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Entrevista Renascença

António Costa aponta o caminho a Portugal e à Europa. Leia e veja (na íntegra) a entrevista à Renascença

03 abr, 2020 - 14:28 • Eunice Lourenço (entrevista), Redação (texto)

O primeiro-ministro foi entrevistado, esta sexta-feira, no programa "As Três da Manhã", da Renascença. António Costa abordou os vários pontos de impacto da pandemia do novo coronavírus em Portugal e apelou à Europa para não desistir de si própria.

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Veja a entrevista completa a António Costa na Renascença
Veja a entrevista completa a António Costa na Renascença

O primeiro-ministro foi o convidado especial desta sexta-feira doo programa "As Três da Manhã", da Renascença. Na primeira entrevista desde a renovação do estado de emergência, António Costa abordou os vários pontos de impacto da pandemia do novo coronavírus em Portugal e apelou à Europa para não desistir de si própria. Leia e veja a entrevista na íntegra.

Quando é que teve noção de que esta epidemia podia ser uma situação tão grave como a que estamos a viver?

Mal percebemos que a epidemia não ficaria confinada à China, todos fomos ganhando rapidamente consciência de que chegaria cá e que iria ser crescente. Na altura ninguém teve noção efetiva da capacidade de transmissão deste vírus e da sua globalização. Seguramente esta foi a primeira epidemia em que todos os fatores da globalização ajudaram à sua expansão. O período em que ocorreu favoreceu muito, por razões climáticas e porque são momentos em que há muitas viagens e locais de grande concentração. A partir daí, ganhei rapidamente consciência do que ia acontecer.

Houve ali um momento em que parecia que estava a resistir ao estado de emergência e que o Presidente tinha mais urgência na emergência. Foi mesmo assim?

Na altura, disse o que pensava sobre o assunto. A questão não era saber se eram necessárias medidas de contenção, mas sim se era preciso estado de emergência para que as medidas de contenção existissem. Já tínhamos encerrado as escolas, as pessoas estavam a cumprir as medidas de contenção social. A questão era saber se era necessário dar esse passo do ponto de vista jurídico e ter uma certa ideia de que este processo iria ser bastante mais longo. Na altura não senti que toda a gente tivesse consciência de que não bastava estar 15 dias fechado em casa para que a epidemia desaparecesse.

Este processo vai ser muito mais longo no tempo e corremos o risco de uma segunda. Vamos ter um próximo inverno em que vamos continuar a ter vírus, porque na melhor das previsões só vamos ter vacina no verão de 2021. Tem de ser percorrido como uma longuíssima maratona e não uma estafeta de 4x100 metros. O meu receio tinha a ver com isso, mas imediatamente demos o parecer favorável e estabelecemos o estado de emergência. Se há 15 dias podia haver dúvidas, agora é absolutamente imprescindível, porque estamos na fase mais crítica. Este é o mês de maior risco: vão-se avolumando os casos, há um cansaço que se vai acumulando e a dor das pessoas pelas medidas adotadas começa a sentir-se, e pelas nossas tradições e hábitos são momentos de grande circulação e convívio, que são os maiores perigos do combate a esta pandemia.

António Costa. Estado de emergência "não é prisão domiciliária"
António Costa. Estado de emergência "não é prisão domiciliária"

Ter anunciado com alguns dias de antecedência que as pessoas, na Páscoa, vão ficar confinadas ao seu concelho não pode ter feito as pessoas deslocar-se antes?

Devemos ser transparentes e avisar as pessoas com maior antecedência possível. Já houve muitas medidas que tivemos de adotar que apanharam as pessoas de surpresa e isso teve um efeito muito negativo. Felizmente, as pessoas sabem, seguramente, que não vão faltar mantimentos e as coisas têm-se normalizado. Quanto mais pessoas avisarmos, mais cedo as pessoas podem reorganizar-se. Isto não é um castigo. As pessoas não estão em prisão domiciliária, estão a cumprir o dever de recolhimento, para se protegerem e diminuírem o risco de contaminarem os outros. Não vamos ver isto como uma punição. As pessoas devem ter tempo para organizarem a sua vida, para se prepararem.

