atravessar a praça de São Pedro deserta, batida pela chuva e pelo vento a subir uma escadaria em direção à mesma imagem do crucificado a que os romanos pediram com fé que livrasse a cidade da peste.Conseguiram.

No verdadeiro Calvário, há dois mil anos, só ficaram os cépticos que lhe prolongavam a agonia com desafios humilhantes: “Salvou os outros e não consegue salvar-se a si próprio?”, os guardas, algumas mulheres e o discípulo João a quem Jesus entrega a sua mãe. Pedro que o tinha negado fugiu com os outros dez. Judas que o tinha entregue abandonou-o também em desespero.

O Papa Francisco, o velho de branco, sucessor de Pedro, levava às suas costas as nossas dúvidas que Cristo partilhou na sua agonia. Pai, Pai, porque Me/nos abandonaste. E depois permaneceu sozinho em oração. Na praça fria, escura, debaixo de chuva. Curvado perante o próprio Deus presente na Custódia do altar.

Lembrou aos crentes o infinito poder da oração. Atravessou depois sozinho a catedral vazia levando com ele a presença real de Cristo entre nós. “Nas tuas mãos entrego o meu espírito” foram as últimas palavras do crucificado que a Páscoa nos recorda. E o velho solitário vestido de branco é uma imagem que representa bem a fragilidade de cada um de nós. Crentes em Deus, em deuses ou em nada.

As Igrejas estão fechadas. Mas Domingo às 18 horas, no You Tube, o mundo vai poder unir-se pelo canto em oração. Andrea Bocelli estará sozinho na catedral de Milão a cantar para Deus. Não cantará apenas. Rezará também emprestando-nos a sua própria voz. E seremos milhões. E os cristãos saberão que no próximo Domingo não seremos apenas “dois ou três reunidos em seu nome” na catedral vazia. Milão vai pulsar em uníssono com o coração do mundo.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Adélio Pequenino
    09 abr, 2020 terras da vernária 22:26
    Boa noite , Doutora Graça Franco. Naquele tempo, Deus mandou dez pragas sobre o Rei do Egito e seu povo. Ora, esta pandemia não será também uma praga sobre os reizinhos das Nações , que negam a existência de Deus; sobre a própria igreja, que não leva a serio os ensinamentos de Deus , que faz tropeçar o seu povo. E sobre o próprio povo, que já deveria ter maturidade , mais que suficiente, para saber distinguir a mão direita da esquerda, um cabrito de um cordeiro e um bode de uma ovelha? Em tempo não muito distante, um grupo de devotos pensou constituir uma irmandade para gerir um templo construído , gerido e conservado por uma comunidade local, desde 1800O . O pároco ameaçou que deixaria de celebrar missa no templo caso a irmandade fosse constituída. Agora fazem jejum forçado . E tantos outros pecados que a Igreja comete contra Deus. Quando Deus levantar a epidemia, é obrigação dos Bispos e Padres, do mundo inteiro, cumprirem o que está escrito : Chorar entre a sacristia e o caminho do altar. Se o fizerem, Deus ouvirá os seus choros e atenderá o seu pedido de perdão. E o povo abrirá os olhos e deixará de libertar, com o voto, reizinhos rancorosos que mataram e continuam a querer matar Cristo, teimando construir um mundo sem Deus. Amós, Amós, ergue - te do túmulo e volta a habitar entre nós. Não te rias. Trás contigo Malaquias. Para os que acreditam nas escrituras, , desejo uma Santa páscoa, isto é, uma mudança , a libertação.
  • Joaquim Santos
    09 abr, 2020 Tojal 14:09
    Maria Mãe da Bondade em 1 de Abri de 2020 em S. Marcos da Serra, manda um recado para a Igreja Portuguesa: "Abram as portas para os seus paroquianos para que, em união com meus filhos predilectos sacerdotes, e em obediência, celebrem uma hora de Adoração Eucarística Diária para que a criatura humana não resista ao Amor Divino."