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Opinião de Graça Franco
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Orçamento em vigor vítima do coronavírus. O tempo corre contra nós

01 abr, 2020 • Opinião de Graça Franco


Para já, tudo o que podemos e devemos fazer é o “salve-se o que se puder”. Não confundir com o velho "salve-se quem puder", como os suspeitos do costume do norte da Europa começam já a fazer.

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Tarde e a más horas entrou esta quarta-feira em vigor o Orçamento do Estado para 2020. O mais importante instrumento de política económica será este ano uma inutilidade. Não porque só vigorará nos 9 meses que nos restam. Mas porque já não servirá de nada. Até o primeiro e histórico excedente que o faria entrar na história da democracia, afinal, já foi. E ainda bem que foi em 2019, embora não tenhamos tido tempo de o festejar, porque em 2020 certamente o não terá. Nem excedente, nem 6% de desemprego, nem crescimento, nem redução da dívida, nem a receita fiscal esperada, as contribuições, as prestações, as despesas, os benefícios ou benesses. Nada.

Por ironia, o OE 2020, sendo obviamente caduco, entrou hoje em vigor. Porque nada será como dantes. Nunca se terá visto um desajuste tão grande entre o previsto e o executado. E, Centeno, que tanto se orgulhava das suas contas certas, entra em acção com elas já erradas. E sem culpa. Talvez isso o venha agora recolocar na história, mas pelas piores razões. Boa notícia inesperada só o preço do petróleo que já vai nos 25 dólares por barril, com a última queda semanal mais forte dos últimos 27 anos. Mas quem quer pensar no petróleo agora?

Venha o Orçamento Suplementar, tão depressa quanto possível, dar ao texto publicado um mínimo de coerência. De rectificativos também teremos de falar, mas só lá mais para a frente, quando as previsões iniciais se mostrarem falhadas porque ninguém tem uma bola de cristal para as acertar com a procissão no adro.

Pior: desta vez não teremos ninguém para culpabilizar. O tão temível choque externo simultâneo de que os economistas falavam sempre que testavam os modelos, pensando na crise do petróleo da década de 70, não serve de comparação. Nem a grande depressão de 29. Nem a crise de 2011, que ao pé desta nos parece agora uma brincadeira bem mais fácil de ultrapassar. Embora seja bom que aprendamos com ela a agir enquanto é tempo. Coisa que não se fez na crise financeira. RÁPIDO, DEPRESSA, JÁ.

Agora o túnel parece não ter fim. Os mercados não gostam de incerteza e os investidores exigem confiança. Para já, tudo o que podemos e devemos fazer é o “salve-se o que se puder”. Não confundir, como os suspeitos do costume do norte da Europa começam já a fazer, com o velho “salve-se quem puder”. O exemplo clássico é o da Alemanha, que pôs em marcha só para si um plano de resgate de 750 milhões de euros (tanto quanto o BCE está disposto a ajudar os outros 26). Segue-se a Holanda (à espera de conseguir apanhar boleia do grande parceiro) e países como a Áustria, a fazerem-se esquecidos de quantas vezes já foram literalmente salvos pelos restantes.

Resta-nos colocar a nossa esperança na grande Itália e na cada vez maior Espanha. Especialmente Roma abençoada por, além de ser fundadora da UE, ser grande e poderosa e estrategicamente essencial e onde esta crise estranha, a lembrar uma bomba neutrónica, explodiu com uma força inaudita.

A 11.ª economia do mundo e a quarta europeia pode ser alvo do mais ingrato e estúpido tratamento, mas ninguém a vai deixar afundar porque leva a Europa com ela. Quando a Europa começar a adornar a Sul, o Norte, quer queira quer não queira, terá de aliviar também a carga e lançar os salva-vidas.

Como dizia na terça-feira Carlos Moedas, chamem-lhe o que quiserem à ajuda eminentemente necessária. Emissões de dívida comum garantida a 27 (os velhos Eurobonds) ou dívida de emergência para enfrentar a crise (os novos coronabonds) ou outra coisa qualquer, que o nome aqui não interessa. O que interessa é encontrar uma forma criativa de dar dinheiro às pessoas, às empresas, ao terceiro setor, àquilo que for necessário e obviamente depressa e “a fundo perdido”.

Esquecendo não apenas as limitações à politica orçamental (que já foram finalmente lançadas borda-fora pela Comissão Europeia!), mas dando à economia europeia (porque não estamos a falar de economias mas da economia como um todo) o dinheiro quem de um minuto para o outrom desapareceu nesta longa noite, como se tivéssemos vivido um pesadelo que vai para além da ficção.