Uma das medidas desta segunda fase do estado de emergência é o reforço dos poderes da Autoridade para as Condições de Trabalho para poder evitar despedimentos fraudulentos. Tem noção de que haveria muitas empresas a aproveitar-se desta epidemia?

Não creio que sejam muitas, mas há várias denúncias que têm chegado. Este é um momento em que devemos procurar agir com absoluta responsabilidade ética. Só vencemos com grande esforço de todos. Temos de proteger as empresas o mais possível, porque elas têm de estar vivas quando chegarmos ao final deste túnel, e proteger os empregos, porque é necessário não afundarmos o que tão duramente reconstruímos nos últimos quatro anos, proteger os rendimentos, sendo certo que não podemos mandar as pessoas estar todas em casa, fechar as lojas, esperar que as empresas não tenham enormes prejuízos e que isso não se traduza também numa enorme nos rendimentos dos salários que as empresas pagam. Temos de agir de forma solidária, protegendo as empresas, os empregos e os rendimentos. O Estado tem feito um esforço muito grande, mas o esforço tem de ser partilhado por todos.

Já que fala na proteção dos rendimentos, muitas empresas estão a recorrer ao “lay-off” e ao “lay-off” simplificado que o Governo entretanto regulou. Uma das empresas é a TAP, mas que está com um “lay-off” um bocadinho especial porque promete compensar os rendimentos de todos aqueles com salários acima dos 1.900 euros, que seria o limite do rendimento em “lay-off”. Concorda com esta medida da TAP?

Não gosto de me meter e pronunciar sobre o dia a dia das empresas. A aviação civil é um setor com níveis salariais muito diferenciados do que é comum, designadamente em algumas carreiras, como sejam os pilotos. Portanto é natural que as empresas procurem também ajustar o esforço que podem fazer, como há muitas empresas que podendo recorrer ao “lay-off” estão a fazer o esforço de não o fazer, para não sobrecarregarem a Segurança Social e os impostos de todos nós. Estão a fazer um enorme esforço para elas próprias suportarem esses custos, mesmo quando não estão a ter receitas para isso.

E todas as empresas que quiserem podem fazer este “lay-off” como este da TAP, que o El Corte Inglés também está a fazer, de compensar os seus funcionários que tenham rendimentos acima do máximo previsto do “lay-off”?

O Estado deve favorecer que haja bom relacionamento dentro das empresas, entre empregadores e trabalhadores. Na medida do possível, todos temos de fazer o esforço de proteger o maior nível de rendimentos. Esta crise não nasceu da economia nem foi uma crise das finanças do Estado. Pelo contrário, a economia estava a crescer acima da média europeia. Tínhamos reduzido o desemprego para números que há muitos anos não tínhamos, os rendimentos tinham vindo a ser recuperados paulatinamente ao longo dos últimos quatro anos, as empresas tinham atingido um nível extraordinário de investimento. De repente, surgiu algo imprevisível, externo e que nos fez parar. Temos de proteger o melhor possível todo o esforço de recuperação enorme que o país fez, congelá-lo durante dois, três meses, para que quando a crise pandémica passar possamos recomeçar o mais próximo possível da situação em que estávamos para que o esforço de recuperação não tenha de ser tão intenso como foi o anterior.


Quando recomeçarmos, será de forma gradual. Já tem ideia de como será esse gradualismo?

Para a semana, vamos ter de tomar uma decisão, que tínhamos dito que anunciaríamos a 9 de abril, sobre um dos temas que mais angustiam as famílias portuguesas, a continuidade do ano escolar. O esforço das famílias para se adaptarem às escolas fechadas, o esforço que os alunos fizeram para continuar a estudar, o esforço notável dos professores e educadores para dar continuidade e manter relação com os alunos e atividades letivas à distância foi algo extraordinário e ajudou-nos, seguramente, a dar um salto qualitativo imenso na transição para o futuro da sociedade digital. Agora, temos de procurar conseguir terminar este ano letivo da forma mais justa, equitativa e normalizada possível.

