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Micro e pequenas empresas. “Pagar os salários deste mês? Não sei se consigo”

27 mar, 2020 - 15:55 • João Carlos Malta

Bastaram menos de 15 dias para que muitas empresas ficassem sem liquidez de tesouraria para pagar aos funcionários. As primeiras a soçobrar são as que estavam já em maior dificuldade antes da chegada da pandemia de Covid-19 a Portugal. Se o Estado não abrir exceção para as empresas com dívidas à Segurança Social e Finanças no acesso a linhas de financiamento, pode ser a sentença definitiva para muitas delas. A Renascença relata o caso de dois empresários, entre muitos outros espalhados pelo país, que não sabem se vão poder cumprir com os trabalhadores já este mês.

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A Double Needle é uma pequena unidade têxtil que trabalha para a alta-costura europeia. Tem clientes em França e Inglaterra. As encomendas travaram a fundo e a empresa parou. Os 30 trabalhadores, sobretudo mulheres, estão em casa. E com o fim do mês a chegar, a corda está cada vez mais perto do pescoço. ““Pagar os salários deste mês? Não sei se consigo. Não faço a mínima ideia”, responde à Renascença, Paulo Trindade, que juntamente com a mulher gere este negócio familiar em Moreira de Cónegos, no Vale do Ave − coração da indústria de vestuário em Portugal.

Para aumentar a aflição de Paulo Trindade, que tem a seu cargo a direção financeira da unidade industrial, está o facto de a empresa não ser elegível para nenhum dos apoios que o Governo pôs à disposição. Porquê? Uma pequena crise com a saída do chefe de produção fez a empresa soluçar o ano passado. Por isso, avolumaram-se dívidas ao Estado, que agora estão a pagar em prestações mensais.

De todas as medidas que estão a ser tomadas, nós não nos enquadramos em nenhuma . O ano passado passámos por dificuldades e tivémos de ficar a liquidar prestações à Segurança Social e às Finanças. Estamos a pagar e o facto de termos uma dívida acumulada faz com que a certidão de uma e outra entidade saia como ‘não regularizado’”, descreve.

O tecido empresarial de Portugal é composto na quase totalidade por pequenas e médias empresas, as PME. Segundo dados da PORDATA, relativos a 2018, 99,9% do total de empresas são, precisamente, PME. Dentro deste grupo, segundo a mesma fonte, 96,1% são microempresas com menos de 10 funcionários. As pequenas unidades valem 3,1% − empresas que dão trabalho até 50 trabalhadores. As médias empresas, que têm até 250 funcionários, valem 0,5% do total.

Por estes valores se percebe a importância na economia portuguesa, nas exportações, no emprego, que sobretudo as micro e pequenas empresas possuem.

Porta fechada a quem tem dívidas

A impossibilidade destas empresas recorrerem aos apoios foi confirmada pelo ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, na quinta-feira, no lançamento de um novo pacote de apoio às empresas. Em resposta aos jornalistas referiu que o acesso às linhas de crédito, ao lay-off e à moratória "pressupõe que tenham situação regularizada perante o Fisco, Segurança Social e as instituições bancárias. Quem já esteja em incumprimento não vai beneficiar", deixou claro.

A exceção que permite aceder aos apoios serão as empresas que tenham entrado em incumprimento em março, mas que consigam regularizar a sua situação já em abril.

Perante esta situação, Paulo Trindade fica num impasse. “Estávamos a sair do problema que tivemos em 2019. Estava com a tesouraria mesmo resvés. Ainda vou tentar assegurar uma parte dos salários, mas a outra não sei. Os clientes fecharam a porta", infoirma,

Na mesma comunicação ao país, na quinta-feira, Siza Vieira disse, no entanto, que "as empresas que estejam a cumprir planos prestacionais e tenham a sua situação regularizada estão abrangidas".

O gestor, apesar da informação dada pelo ministro da Economia, continua a afirmar que os documentos que pediu continuam a ser carimbados como a empresa estando em incumprimento, apesar de estar a pagar o que deve. Ainda assim, com esta nova informação irá questionar os serviços do Estado.