Nenhum teórico se lembrou de estudar o efeito conjunto de uma crise da chamada “oferta” (resultante da paragem forçada da produção de quase tudo em quase todo o lado) em simultâneo com uma crise de impacto mundial da procura (resultante da perda de poder de compra generalizado pelo efeito de redução dos salários, desemprego generalizado).

Tudo acrescido da travagem da própria economia subterrânea, aquela que fugindo às estatísticas e aos controles estatais assegura entre 10 por cento e um quarto da economia de múltiplos países, prosperando entre feiras e vendedores ambulantes, trabalhadores ilegais e biscateiros. Em África e alguma América, é sobretudo esta economia informal com rendimentos incertos, ganhos à hora ou ao dia, que assegura a sobrevivência de largas camadas da população. O fenómeno não está estudado porque é mau demais. Seria, ou será, um susto. Basta olhar o Brasil.

Nas guerras, o aparelho produtivo é muitas vezes devastado mas a própria guerra gera áreas de negócio. Aqui a perda de capital humano, na Saúde por exemplo, não é garantido sequer que possa ser compensado pelos ganhos assegurados ao pico de atividade do setor. Há sempre as farmacêuticas, a ciência, os produtores de fatos e máscaras, de ventiladores e até os produtores de caixões que terão procura acrescida, mas de que serve isso perante a vaga de travagem global? Não aqui. Na China, na Ásia, na Europa ou na América. Em todo o mundo.

Falta-nos fazer as contas. As feitas de nada servem. As tentativas de previsão são assustadoras. Mas valem o que valem e isso é muito pouco, mesmo se falarmos só para Portugal. Algumas são tão otimistas que apetece acreditar, como as do Banco de Portugal (queda de 3,7 a 5,7% do PIB em 2020 ), outras tão pessimistas que apetece fugir, como o cenário do estudo da Católica (descida de 4 a 20%).

Hoje os analistas do Bankinter deram conta das últimas previsões para Portugal: se durar dois meses a recessão será branda ( queda do PIB de 0,8% e desemprego a subir para 7,8 %) mas no pior cenário a quebra seria de 4 % de perda de riqueza anual e o desemprego a acabar o ano em 10% ( 6,7 previstos).

Se ficarmos algures pelo meio, teremos num ano um efeito duas vezes superior ao pior ano da troika. É devastador. Sobretudo porque mesmo que o desemprego desta vez fique contido (nos 10 a 13% previstos pela Católica), com o lay-off simplificado a aplicar-se um pouco por todo o lado, as despesas da Segurança Social a entrar em colapso, uma quebra de um terço nos ordenados, em simultâneo, é uma catástrofe social. Para a travar não bastam as moratórias do crédito à habitação. Vai ser preciso muito mais porque o endividamento das famílias já retomou níveis muito altos.

A boa notícia é a de que a Comissão Europeia já percebeu que, desta vez, a questão do desemprego vai exigir solidariedade e esta quinta-feira irá apresentar a proposta de criação de um Fundo de Garantia Europeia para garantir a manutenção de postos de trabalho. Não falou em montantes, mas deixou em aberto a possibilidade de redução de horários e reforço da formação em beneficio de trabalhadores e empresas. A proposta dependerá da avaliação do Eurogrupo na próxima semana.

No início da semana, começaram a chegar as primeiras estatísticas a sério, já com 15 dias de amostragem da crise de março, mas nem isso serve para quase nada. O INE revelou o índice do clima económico provando que já passámos do resfriado à gripe e ainda praticamente sem o efeito Covid, com as expectativas a descer tanto quanto em abril de 2011, ou seja, ao nível do pedido de resgate. Estamos já assim.

E se calhar estamos pior, porque os indicadores qualitativos têm a grande vantagem de captar tendências, mas não garantem o que efetivamente está a acontecer. Se a Goldman Sachs por uma vez acertar, o que nos espera é nada mais nada menos do que uma recessão brutal.

Já que estamos até ainda aparentemente resguardados vale a pena começar a pensar no futuro, mas não adianta ficarmos debaixo da onda do tsunami. Talvez ir pensando no que faremos depois. Mesmo sem ter a certeza dos estragos, podemos ter a certeza que o mar vai recuar ao seu posto e se estivermos a salvo a única coisa que podemos fazer, até lá, é esperar na certeza de que alguns vão soçobrar e só vale a pena preocuparmo-nos com os sobreviventes, tentando que sejam o maior número possível. Tudo com a ajuda do Navio Europeu em socorro do nossa salva-vidas.