Tem um limite para o regresso às aulas presenciais?

No próximo dia 7 de manhã, terça-feira, vamos fazer uma nova reunião com o conjunto de epidemiologistas que tem trabalha do com a Direção-Geral da Saúde, a quem pedimos que desta vez fizessem uma análise específica sobre a previsibilidade do impacto da reabertura das escolas e em diversos momentos. Vamos ouvir o Conselho Nacional de Educação, o Conselho das Escolas, eu vou ouvir os partidos políticos todos no próximo dia 8 e depois tomaremos a decisão.

Há uma coisa que sabemos: a data limite para que o calendário escolar, designadamente do ensino secundário, possa ser cumprido com maior normalidade possível é o ensino presencial começar a 4 de maio. Esse é o limite para que possa tudo decorrer normalmente. Podemos ter ainda uma época de exames até ao final de julho, deixando a segunda fase para setembro, de forma a não perturbar o ciclo normal de o mês de agosto ser um momento de pausa coletiva no sistema educativo.

Dia a dia vamos vendo a evolução. O essencial para medirmos como estamos a evoluir não é tanto o número absoluto, mas o aumento relativo, a percentagem, de dia para dia. No início desta crise, estávamos a crescer cerca de 40% ao dia, depois fomos baixando e, nos últimos dias, temos estado abaixo dos 15%. Mas ainda não chegámos ao nível zero. Não podemos desarmar. Temos de ir medindo. Por isso fixámos dia 9, acho que vamos poder tomar uma decisão com a informação que na altura estiver disponível e com o horizonte que for possível alcançar.

Para além das decisões de calendário, o decreto do Presidente da República desta renovação do estado emergência fala também em ajustes no acesso ao Ensino Superior. Pode haver também alteração de regras?

Este decreto cria um quadro geral para um conjunto de oportunidades. Temos de utilizar com extremo cuidado este estado de emergência. É a primeira vez que temos uma situação destas desde que a Constituição entrou em vigor, nos últimos 44 anos nunca tínhamos vivido nada assim, logo temos de usar extrema prudência. O critério que temos adotado é a máxima contenção com o mínimo de perturbação. Espero que não se tenha de alterar regras especificamente para este ano, mas sim ajustar calendários, recuperando na medida possível este tempo, que não foi tempo perdido. Houve enorme esforço nesse sentido. Mas foi um tempo diferente.

Outra alteração nesta renovação deste estado emergência é o setor social. É alargada a requisição de equipamentos sociais e até a mobilidade de funcionários deste setor. O setor social não está a ter capacidade para lidar com esta situação ou não teve ajuda que era necessária no início desta crise?

Esta crise pandémica põe tudo e todos à prova, ninguém estava preparado para esta situação. O setor social é muito diversificado e os lares são uma parte. Os lares têm uma condição específica: albergam o grupo de pessoas de maior risco. Portanto, a incidência nos lares desta pandemia seria sempre muito superior à média da sociedade. Se for ver a estratificação etária das pessoas contaminadas, da gravidade da infeção e, sobretudo, da consequência letal da infeção, é uma diferença brutal. A diferença na taxa de mortalidade entre as pessoas mais idosas e o resto da população é enorme.

Ainda hoje os lares e os centros de cuidados continuados continuam a queixar-se de falta de material, de falta de condições. Não houve resposta atempada a estas situações?

Eu não quero ser injusto com as IPSS, com as Misericórdias que gerem os lares. Tenho a certeza que as procuraram fazer o melhor possível, hoje há uma enorme carência de muitos equipamentos à escala global. Nós sabemos bem, porque temos uma gigantesca operação logística montada. Na última semana, tivemos nove voos da China carregados só com material de proteção, desde máscaras, equipamentos, viseiras. Esta é uma ponte aérea que temos montada para as próximas semanas, para manter permanentemente o Serviço Nacional de Saúde, as forças de segurança, os serviços essenciais. É um esforço imenso.

