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Coronavírus. Senado dos EUA aprovou o maior pacote de estímulos económicos de sempre

26 mar, 2020 - 22:39 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

Nem na depressão de 1929, nem na recessão de 2008, foram aprovadas medidas tão extensas e tão onerosas para resgatar a economia. O pacote que os senadores americanos aprovaram significa metade do orçamento anual do país e é o dobro dos estímulos lançados por Obama há 11 anos. Um consenso político só possível face à ameaça do coronavírus.

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O que aconteceu na madrugada desta quinta-feira no Senado dos Estados Unidos é inédito. Numa época em que as divisões políticas na América atingiram um ponto nunca antes visto, em que a animosidade e até o ódio entre adversários políticos se tem feito sentir com nunca, o Senado votou por unanimidade um pacote de estímulos à economia americana que representa cerca de metade do orçamento federal anual do país.

Após seis dias de negociações duras, após muitos avanços e recuos, após muitas recriminações mútuas, os senadores chegaram a um consenso arrancado a ferros que permite lançar na economia 2,2 biliões (trillion) de dólares, a maior injeção de sempre de dinheiro público na dinâmica economia privada americana. Num orçamento anual que ultrapassa pouco os 4 biliões de dólares, o pacote representa cerca de 10% do PIB. Um “milagre” político só possível devido à crise provocada pelo coronavírus e ao seu impacto na economia do país.

O pacote, que tem 880 páginas, começou por ter uma incidência grande nos estímulos às empresas, quase ignorou os efeitos previsíveis na força de trabalho, refletindo a concepção mais conservadora dos republicanos. Mas os democratas recusaram dar o seu aval e foram forçando alterações e adendas até obter o essencial daquilo que pretendiam.

Uma das tranches mais controversas atinge os 500 mil milhões e destina-se a apoiar as grandes empresas afetadas pela crise, incluindo as companhias aéreas. Um pacote que refletia mais as preocupações dos republicanos, mas ao qual os democratas deram o aval quando obtiveram contrapartidas para apoiar os trabalhadores por conta de outrem e os auto-empregados. As críticas principais a esta tranche apontam para que ela não acautela a preservação dos postos de trabalho e pode acabar por beneficiar apenas os gestores e acionistas das grandes empresas, como sucedeu com muitos resgates durante a recessão de 2008, sobretudo no setor financeiro.

Uma outra tranche significativa atinge os 367 mil milhões e é dedicada a pequenas empresas para que mantenham o pagamento de salários aos seus funcionários durante o tempo em que não puderem trabalhar. São linhas de crédito, mas as pequenas empresas que não despedirem ficam dispensadas de devolver grande parte do empréstimo. Segundo os democratas, o pacote vai permitir pagar aos trabalhadores dispensados ou mandados de férias compulsivamente os salários durante quatro meses, mais um do que previsto inicialmente.

O subsídio de desemprego, que na América só dura seis meses e cujo montante difere de estado para estado, passa a ter um adicional de 600 dólares por semana, por trabalhador. Ou seja, cada desempregado receberá o subsídio de desemprego a que tem direito no estado onde reside e a esse montante acrescem 600 dólares semanais para fazer face à crise. Pela primeira vez, os auto-empregados e os precários (vulgo “recibos verdes” em Portugal) são abrangidos pela medida. Os motoristas da Uber ficam incluídos, por exemplo. Estas medidas vigorarão por quatro meses e custarão 250 mil milhões.

Cheques para casa

Mas aquilo em que o pacote é mais inovador e inesperado é no apoio financeiro direto aos que têm menores rendimentos. Todos os adultos que ganharem até 75 mil dólares por ano vão receber um cheque de 1200 dólares diretamente do Tesouro americano. Se for um casal a ganhar até 150 mil/ano receberá o dobro e ainda 500 dólares por cada filho. Será um pagamento único e excecional que visa estimular o consumo das famílias e ajudar a economia a flutuar na crise. Custará 300 mil milhões.

Mas mesmo sendo um pagamento único não deixa de ser surpreendente que os legisladores americanos o tenham aprovado porque ele contraria as mais arreigadas convicções e doutrinas económicas prevalecentes nos EUA. A entrega direta de dinheiro aos cidadãos em idade ativa e a trabalhar — aquilo que tem sido chamado o rendimento básico incondicional — é uma medida inédita que começou a ser debatida nos últimos anos graças a alguma esquerda europeia.

Um dos candidatos às primárias democráticas, o milionário Andrew Yang, defendeu a consagração deste rendimento básico sistematicamente nos debates em que participou nos últimos meses. Segundo ele, a melhor forma de estimular a economia era dar mil dólares mensais diretamente a todos os cidadãos. Mas nenhum dos outros candidatos aderiu à sua tese e a ideia ficou a pairar como algo bizarra no contexto americano.

O facto de ela ser adoptada agora no âmbito deste pacote não pode, contudo, ser visto como a sua consagração já que se trata apenas de uma entrega única, que não terá continuidade mesmo que a crise dure vários meses.

Em qualquer caso, todo o pacote aprovado contraria a tradição americana do governo limitado e do livre funcionamento dos mercados, refletindo um keynesianismo de contornos bem mais europeus do que americanos.

