Coronavírus

Ovar. Miguel nasceu no meio da pandemia: “Como vou conseguir proteger este filho?”

26 mar, 2020 - 08:00 • João Carlos Malta

Um casal de Ovar conta a experiência do nascimento do filho no dia em que a cidade declarou o estado de calamidade pública devido à Covid-19. O medo, a incerteza, e as decisões críticas de um momento que nunca imaginaram viver. Em contraponto com a felicidade de ter Miguel: “Ele é um alento muito grande".

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Tudo está a acontecer muito depressa e muito intensamente. Tanto que às vezes é difícil lembrarem-se de tudo. Leonardo e Naida, residentes em Ovar, dão esse aviso mesmo antes de, durante uma hora, contarem o que se passou nos últimos dez dias. O tão desejado filho, o pequeno Miguel, nasceu no hospital da vizinha Santa Maria da Feira, no dia em que foi decretado o cerco sanitário em Ovar motivado pelo novo coronavírus.

Nada tem sido fácil até agora. O nascimento não foi, o pós-parto também não, e os primeiros dias em casa estão a trazer experiências que o jovem casal jamais pensou serem possíveis. O bebé ainda nem sequer pôde ser registado, e não se sabe quando será.

Nada foi como tinham imaginado. O primeiro filho é sempre difícil, mas ninguém avisou que ia ser assim. Nascer durante uma pandemia, no meio de uma cidade sitiada por ser um dos focos da doença. Não há quem esteja preparado para isto.

Mas puxemos a história um pouco atrás. Nada disto era para ter sido assim. O bebé devia nascer a partir de 7 de Março. Não aconteceu. E os dias foram passando até que a data limite chegou. A 16 deste mês estava marcada a entrada no Hospital de Santa Maria da Feira para a indução do parto. Antes, já o medo tinha começado a germinar no jovem casal. Ele professor universitário, de 39 anos, ela fotógrafa, 33. “Começámos a ficar preocupados, mas nunca pensámos que as coisas chegassem ao ponto em que estão atualmente”, revelam à Renascença.

A sucessão de acontecimentos começou a não correr conforme o guião que tinham pré-escrito nas suas cabeças, logo desde o início. Chegaram à unidade hospitalar às 8h00, e quando Naida deu entrada, Leonardo foi logo avisado de que não ia poder assistir ao parto, e que “não poderia, inclusive, permanecer no hospital”.

“Isso foi emocionalmente muito forte, tanto para mim como para ela, porque era algo com que não estávamos a contar, mas assumimos que tinha mesmo de ser, por tudo o que estava a acontecer no país”, conta Leonardo à Renascença.

Naida interrompe o marido, à memória logo lhe vêm as imagens daquela manhã que antecedeu o nascimento do bebé. Na enfermaria, quando estava a fazer o registo da tensão, notou logo “o enorme rebuliço, o pessoal a pôr máscaras e a ter cuidados redobrados”. Acabava de sair um novo Decreto-lei que regulamentava os partos durante a crise criada pelo novo coronavírus.

Além de não poder assistir ao parto, o pai teria apenas 10 minutos para ver a criança no dia seguinte. A isso somar-se-ia a impossibilidade de estar com Naida. “Tive de me vir embora com toda a densidade emocional e dificuldade que isso acarretava”, recorda o pai.

Nessa altura, pareceu-lhe que o mundo estava a desabar. “Foi terrível, passa-se a ter medo de tudo, por não saber quando é que ia ver a minha mulher. Imaginámos isto durante anos, um sonho que se tornaria realidade, mas afinal dali para a frente seria apenas incerteza”, recorda.

Os números das projeções de infetados que começaram a ser publicados em catadupa também não ajudaram. Lembra-se de pensar: "Como é que vou conseguir proteger este filho? Assustou-me a questão económica e o desemprego que isto vai gerar."