É muito difícil estar a apontar o dedo a este e àquele. Porventura, alguns não terão antecipado as medidas de contenção necessárias, designadamente os cuidados que o pessoal que trabalha nessas instituições tinha de ter para não importar o vírus. Foram tomadas medidas como a interdição das visitas, mas a relação entre o pessoal que entra e sai e as pessoas que estão no lar é um fator crítico.

Agora o que importa é fazer um grande esforço, que está a ser feito, quer de análise e de testes, quer de formação, porque é preciso que todas as pessoas que trabalham nos lares tenham uma disciplina muito rigorosa na forma com se protegem e protegem os outros. Aqueles que não têm as condições ideais que permitam o isolamento dentro do lar deve-se procurar, como muitas autarquias estão a fazer, realojar as pessoas noutras instalações, designadamente instalações hoteleiras, que infelizmente estão vagas.

Haverá um apoio extraordinário para este setor?

Vamos lá ver, há um conjunto de medidas que têm sido adotadas. Primeiro, já atualizámos o acordo anual que temos com todas as misericórdias e IPSS, são mais 59 milhões de euros do que tínhamos no ano passado. Abrimos uma linha de crédito de 160 milhões de euros. Adotámos uma medida especial para a contratação de pessoal com base no Instituto de Emprego e Formação Profissional. Adotámos agora estas medidas de poder requisitar pessoas para trabalharem nessas áreas. Permitimos que funcionários públicos, seja da administração central ou local, possam desempenhar essas funções. E as Forças Armadas têm sido inexcedíveis no apoio que têm dado a muitas instituições quando elas entram em situação de rutura.

Outra novidade no decreto da renovação do estado de emergência é uma formulação um bocadinho estranha, mas que fala na possibilidade dos contratos de execução duradoura poderem ser temporariamente modificados e serem suspensos os pagamentos de renda e outros pagamentos de capital. Isto é para quê, para limitar as indemnizações às parcerias público-privadas (PPP) e rodoviárias?

Designadamente. Vamos lá ver, há alguns contratos que previam que pudesse haver compensações ou reequilíbrios contratuais em situações de estado de emergência. Não nos pareceu que fosse o momento para que pudessem ser invocadas cláusulas dessa natureza, que seguramente não foram pensadas para uma situação de um estado de emergência causado por uma pandemia desta natureza, mas por fatores de disrupção política ou social de que as empresas legitimamente se queiram proteger. Este é um caso em que não é imputável a responsabilidade a ninguém e não deve ser um fator de indemnização.

Esta tem sido, aliás, uma exigência dos partidos de esquerda. Como é que se tem dado com os seus antigos parceiro de geringonça, nesta crise?

Tenho-me dado muito bem e aproveito esta ocasião para sublinhar que o conjunto dos partidos políticos tem sido exemplar na forma como têm sabido agir, sem prescindir das suas diferenças ideológicas e do dever de crítica e fiscalização que a oposição tem relativamente ao Governo, de forma solidária e unida num momento que todos compreendemos que é de unidade nacional.

Parece ter sido mais fácil estabelecer aqui consensos com o PSD.

Tem havido consenso bastante generalizado. Mesmo o PCP, que não tem votado favoravelmente o estado de emergência [tem-se abstido], tem apoiado as medidas que em concreto têm sido adotadas, ou pelo menos não se tem oposto à generalidade dessas medidas. Tem havido um grande sentido de convergência e unidade nacional.

O Presidente da República disse que, com esta epidemia, agravou-se brutalmente a pobreza, a desigualdade e a exclusão. Como é que se consegue dar a volta a isto?