Trindade revela que, todos os meses, precisa de 33 mil euros para poder liquidar os ordenados. “Não tenho esse dinheiro. Isto está tudo encravado”, reconhece o gestor da empresa que alimenta marcas como a Max Mara e a Carolina Herrera.

"As empresas que não preencham os requisitos previstos para esta linha poderão recorrer aos diversos mecanismos de recuperação de empresas previstos na lei ou recorrer a outro tipo de financiamento, existente no mercado, que não o exijam"

No seio dos trabalhadores impera “o medo”, revela este gestor. As operárias das empresas têm maioritariamente os maridos e os filhos a trabalhar em fábricas do setor. “Não somos caso único, por aqui está tudo mais ou menos como nós”, sintetiza.

Em resposta à Renascença, sobre que alternativa têm as empresas que detêm dívidas ao Estado para aceder a linhas de crédito, fonte oficial do Ministério da Economia começa por esclarecer que "o objetivo das linhas de crédito relacionadas com a Covid-19 prende-se justamente com o impacto causado na situação das empresas em causa. Pretendem dar liquidez às empresas que, embora sendo viáveis, foram e estão a ser severamente impactadas por uma pandemia, facto que lhes é alheio".

E depois acrescenta que "as empresas que não preencham os requisitos previstos para esta linha poderão recorrer aos diversos mecanismos de recuperação de empresas previstos na lei ou recorrer a outro tipo de financiamento, existente no mercado, que não o exijam".

“As pessoas estão desesperadas”

O caso da Double Needle dá rosto à situação descrita por Jorge Pisco, presidente da Confederação Portuguesa das Micro, Pequenas e Médias Empresas (CPPME) na quarta-feira à Renascença.

O dirigente e empresário relatava então que "as pessoas estão desesperadas, porque vão à Segurança Social e dizem-lhes que face a determinada situação não têm direito a nada, vão ao banco e ficam sem informação, tudo isto a cinco dias do fim do mês". Interrogando-se sobre o que vai acontecer, Jorge Pisco concluía que os empresários "estão com a corda na garganta".

O mês de abril poderá ser ainda pior, admite o presidente da CPPME, mas já no final de março existe o sério risco de salários em atraso de uma forma generalizada. "Acho que sim. As empresas fecharam a meio do mês, ou seja, na segunda metade de março já não geraram receita”.

Um dia depois, o mesmo responsável mostrava-se revoltado com as declarações do ministro da Economia: diz que são inúmeras as empresas nesta situação e que assim não vão ter apoio absolutamente nenhum. “Continuamos a insistir e a adiar uma solução”, critica.

Um conjunto alargado de empresas ligadas ao turismo, aos táxis e à restauração relataram também à Renascença a existência de situações de tesouraria muito complicadas, e consideram que, se não houver medidas rápidas de apoio, como o lay-off simplificado, já no próximo mês de abril, será impossível cumprir as obrigações com os funcionários.

Ontem, Siza Vieira anunciou novas regras para esta solução: passa a ser válido que a empresa apresente apenas uma queda acentuada de, pelo menos, 40% da faturação, por referência ao mês anterior ou período homólogo, e não aos dois meses anteriores como previa inicialmente a medida.

Respostas contraditórias

Vítor Médio, dono de um café e de um cabeleireiro em Santo António dos Cavaleiros, relata que a informação que tem tido dos bancos é a de que as linhas estão esgotadas. “Dizem que temos de aguardar”, refere.

Ao obter esta resposta ligou para o IAPMEI, organismo do Estado vocacionado para apoio às empresas, e do outro lado ouviu que “é impossível o crédito já estar esgotado”. No meio desta informação e contra-informação, o empresário queixa-se da falta de comunicação.

O mesmo fala de uma burocracia gigante por parte das instituições bancárias para aceder ao crédito, e queixa-se de que a entrada das empresas de garantia mútua nestas linhas é uma “machadada para muitas empresas, porque vai aumentar muito os custos”.