Naida sentiu-se desamparada. No fim de semana tinha visto que a maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra, estava a tomar este tipo de medidas e tinha receio de que isso acontecesse. Mas não tinha pensado seriamente no assunto, nunca achou que lhe iria acontecer. “Quando me disseram que ele não poderia estar presente, nem consigo descrever”, declara a mãe. Para de falar por breves instantes, do outro lado do telefone não consegue conter as lágrimas.

"Foi terrível, passa-se a ter medo de tudo. Imaginámos isto durante anos, um sonho que se tornaria realidade, mas afinal dali para a frente seria apenas incerteza"

Tentou reagir, e conseguiu-o devido ao apoio dos profissionais de saúde da unidade da Feira. Também procurou animar-se. “Tentei pensar que, no final de contas, tive muita sorte de ter tido o bebé numa fase inicial desta pandemia. Na verdade não imagino como será no pico, mesmo os profissionais de saúde não sabem se terão de abandonar os seus postos”, perspetiva.

Passadas umas horas, às 2h00 desse dia 17, o bebé nasceu de cesariana. Miguel veio ao mundo com 49,5 centímetros e 3,550 quilos.

Leonardo pôde visitá-lo no dia seguinte. Os tais míseros 10 minutos, mas que foram de ouro. “Foi maravilhoso, mas por outro lado doloroso porque é muito pouco tempo”, recorda.

Foi para casa para voltar com roupa para Naida e para o menino, chegou ao destino, mas de lá pôde sair.

O cerco sanitário. “Estou preso” com um filho recém-nascido noutra cidade

Nesse mesmo dia, as autoridades chegam à conclusão de que o vírus que provoca a Covid-19 está a espalhar-se de forma incontrolável naquela cidade do litoral Norte e é decretado o cerco sanitário. Ninguém entra, ninguém sai. É imperioso controlar o coronavírus.

“Já não pude levar a roupa. O cerco foi anunciado à tarde e fiquei em pânico. Disse para comigo: ‘Como vai ser? Estou aqui preso, amanhã já não consigo sair do concelho de Ovar’.”

Uma amiga sugere que ele ligue para uma linha de apoio criada pela autarquia local e conte a situação que está a viver. É o que faz, mas do outro lado, apesar de ter encontrado compreensão, deparou-se também com a firmeza de que as regras não são para quebrar.

“Eles foram extremamente atenciosos, mas disseram que não podia mesmo sair. Estava proibido. A pessoa que atendeu até foi confirmar com um superior. E responderam-me: ‘Estamos quase em estado de guerra, temos de minimizar os contágios, porque isto está muito complicado em Ovar’.

É-lhe dada apenas uma alternativa. Deveria falar com os bombeiros locais, para quem teria de ligar depois de Naida ter alta e nessa altura teria de ser encontrado algum tipo de solução. Aas autoridades locais assumiram: “Não podemos antever o que poderemos fazer, porque nada disso está previsto. Aguarde e fale com a sua mulher. Não podemos fazer mais”, ouviu do outro lado da linha.

A seguir tinha de telefonar a Naida e dar-lhe a novidade. Não lhe podia ter custado mais. “Foi horrível dar esta notícia, senti-me completamente impotente. Preso. Sem qualquer tipo de capacidade de fazer seja o que for”, lamenta.

Do outro lado da linha, a esposa não conteve a revolta. Nos dias em que esteve no hospital não teve acesso à televisão, apenas tinha internet que usou para fazer videochamadas para o marido e para os pais. Não acreditava que as coisas estivessem tão complicadas. “Acho que disse: ‘Isso não pode ser assim, tens de me vir buscar. Não faz sentido nenhum, como é que me vou embora?' Não estava a compreender”, relembra.