Estávamos há pouco a falar das escolas. Algo que sabemos é que o ensino à distância com suporte meramente digital é um fator de desigualdade. Uma das medidas que temos de preparar para o terceiro período, quer com a segurança de poder não haver ensino presencial ou como garantia de que se houver só parcialmente ensino presencial há ensino para todos, é por exemplo conseguir complementar o ensino digital através da televisão. Isso é essencial para combater as desigualdades.

Há outras desigualdades grandes que resultam da quebra dos rendimentos. A perda de um terço de um vencimento baixo custa muitíssimo mais que a perda de um terço de um rendimento alto, porque a capacidade de poupança é muito diferenciada. Isso acentua profundamente as desigualdades. Temos falado de muitas empresas que vão fechar, mas a verdade é não podemos esquecer as pessoas que estão neste momento a sofrer uma grande perda no seu rendimento, ou porque são trabalhadores independentes, ou porque são trabalhadores por conta de outrem. As pessoas que estão em “lay-off” estão a ganhar a 70%, o que significa que estão a perder um terço do seu vencimento. As pessoas que tiveram de ficar em casa a tomar conta dos filhos ou dos pais estão a perder um terço do seu rendimento. Isto está a ser duro para muitas pessoas.

Isto não nos devia fazer repensar um bocadinho o nosso modelo económico, tão dependente do turismo e das exportações? Não nos deve fazer pensar, como país, como é que saímos daqui?

A maior reflexão que temos de fazer é que hoje não podemos ter cadeias económicas tão extensas e tão dependentes de um só país, como é a China. Essa é a maior lição que devemos tirar.

É preciso os países aumentarem os seus meios de produção?

A Europa tem de perceber que vai ter de voltar a produzir interiormente muito daquilo que se habituou simplesmente a exportar da China. É muito positivo ver várias empresas a reorientar as suas produções para produção de máscaras, viseiras, batas, equipamento de proteção individual, porque temos capacidade nacional para produzir isto. Vamos começar também a produzir ventiladores. Essa compreensão é absolutamente essencial todos termos.

Quanto às exportações, um dos problemas do país é precisamente que durante anos foi pouco competitivo para conseguir crescer com base nas exportações e crescia sobretudo com base no mercado interno. Claro que quando crescemos mais com base nas exportações estamos mais expostos aos riscos internacionais, mas isso significa também que estamos com maior capacidade de ter uma economia mais diversificada. Desta vez o que aconteceu é que tivemos um choque global em todas as regiões económicas e isso naturalmente está a afetar-nos, mas não devemos andar para trás.


António Costa. "Portugal terá de voltar a produzir o que se habituou a importar da China"
"Portugal terá de voltar a produzir o que se habituou a importar da China"

Já que falou na Europa, confia que vai ser possível garantir a solidariedade europeia nesta situação que todos vivemos ou não tem grande expectativas para o próximo Conselho Europeu?

Tem de ser possível a Europa conseguir responder. Há algumas respostas que têm existido. Houve um momento muito tenso, mas que também fez muitos compreenderem que é preciso dar passos em frente. E foram dados novos passos em frente. As propostas que esta semana a Comissão Europeia apresentou, seja para uma melhor utilização dos fundos comunitários, seja para a criação de um mecanismo de seguro de emprego, são propostas importantes. Não é aquilo que, porventura, todos consideramos que é necessário ter, mas são avanços positivos. Espero que a reunião da próxima terça-feira do Eurogrupo concretize novos passos nesse sentido.

Nesses novos passos é essencial a questão dos “eurobonds” ou dos “coronabonds”, ou pode haver futuro para a União Europeia, salvação da União Europeia nesta pandemia, sem “eurobonds” ou “coronabonds”?

Nós não temos de nos agarrar, como se fosse um fetiche mágico, a nomes e designações. Fundamental é a União Europeia ter, em conjunto, capacidade de reposta de resposta a um desfio que é comum. E perceber que o temos de fazer de uma forma comum e solidária. Se é com “eurobonds” ou “coronabonds”, se é com apoios diretos com base no orçamento da União Europeia, se é com outro mecanismo, se é com recurso à emissão de dívida, se é com recurso a contribuições extraordinárias dos Estados, isso já são opções técnicas onde não está o cerne da questão. O cerne da questão está se a Europa prova que é capaz de enfrentar um desafio comum desta dimensão em conjunto e de um modo solidário. Há muitas formas de o conseguir fazer, por mim não me agarro em nenhuma em específico.