O tempo corre contra nós. O turismo, que já vale 15% da riqueza anual, tem o ano perdido (sem Páscoa nem Verão) e a crise nas companhias aéreas, que esteve na sua base de crescimento, só acabará muito tempo depois de acabada a pandemia. É inteligente que hoje mesmo tenhamos ido ao mercado buscar mais 5 mil milhões de dívida a 7 anos, ainda que com taxas já muito superiores à da última emissão, a meio de março. Daqui em diante só poderão subir.

Declarações "repugnantes" e de "mesquinhez recorrente". Costa critica ministro holandês
Declarações "repugnantes" e de "mesquinhez recorrente". Costa critica ministro holandês

O vírus persegue-nos e o desânimo afunda-nos. Pelo contrário, se tivermos razões de esperança, temos fortes hipóteses de sobreviver como os meninos da gruta tailandesa. Sabemos que a crise começou mal: a Alemanha pensou em si, mas já começou a olhar à volta, os Estados Unidos também já anunciaram um plano de 2 biliões (os milhões de milhões, na velha terminologia portuguesa). Mas na UE um grande plano Marshall/ Delors/Ursula será uma inevitabilidade.

Costa terá a presidência do Conselho já em janeiro do próximo ano e Centeno tem, pelo menos para já, a presidência do Eurogrupo. A Europa não são “eles” (onde se inclui aquele segundo inenarrável holandês que ao pedir desculpa a Espanha, admitindo ter tido “falta de compaixão” por aquele país a braços com uma grave crise de saúde pública, se esqueceu de pedir a todos os cidadãos comunitários desculpa pela sua evidente ignorância). A Europa somos todos, somos nós.

Como é possível a Holanda não ter um ministro das Finanças capaz de perceber que não é hora de regatear ajuda, mas hora de ajudar com magnanimidade? Senão por compaixão, ao menos por egoísmo. Senão quiser afundar-se com todos os restantes. Costa tentou explicar-lhe, mas ele próprio tinha dias antes incorrido no mesmo erro. Bem prega…

Costa afirmou numa infelicíssima frase numa das suas entrevistas à TV: “ Como é que podemos dar dinheiro? O dinheiro é de todos.” É verdade. Mas, precisamente por isso, porque é de todos e lho entregamos apenas para o gerir o melhor possível, é urgente que o dê. Sem burocracias, sem intermediações bancárias, e o mais rápido possível a quem dele precisa urgentemente para sobreviver, pagar salários e manter a porta aberta, mesmo com a porta fechada. Dê-o rapidamente sem cobrar juros. É isso que queremos que o ministro holandês perceba, mesmo que lhe chamemos “empréstimo”, ou o que ele quiser, mas “ a fundo perdido”, “perdidíssimo”, como aliás já se fez mil outras vezes.

Não se trata apenas de nos salvarmos e de salvar a economia . É também de democracia que se fala. A Hungria está aí para nos provar que mesmo na UE é coisa muito mais fácil de se perder do que de se reconquistar. Do malvado vírus sabe-se pouco: apenas que é “inteligente” e agressivo, e teme-se que seja também perigosamente nacionalista e autoritário. As ditaduras nascem das crises e alimentam-se da fome.
Comentários
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  • Joaquim Santos
    03 abr, 2020 Tojal 10:02
    Não te rias do teu vizinho, porque o teu mal vem a caminho. Senhor costa afinal o Diabo chegou! E chegou para te furar as contas. Neste final da tua vida de politica, só farás asneiras para que os portugueses paguem com língua de palmo a tua escolha.
  • Antonio Santos
    02 abr, 2020 Lisboa 10:48
    Comecei a ler esta crónica por apreciar as opiniões da sua autora, ainda que não esteja sempre totalmente de acordo, mas desta vez foi para além do esperado. Diga-me D. Graça Franco: foi a Alemanha o único país a ter e a fazer um plano económico de ajuda à sua economia na União Europeia? A Itália não o fez? A Espanha não o fez? Diga-me um, e apenas um, país que não o tenha feito já. Até Portugal... E, diga-me em que momento a Áustria foi assim tão ajudada? Se está a pensar no pós IIª Guerra, foram todos ajudados. A solidariedade é esperada e exigível neste momento mas vamos ser mais rigorosos e sérios. A Renascença que tanto clama e pugna pelo combate às fake news seria bom que uma das suas princípais jornalistas fosse, ela também, mais rigorosa no que escreve.