Os anúncios e a realidade

No Feijó, em Almada, José Carlos Ligeiro comanda um negócio dividido em quatro partes: um restaurante, uma pastelaria, uma churrasqueira e uma tasquinha. Todos no mesmo edifício, mas em portas diferentes. Juntos fazem a “Tendinha do Feijó”. Tem 16 trabalhadores.

Neste momento, está tudo fechado há vários dias. A situação da empresa é “muito grave”, porque não há "linhas de orientação para o que temos de fazer”, indica. “A informação que é dada é uma coisa, e no terreno aparece outra completamente diferente. A realidade é diferente do que se anuncia.

José dá um exemplo: “Mandam os restaurantes fazer 'take-away', mas há muitos a fazê-lo sem licença. Aqueles que têm licença deparam-se com outros problemas: dias em que não faturam nada, e outros em que vendem muito pouco. Não sabem se devem ou não fechar”, explica.

E depois há mais dúvidas para as quais não obtém respostas. “Se abrirmos em 'take-away', temos ou não direito para fazer lay-off? Se fizer 'take-away' não preciso dos 16 trabalhadores, apenas de uma ou duas pessoas”, confessa.

Em relação aos pagamentos de março, o gerente da Tendinha do Feijó afirma que, no fim do mês, que termina na próxima segunda-feira, tem de de pagar o ordenado a 16 pessoas, e que aquilo que faturou nas primeiras semanas de março “foi para pagar despesas”.

Agora estamos despidos. Como é que vamos pagar às pessoas?”, questiona. “Sabemos que precisam do dinheiro para comer. Ligamos para os bancos e dizem que estão a ver as linhas e que já mandaram os pedidos”, ilustra, afirmando que é a banca que continua com a “faca e o queijo na mão”.

Se o banco não facilitar, “não vou conseguir pagar até ao fim do mês”

Ligeiro precisa de 15 mil euros já este mês para liquidar os salários. Até pediu um empréstimo em nome próprio para agilizar a situação, mas até agora não tem resposta. Esta até pode ser uma solução para o imediato, mas e depois?

“No mês que vem, vamos estar na mesma. Esta solução serve para agora e não para depois. Ainda temos abril e maio, pelo que se diz”, equaciona.

O empresário tem estado em contacto com todos os trabalhadores, e diz que, do outro lado, recebe palavras de incentivo: “Estão-me a dar força para andar com as coisas para a frente, o que sinto é que têm medo de ficar sem trabalho e de saber como as coisas se desenvolvem.

José diz que costuma pagar um dia antes do fim do mês, mas pelo que está a ver, “se o banco não facilitar, não vou conseguir pagar até ao fim do mês”.

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  • Paula Carvalho
    20 abr, 2020 Belas/Sintra 18:39
    Sou sócia gerente mais o meu marido e trabalhadores ativos, de um ATL licenciado pela Segurança Social (sem subsisdios) que foi obrigado a encerrar a quando as escolas. Existimos há quase 22 anos. Temos 2 Certidões de não-divida que não valem de nada, pois não existe nenhuma lei que nos possa incluir. É engraçado o governo pedir não faço desemprego quando ele próprio não nos deixa nenhuma alternativa. Somos dois na mesma casa sem receber. Só mesmo o fundo desemprego. Onde está o 25 de abril, a democracia, a equidade? A nossa sanidade mental está a ser posta à prova!
  • Víctor
    07 abr, 2020 Açores 21:43
    Tenho uma pequena empresa de rent a car nesse momento não posso alugar carros ,eu sou gerente da empresa a minha esposa acabou o fundo de desemprego e não tenho como ganhar dinheiro para sustentar a minha família, tenho 2 filhos menores 14 e 10 anos não sei como fazer para passar o próximo mês e pagar as minhas responsabilidades ao banco e não só uma das ajudas que o governo podia ajudar era prolongar o tempo de aluguer dos carros da rent a car ou seja pela lei no máximo são 7 anos e poderio prolongar mais um ano ou dois para recuperar o investimento que se vez porque esse ano não se vai contar com o turismo infelizmente e a minha situação pessoal e profissional gostava de saber se poderia dizer alguma solução Muito obrigada Víctor

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