É essencial é que a Europa não desista de si própria e não dê uma mensagem errada aos seus povos e ao mundo, de que no momento maior crise desde a II Guerra Mundial não sejamos capazes de fazer o que mesmo que aqueles que à saída da II Guerra Mundial perceberam que o futuro da Europa tinha de ser mesmo criar primeiro a mutualização do carvão e do aço, depois criar uma união aduaneira, um mercado comum, depois um mercado interno, depois uma união monetária, depois uma união económica, depois uma União Europeia. Esta tem sido a trajetória da Europa ao longo destes 70 anos e seria absolutamente irresponsável deitarmos abaixo tudo o que construímos nestes 70 anos, num momento em que estamos precisamente numa situação só comparável com esse momento dramático que foi fundador da União Europeia. Portanto, o que devíamos ter aqui é capacidade de reforçar este espírito de união e não nos deixarmos contaminar pelo vírus da divisão.

Aumento da mortalidade em março. Costa admite mortes de casos não diagnosticados com Covid-19
Aumento da mortalidade em março. Costa admite mortes de casos não diagnosticados com Covid-19

Deixe-me voltar à situação nacional. A mortalidade aumentou bastante durante o mês de março. Há estudos que indicam que há um aumento de 600 mortes em comparação com o ano anterior. Dessas, apenas 100 serão por Covid-19. Podemos estar a ter óbitos por Covid-19 ainda não diagnosticados ou não está a haver suficiente resposta do Serviço Nacional de Saúde a outro tipo de necessidades?

As causas podem ser múltiplas. Há uma coisa que já se sabe sobre a Covid-19: não ataca da mesma forma todas as pessoas, isso é um dos fatores que o tornam a muito perigoso e de muito fácil disseminação. Muitos de nós podem estar contaminados, sem sentir qualquer sintoma e por isso estarmos involuntariamente a transmitir aos outros. Por isso é que a medida de contenção tem de ser geral. Estamos aqui e presumimos que não estamos contaminados, mas nenhum de nós em bom rigor pode saber. É isso que torna tão perigoso este vírus, porque é um vírus que as pessoas inconscientemente podem estar a transmitir a outros.

É possível que haja pessoas que possam ter falecido por outra causa qualquer e que estivessem contaminadas? É possível. Aliás, já soubemos do caso de uma criança que sabemos que faleceu com uma outra doença, com Covid-19, mas não por causa da Covid-19. Aliás, sabemos que na China, quando se fizeram análises sanguíneas posteriores, houve pessoas em que se verificou que já estavam imunizadas porque tinham tido Covid-19 sem terem sentido quaisquer sintomas.

A Alemanha também irá avançar para testes de anticorpos para perceber isso mesmo, não é?

Sim e nós podemos fazer. Os testes sorológicos estarão disponíveis brevemente, mas só vale a pena serem feitos depois de passarmos esta crise de pandemia, que é para sabermos quantos de nós é que, em princípio, teremos ficado imunizados.

Numa altura em que a Europa estava até a elogiá-lo por dar direitos de cidadania a estrangeiros em fase de regularização, tivemos notícia de uma alegada morte de um cidadão ucraniano, por violência por elementos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Já pediu explicações sobre este caso?

Esse caso está sob investigação criminal. Foi instaurado um inquérito e estou em crer que foi aplicada uma medida de detenção domiciliária a esses três funcionários do SEF.

Não ficou chocado?

Claro que fiquei. Em primeiro, fiquei chocado só com a existência da acusação, mas todos gozam da presunção de inocência. Devemos aguardar que as autoridades judiciárias desenvolvam a investigação e procedam ao julgamento, para apuramento das responsabilidades. Se for verdade, é obviamente algo imperdoável e chocante, porque quem exerce poderes de autoridade tem especial dever de cuidado no exercício desses poderes de autoridade.


