19 mar, 2020
Marcelo Rebelo de Sousa está de volta a Belém. Saudemos o regresso. Depois de quase parecer desaparecido em combate voltou disposto a liderá-lo. Não por acaso no discurso à noite, feito ao país, se assumiu como “o primeiro” e nunca “o último dos responsáveis”, constituindo-se como o garante da verdade devida aos portugueses. E a verdade é um valor essencial para a manutenção da confiança a salvaguarda da economia e a superação da crise e do medo. Mesmo em fim de mandato.
Cumpridas as formalidades, ou seja, ouvido o Conselho de Estado, sem oposição do Governo (embora também sem grande entusiasmo!) e autorizado por ampla maioria parlamentar, o Presidente assinou e mandou publicar o diploma que a partir das zero horas de hoje colocará o país em estado de emergência. Um diploma histórico de que António Costa, dando-lhe conteúdo, poderá agora fazer o que quiser.
Há uma vaga sensação de pesadelo em tudo isto. Depois do PREC o país vive pela primeira vez em Estado de emergência. Era um cenário possível? Claro. Bastava repetir-se o terramoto pelo qual esperamos todos os anos em Lisboa (exactamente porque também esperamos com uma certeza razoável que não acontecerá). Fora isso, apenas um cenário Torres Gémeas seria possível de o justificar.
Mas cenários como o de hoje, vindos das principais cidades do mundo desertas, com centenas de mortos e hospitais a abarrotar e a certeza que tudo vai ainda piorar, durante provavelmente tempo demais, só em filmes de ficção. Marcelo mostrou saber que o estado de espírito dos portugueses é esse: com o medo a dividi-los entre os que acham a sua decisão tardia porque já se justificaria “ anteontem “ e os que o vão criticar por considerarem que a decisão é, no mínimo, “dispensável, prematura e até perigosa”.
Estou entre os primeiros. Talvez por isso acho muito possível que os portugueses demorem ainda algum tempo a entender o que poderá ter levado Marcelo a adiar por mais três dias uma reunião que lhe parecia da máxima urgência - quanto mais não fosse porque o tema a debater era exactamente a declaração do estado de emergência - e o próprio conceito subjacente a esta palavra não é compatível nem com atrasos nem adiamentos mesmo de 72 horas.
Se até ontem, parecia haver desculpa, a convicção predominante na opinião pública era a de que o presidente estava a levar a cabo um exercício pedagógico de respeito pela quarentena, a partir de quarta-feira à tarde e depois de terem assistido a uma reunião por vídeo-conferência, deixou de se perceber de facto a razão do adiamento. Uma reunião naqueles moldes poderia ter sido convocada a qualquer tempo, estivesse o presidente onde estivesse e nada o impedia de ir a Belém.
Acresce o facto de na última semana as mensagens de Marcelo em tudo contrariarem a imagem consolidada ao longo do mandato: primeiro, um infeliz vídeo que não poderia parecer mais amador e que ao contrário de transmitir “proximidade” na opinião de quase todos esbateu a dignidade indispensável ao exercício do cargo; depois, a escolha da indumentária usada na participação na própria vídeo-conferência. Num momento de extrema gravidade e susto para todo o país o Presidente regressou aos ecrãs, depois de um longo intervalo, no que aparentava ser de “luto” carregado. A imagem em televisão nem sempre é tão fiel quanto a pretendida. Alguns cinzentos e azuis escuros podem parecer-nos negro facilmente.
É absolutamente fundamental sem aligeirar a gravidade da situação, nem a necessidade de todos envidarmos esforços para, em comum, vencer um combate particularmente difícil que não percamos a esperança na vitória, o que não é compatível com uma imagem de antecipação de uma ida ao cemitério.
Recomendava-se portanto, num mundo em que a imagem é parte integrante da mensagem, um visual discreto, ao estilo e com o bom gosto a que o presidente sempre nos habituou, mas que não acentuasse o medo que hoje já vai corroendo o tecido social.
Só à noite na comunicação ao país e apesar de não ter alterado a indumentária, esta finalmente ganhou cores e Marcelo ressurgiu igual ao que seria esperado. Será que isso bastou para apagar os erros anteriores?
Só aí se sentiu de facto o regresso presidencial. Acentuou e bem que motivos o levaram a esta opção polémica e o Governo não pode queixar-se de não ter, a partir deste momento, toda a margem de manobra para combater a guerra com todas as armas jurídicas indispensáveis. Deixou aliás em aberto que caso o Governo não pretenda utilizar nenhuma dessa margem agora concedida a medida possa vir a ser revista já daqui a quinze dias. Ou seja, a sua renovação embora provável (podendo mesmo repetir-se até à mais temida “exaustão”) não é obrigatória e o facto de nada de essencial mudar nas nossas vidas muito provavelmente não torna inútil o gesto de unidade e solidariedade inter-institucional.
A prova está no gesto ter levado o PSD a passar de partido de oposição a partido de colaboração com Rio a distanciar-se positivamente de um tom injustificadamente crispado do seu antigo parceiro de coligação.
Telmo Correia apesar de, em nome do CDS, ter dado o seu acordo ao decreto presidencial, sentiu uma necessidade excessiva de se demarcar das decisões do executivo atribuindo-lhe a total responsabilidade da gestão de uma crise para a qual, em rigor, o presidente não fez mais do que convocar-nos a todos. Negar pegar em armas numa altura destas só pode garantir que o primeiro tiro já saia pela culatra.
O tom, finalmente certo, de Marcelo e as cinco explicações dadas para a medida; antecipar e reforçar a solidariedade entre poderes públicos, adoptar um conceito mitigado de emergência que em nada coloca em risco, nem suspende, a democracia que apenas se pretende preservar, não “regidificar” os poderes acrescidos, concedidos ao governo através de uma rápida reavaliação, tentar não interromper “a vida das pessoas e empresas”, pedindo-lhes a dose certa de mobilização colectiva e sobretudo passar a mensagem de que o pior que nos poderia acontecer-nos agora “era fazer o país parar e deixar a economia morrer”. Tudo isto, bastou para justificar a medida e o regresso presidencial. Faça agora o Governo da margem de manobra acrescida o que quiser.
Talvez tenha sido tarde, mas valeu a pena.
Sigamos o conselho: para vencer o inimigo “insidioso” não nos deixemos primeiro vencer pelo desânimo do que corre mal, o cansaço e “pela fadiga” de uma luta que tarda em acabar e que “tolhe a vontade, aumenta as dúvidas, alimenta indignações e revoltas”. Não é hora para arrufos nem aproveitamentos. Afinal, mais de 40 anos depois do PREC estamos de novo, em democracia, mas em Estado de súbita Emergência.