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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

​A minha geração

20 mar, 2020 • Opinião de Henrique Raposo


Depois de evitarmos que os nossos pais morram às mãos da Peste (covid-19), teremos de criar os nossos filhos num mundo onde a Fome e a Guerra ficarão mais próximas da superfície. Ou seja, a minha geração começa a ser parecida com a geração dos meus avós.

A minha geração não está a ter uma vida fácil. Quando virou, a roda da história esmagou-nos, primeiro em 2008 e agora em 2020. A grande crise do capitalismo num século. A grande pandemia num século. Os mais velhos poderão dizer que 2008 foi um esvoaçar de borboleta ao pé do tufão de 29, tal como podem dizer que este covid não se compara à gripe espanhola, aquele mata milhares, esta matou milhões. É verdade. Só que os factos não existem num excel quantitativo, dependem da sua percepção emocional.

A minha geração não está a ter uma vida fácil, porque vive numa permanente gestão de expectativas; somos marcados por um constante abismo entre o sonho e a realidade. De resto, o nosso infortúnio histórico começa na nossa sorte inicial. Crescemos no período mais pacífico e próspero da história da humanidade. Os anos 80, 90 e mesmo o início desde século, apesar do 9/11, formaram o período da história da humanidade com menos guerras, mais riqueza distribuída, menos pobreza, mais viagens, mais vitórias sobre as doenças. Crescemos num utopia flutuante sem o sangue e o pó da história; éramos seres sem a mácula da guerra e sem a desumanização da miséria. Éramos elfos, não homens. Só que agora somos chamados à história normal dos homens. Temos de deixar o fato (e as orelhas) de elfo, temos de entrar onde nunca estivemos: na história, esse espaço onde há guerras à Hemingway, epidemias à Camus, pobreza à Steinbeck, e mal à Cormac. A minha geração não sabe lidar com estas realidades, nem sequer tem as linguagens necessárias para falar delas.

A vida da minha geração não está a ser fácil. Depois de evitarmos que os nossos pais morram às mãos da Peste (covid-19), teremos de criar os nossos filhos num mundo onde a Fome e a Guerra ficarão mais próximas da superfície. Ou seja, a minha geração começa a ser parecida com a geração dos meus avós, pessoas que enfrentaram guerras, epidemias, tuberculose, racionamentos. É à história dos nossos avós que temos de ir buscar a coragem para enfrentarmos este presente e o futuro. O diário de bordo dos nossos pais e da nossa juventude não serve.

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  • João Lopes
    22 mar, 2020 20:00
    Excelente análise!
  • Manuela
    21 mar, 2020 Lisboa 19:32
    "A minha geração não está a ter uma vida fácil. " " É à história dos nossos avós que temos de ir buscar a coragem para enfrentarmos este presente e o futuro. O diário de bordo dos nossos pais e da nossa juventude não serve. " É verdade Henrique Raposo!Temos que nos aguentar! Com paciência e com a ajuda de Deus, havemos de conseguir como eles conseguiram! Nós fomos facilitados enquanto o pão se comprava na padaria, enquanto a fruta se comprava na frutaria, enquanto o peixe se comprava na peixaria, enquanto os detergentes se compravam na drogaria e enquanto havia uma mercearia em cada esquina da rua, os mais novos ainda não notam essas faltas, mas os mais velhos notam bastante! só comem quando os Hipers lhes trazem as compras, ultimamente tem sido uma tragédia com as compras porque com medo da epidemia ninguém quer trazer as compras! eu no lugar deles sem equipamentos adequados para andarem às portas sujeitos a apanhar, acho que têm razão! Isto é tão trágico, que por vezes até dá vontade de rir: andei duas semanas a comer esparguete guisado com pedacinhos de paio e intervalei com arroz de ervilhas com pedacinhos de paio! sem pão, sem fruta... Hoje lembraram-se de aparecer de uma encomenda feita de há duas semanas e com coisas esgotadas! e a nossa sorte é haver brasileiros que entreguem! E segundo as funcionárias que atendem o telefone, os funcionários negam-se a arrumar as coisas nas prateleiras, porque não querem andar no meio dos clientes sem protecção!por isso há falta...