O primeiro-ministro, António Costa, foi entrevistado esta sexta-feira pela editora de política da Renascença, Eunice Lourenço, e também esteve à conversa com as apresentadoras do programa "As Três da Manhã", Carla Rocha, Ana Galvão e Joana Marques.

Ana Galvão: É este o momento mais difícil da sua carreira política?

É o momento mais difícil do país e das pessoas. Seguramente não sou eu que estou na situação mais difícil, mas sim as pessoas que perderam familiares, os doentes, os médicos, os enfermeiros, quem trabalha nos hospitais, as forças de segurança, da proteção civil, as forças armadas, as IPSS, as misericórdias, que têm feito um trabalho incrível. Todos estão seguramente bastante piores do que eu e o que temos é de continuar esta batalha. Temos estado a conseguir evitar que a epidemia crescesse de forma exponencial. Não podemos baixar a guarda, não podemos desistir, não podemos achar que o pior já passou, porque infelizmente ainda vamos continuar a ter todos os dias um maior número de pessoas infetados e a falecer, até chegarmos ao ponto em que a infeção estará estancada e havemos de ultrapassar o túnel. É importante sabermos que outro lado do túnel está uma luz. Ainda não a vemos, mas está lá.

Joana Marques: Alguma vez imaginou que os reformados e os pensionistas fossem a fatia mais rebelde da população e a que dá mais trabalho nesta fase?

Tenho-me interrogado. A minha mãe, que é uma pessoa dificilmente domável e que tem grande amor à liberdade, tem sido híper-disciplinada. Deve-se a um enorme amor à vida e a um grande otimismo. Está muito disciplinada, contente e satisfeita em casa. Ela tem consciência de que assim vai ganhar anos de vida e é isso que lhe dá essa força e esse ânimo.

Joana Marques: Tanto eu como a Ana [Galvão] e Carla [Rocha] estamos em teletrabalho e com filhos em casa, sempre a interromper. Não é fácil. Estamos nós e muitíssimos portugueses que felizmente têm essa possibilidade. Eu queria perguntar ao senhor primeiro-ministro se ainda tem aquele serviço de “babysitting” que o João Miguel Tavares usou aqui há uns anos. Eu prometo que o meu filho se porta muito bem.

Se precisar, eu estou disponível. Não a descrimino em relação ao João Miguel Tavares.

Joana Marques: Muito obrigada, fico contente com isso. Há dias, considerou repugnantes as declarações do ministro das Finanças holandês a respeito da situação espanhola. Qual é a sensação, neste momento, de ser o português, talvez o único até, mais adorado pelos espanhóis?

É porque o Ronaldo já não está a jogar em Espanha.

Joana Marques: Mesmo assim, de vez em quando, embirravam um bocadinho com ele. Para terminar, uma provocação. Estamos todos enfiados em casa, as medidas para a Páscoa são ainda um bocadinho mais rigorosas, limitando a nossa liberdade de movimentos. Como é que sente a cumprir, no fundo, um sonho de Manuela Ferreira Leite, que há uns anos disse que devíamos suspender a democracia durante seis meses para pôr tudo na ordem?

Temos demonstrado bem que mesmo em emergência precisamos temos de suspender a democracia. Aquilo que o estado de emergência tem feito é dar força de lei à força dos portugueses que antes de tudo e todos se impuseram a si próprios a contenção e compreenderam muito bem que tinham de estar em casa, evitar os contactos com os outros, restringir-se na forma como habitualmente nos cumprimentamos e celebramos datas e épocas como a Páscoa. Houve individual e coletivamente uma atitude exemplar. Saúdo a iniciativa da Igreja Católica de suspender as celebrações comunitárias, tendo em vista evitar o risco de contaminação. Foi exemplar e seguramente inspirador e motivador para todos, crentes e não crentes.

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