"Foi horrível dar esta notícia, senti-me completamente impotente. Preso. Sem qualquer tipo de capacidade de fazer seja o que for"

Quando percebeu que era mesmo a sério e não teria escolha, a recém-mãe começou a tentar resolver a situação. Falou com o hospital e teve a sorte de ter “uma enfermeira e um médico fantásticos”, residentes de Ovar e que trabalhavam naquela unidade de saúde de Santa Maria da Feira. Prometeram agilizar a situação, mas avisaram-na de que ela não era caso único. “Há aqui outras mães de Ovar e que vão ter alta nos próximos dias. Neste momento, nem o hospital pode ficar com vocês. Quando tiverem alta têm de sair e essa situação tem de ser vista”, disseram-lhe.

O risco está em todo o lado. Para onde ir?

Sabiam que Naida sairia, mas resolvido um problema apareceu outro logo de seguida. Qual era o destino mais seguro? A situação em Ovar estava muito complicada e o risco de contágio era alto. Começaram a equacionar que Naida e o bebé fossem para casa dos pais dela em Estarreja.

“À data não havia a garantia de que, depois da entrada no concelho, ela pudesse sair na eventualidade de alguma emergência. Isso escaldava-nos. Pelo meio, tivémos conversas em que tentava convencer a Naida a ir para casa dos pais”, conta Leonardo.

A sogra, que trabalha num centro de saúde local, ligou a Leonardo e reforçou: “Sei que vai custar muito ouvir o que lhe vou dizer, mas é melhor a Naida não ir para aí, porque há o risco de contágio, não se sabe o número de infetados e não sabe se você está infetado ou não.”

Por mais que lhe pesasse a decisão, começou a pensar que o melhor era a mulher e o filho não irem logo para casa. “Fiquei consternado, mas automaticamente pensei tenho de fazer o que era melhor para ela e para o bebé.”

No entanto, a solução de casa dos pais de Naida também não era perfeita. A mãe é profissional de saúde − e está a trabalhar tendo contato com centenas de pessoas − e o pai é doente oncológico. Somava-se o facto de aquela casa não estar preparada para receber um recém-nascido. “Não havia uma situação ideal”, resume Leonardo.

Até agora não sabem se foi a melhor decisão, mas foi a que tomaram com a informação que tinham. O hospital deu transporte para casa a Naida e outras duas mulheres de Ovar, que também tinham acabado de ser mães. Desde aí, o casal e o bebé estão fechados em casa há seis dias. Só saem para pôr o lixo na rua.

Sem saber se pode sair com o bebé numa emergência

A incerteza tem dominado o dia-a-dia, mas há uma questão com que Naida está com dificuldade em lidar. No próximo dia 30, segunda-feira, tem uma consulta na vizinha localidade da Murtosa. É a primeira do bebé e, nessa altura, também terá de tirar os pontos da cesariana. Detém uma declaração para poder deslocar-se até lá e a linha de apoio ao munícipe de Ovar garantiu-lhe que conseguiria sair, desde que fosse sozinha, ou seja, sem o pai da criança.

"O que sabemos é que é muito arriscado circular aqui, porque há imensa gente contaminada. E muita gente que está, e nem sequer sabe."

Mas alertaram que se por algum motivo não a deixassem passar nas barreiras que as autoridades criaram, deveria ligar para resolver a situação. “Estou com o coração nas mãos até que isso aconteça”, confessa.

Não poderia resolver isso no concelho? “Seria o meu plano B, mas estamos a tentar evitar fazê-lo. O que sabemos é que é muito arriscado circular aqui, porque há imensa gente contaminada. E muita gente que está e nem sequer sabe. Temos de correr o mínimo risco possível. Mas na Câmara eles nem puseram essa opção.”

Youtube substituiu a avó e a irmã

A primeira semana do Miguel em casa até tem corrido bem, dentro de todas as restrições que se pode imaginar. “Vivemos um misto de emoções. Uma alegria por tê-lo connosco, isso foi extremamente bom. Estamos reunidos. Mas há imensas dificuldades e contingências”, refere o pai.

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Leonardo afirma que o isolamento a que estão confinados cria problemas práticos. Sem o apoio da família − dos avós ou dos irmãos − o primeiro banho, por exemplo, pode ser uma missão hercúlea. “Não sabemos logo como se pega no bebé. É verdade que há um monte de vídeos online no YouTube, mas não é a mesma coisa”, considera.