O dobro de Obama

O único paralelo histórico com este pacote será provavelmente o New Deal do presidente Franklin Roosevelt posto em prática nos anos 1930 para combater Grande Depressão de 1929. Mesmo os resgates da indústria automóvel (e não só) que o presidente Obama promoveu em 2009 para fazer face à grande recessão não têm comparação com o presente em termos de volume financeiro e de alcance social. O pacote atual ascende a cerca do dobro daquele que Obama disponibilizou.

Naturalmente, o pacote inclui ainda apoio direto aos hospitais e à FEMA, a agência de proteção civil. Os hospitais vão receber 130 mil milhões e a agência terá um reforço orçamental de 45 mil milhões. Haverá ainda 150 mil milhões disponíveis para os estados apoiarem as respetivas populações e reforçar os serviços básicos.

Ficaram excluídos dos apoios todos os negócios detidos por membros do Congresso e pelos principais membros da administração, incluindo os negócios da família Trump.

A votação foi unânime — os 96 senadores presentes aprovaram o pacote. Que tem agora de ser submetido à Câmara de Representantes para aprovação final. Mas não se antecipa qualquer problema visto que o consenso partidário já foi conseguido na câmara alta do Congresso.

Os líderes dos dois partidos congratularam-se no final, mas nas franjas há sempre descontentes. Enquanto alguns mais conservadores entendem que o pacote foi longe demais nos apoios, alguns mais liberais entendem que ficou aquém do necessário.

Quatro senadores republicanos eleitos em estados onde se praticam salários baixos exprimiram o seu receio com o facto de o pacote dar generosos subsídios a trabalhadores que os poderão desmotivar para regressar aos empregos depois da crise.

O governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, disse que a verba prevista para o seu estado, o mais flagelado pelo vírus, é insuficiente — 4 mil milhões quando necessita de 15. E Alexandria Ocasio Cortez, a mais liberal dos atuais eleitos democratas, também manifestou descontentamento pelo âmbito do pacote não ser tão alargado quanto gostaria.

A todos, a liderança democrata respondeu que este é apenas um primeiro estímulo económico para evitar o desastre total e que outros virão quando a crise o justificar. Uma convicção contrariada pelos republicanos, que atribuem a este pacote um estatuto de exceção absoluto e algo a não repetir. E que antevêem até que não seja necessário aplicá-lo na íntegra porque a crise estará debelada mais cedo do que o previsto.

Trump muda estratégia

Steve Mnuchin, o secretário do Tesouro, foi claro: “Previmos três meses. Espero que não precisemos disto durante três meses”. E o presidente Trump reiterou o seu otimismo: “Creio que não vai ser necessário um remendo tão duro”, antevendo que, quando a crise acabar, a economia vai disparar “como um foguetão”.

Não se vislumbra, por ora, qualquer razão para tal otimismo, porém. Soube-se esta quinta-feira que só na semana passada houve 3,3 milhões de pessoas que se candidataram ao subsídio de desemprego. É um número recorde absoluto.

Desde que o Departamento de Trabalho colige dados sobre o emprego no país, em 1967, nunca tinha havido uma tal corrida ao subsídio. Até agora, o momento mais difícil tinha sido em 1982 quando 695 mil pessoas se inscreveram nos centros de emprego. É quase cinco vezes menos do que agora. Isto após um dos períodos mais longos de criação de emprego que a América conheceu. Pela primeira vez desde que Trump foi eleito, este mês de março vai registar uma baixa na criação de emprego. O desemprego está hoje — ou estava até ao mês passado — nuns históricos 3,5%, o que significa praticamente pleno emprego.

Enquanto boa parte dos economistas vai alertando para uma recessão profunda que durará até pelo menos ao final do ano e defende a extensão das medidas agora aprovadas até essa altura, Trump alimenta um otimismo em público que visa manter a sua base de apoio confiante no futuro e sobretudo confiante na sua condução da crise.

Com a economia a afundar-se, aquele que era o seu principal argumento eleitoral para novembro esboroa-se. Por isso, há que mudar a narrativa rapidamente e encontrar outro motivo de orgulho e otimismo. E tudo leva a crer que Trump já o encontrou: a sua gestão da crise. Convencer os americanos que a forma como tem conduzido a crise é a mais eficiente possível e ele, enquanto “presidente de guerra”, o líder de que a América precisa.

Uma estratégia que, por ora, parece estar a resultar. Uma sondagem da Gallup publicada na terça-feira coloca-o na posição mais confortável de sempre: 49% das pessoas aprovam a sua presidência e 60% aprovam a forma como tem gerido a crise do coronavírus. Uma subida que abrange independentes — dão-lhe o seu aval 43% quando antes eram 35% — e mesmo democratas — 13% quando antes eram apenas 7%. Mais de um quarto dos democratas (27%) aprovam a forma como ele tem gerido a crise.

Duas outras sondagens, uma da CBS News e outra da Monmouth University, confirmam estes dados. Cerca de 50% dos americanos aprovam a gestão presidencial da crise. São dados algo surpreendentes atendendo ao facto de Trump ter andado cerca de dois meses a negar a perigosidade do vírus.

Convém, contudo, não esquecer que os efeitos da crise económica ainda não se fizeram sentir verdadeiramente. E que a disseminação do covid-19 vai mergulhar o país num clima sombrio. Esta quinta-feira a América passou a ser o país do mundo com mais infetados pelo coronavírus. E a epidemia está só a começar. Estes serão os dois fatores determinantes que moldarão o juízo dos americanos sobre a sua liderança política.

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