As cólicas, normais nestes primeiros tempos, fazem com que as noites sejam passadas em claro. “Só hoje [anteontem] tivemos uma noite em que conseguimos dormir”, anuncia.

Naida revela que o que mais perturba o casal nem é o cansaço. “É viver isto com a incerteza do que se passa lá fora e do que vem a seguir. Por mais que as pessoas digam para vivermos ‘esta bolha de amor’, não conseguimos. Não sabemos como vai ser”, teme. “É difícil, é muito difícil”, anui Leonardo.

Sem registo e sem resposta da Segurança Social

Ao dia-a-dia complicado somam-se as burocracias, difíceis de resolver. Num mundo pré-Covid-19 seria impensável uma criança estar há mais de uma semana sem registo. Mas Miguel não tem sequer a certidão de nascimento.

Quando fez a primeira e única visita ao filho, Leonardo perguntou às enfermeiras se poderia tratar do registo da criança. “O que me foi dito é que o teria de fazer fora do hospital, uma vez que os registos da unidade estavam encerrados por causa do coronavírus”, detalha.

Quando a criança chegou a casa, no dia 20, tentaram perceber se podiam fazer o registo civil na cidade. Foi-lhes dito que não se preocupassem, “porque os prazos legais para este tipo de procedimento ia ser alargado”. E foi ainda garantido que, neste momento, não havia problema nenhum que a criança não tivesse documentos.

“A criança não tem qualquer tipo de registo, nem certificado de nascimento”, frisa Leonardo.

Isso tem também impacto no pedido da licença de maternidade e da licença de paternidade. Leonardo conseguiu falar com duas das instituições de Ensino Superior para as quais trabalha e o processo está em "stand-by". “Tinha de ter o certificado de nascimento da criança e não o tenho, e formalmente o processo não pode seguir. Está adiado até que tenha o documento.”

Com a mulher nenhum problema, mas ele ainda não conseguiu resolver com a Segurança Social a questão da licença. No formulário digital, o último passo não é validado. Não encontra explicação e também não o consegue obter por telefone. “A linha diz que tem muitos pedidos e o tempo de espera é muito demorado. Avanço na mesma e há um ponto em que o telefone se desliga”, lamenta.

Gestos que são uma bolsa de oxigénio

Os últimos dias têm sido vividos de forma intensa, com muita tensão, e decisões difíceis de tomar. Ainda assim, e depois de todo o processo, o casal de Ovar diz que é incapaz de apontar o dedo seja a quem for, desde políticos ao Governo, ou ao presidente da Câmara “por ter decretado o cerco sanitário”.

Os agradecimentos vão todos para os profissionais de saúde. Inexcedíveis. Sempre. “Estão a querer fazer com o pouco que têm e fazem muito. Há uma genuína vontade de todos em ajudar. Todos aos quais recorremos estão a passar por momentos muito difíceis”, destaca o casal.

Entretanto, Leonardo e Naida vivem um momento que nada tem a ver com os sonhos que criaram a dois. Pensavam “em momentos específicos de lazer, de convívio, com a criança e com a família”. “Momentos bonitos de partilha e que geralmente trazem uma alegria muito grande”, detalham.

Mas a realidade trouxe uma história bem diferente. Ainda assim há alegria, momentos de profunda alegria no dia-a-dia com o filho. “Há pequenas coisas que são bolsas de oxigénio. Principalmente, quando o Miguel faz alguma coisa que nos enternece, ou algo que não conseguíamos fazer e passamos a conseguir. Tudo isso ajuda a esquecer, ainda que por momentos muito breves, o que está a acontecer no mundo e no país”, confessa.

Num momento único de adversidade, Miguel vai ser o motor desta família para sair da crise. “Ele é um alento muito grande, porque as nossas necessidades deixaram de ser a prioridade, passou a ter a ver com o que ele precisa para ser feliz.

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