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João Dinis, o “herói” que deu nova vida à Ribeira das Vinhas

27 fev, 2020 - 23:28 • Ana Carrilho (texto e fotos)

Campanha europeia “EU Protects” distingue os que trabalham para garantir a proteção dos cidadãos.

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Não se veem como “heróis”, apenas fazem todos os dias o seu trabalho. Mas de alguma forma, milhares de pessoas contribuem para a segurança e bem-estar dos cidadãos europeus a diversos níveis: segurança, saúde, ambiente ou social.

A União Europeia decidiu distinguir alguns destes “heróis comuns” pelos projetos em que estão envolvidos e que acrescentam valor à qualidade de vida de milhões de pessoas.

Há vários heróis portugueses e a Renascença foi conhecer um deles: João Dinis, da Cascais Ambiente, geógrafo e coordenador de Alterações Climáticas e Sustentabilidade há oito anos.

O Trilho da Ribeira das Vinhas é um dos projetos, com comparticipação de fundos comunitários, destinado a combater as alterações climáticas e as consequências das ondas de calor. E que lhe deu o título.

A conversa (e a caminhada) começam no acesso que serve a população dos bairros de S. José e Fontainhas. “Em cinco minutos estão no centro da vila de Cascais”, explica João Dinis.

Ainda estamos numa zona de prédios altos, mas o vale já se mostra e os desenhos de um pássaro numa tampa de drenagem das águas pluviais chamam a atenção. Ficamos a saber que esta é apenas uma das 52 que existem ao longo do trilho, todas bem disfarçadas com representações de aves, mamíferos, répteis e até das casas saloias, obra do artista urbano Tiago Hacker.

“Fizemos isto para as pessoas perceberem a enorme biodiversidade e a riqueza natural que aqui existe e que por vezes estava escondida.”

O trilho foi inaugurado em 2017, mas o corredor já existia há décadas e era usado como acesso a Cascais, antes da “era do carro”. Do norte ao centro da vila são quatro quilómetros que passam por todos os bairros e podem beneficiar cerca de 25 mil pessoas.

O concelho de Cascais tem diversas ribeiras e tem havido uma intervenção no sentido de prevenir as inundações na sequência de chuvas intensas. “No caso da Ribeira das Vinhas a abordagem foi diferente e tentámos juntar a drenagem destas águas para reduzir os riscos de inundação, com a valorização de todo aquele património natural para uso da população, quer seja no seu quotidiano, através da mobilidade suave, ou apenas para lazer. Foi uma aposta ganha e com menos custos porque se aproveitaram algumas infraestruturas e porque tudo é o menos artificializado possível”, explica o responsável pelo projeto, João Dinis.

Piso com areão compactado, um pouco erodido para ser menos impermeabilizante e o menos impactante no espaço. Um percurso sem outra luz que não a natural. João Dinis admite que essa foi “uma batalha que tivemos”, mas o fato de ser um espaço naturalizado, leito de cheias e classificado travou a colocação de candeeiros.

“E depois também temos que perceber que os humanos não são os únicos utilizadores. Se eu tenho 52 espécies aqui desenhadas, essas 52 espécies não precisam de iluminação noturna, só nós”.

Mas deixa o desafio para que as pessoas se aventurem no espaço à noite, “não é preciso ter coragem”.

À medida que descemos, ouve-se cada vez melhor a água na ribeira, que também se nota mais abundante nalguns pontos. E muitos outros sons: pássaros que cantam, insetos que voam, cães a ladrar, as galinhas a cacarejar.

“Estamos no centro da vila de Cascais e ouvimos todos estes sons de campo. E também vamos ver as ovelhas ali mais adiante”.

Sucesso graças (também) à colaboração dos proprietários

Chegámos a uma zona de confluência de acessos para o mercado de Cascais, neste dia particularmente cheio de carrinhas de vendedores ambulantes, porque era Dia do Mercado. E, depois, o desvio para uma área onde começam a ver-se muitas quintas ladeadas pelos antigos socalcos que deram nome à ribeira.

O geógrafo admite que um dos grandes desafios do projeto foi a gestão da propriedade.

“Explicámos o conceito: o aproveitamento de um trilho que já existia e que seria valorizado. Não construímos nada, mas fizemos uma grande limpeza no trilho e na ribeira. Tínhamos caniçais, madeiras, imenso lixo de todo o tipo, pedras caídas, que removemos. Depois, seguimos a lógica do ‘menos é mais’ e alguns proprietários até nos deixaram pintar as tampas que estão nas suas quintas e gostaram muito”.

De tal maneira que, nalguns casos, os proprietários também se viram “obrigados” a melhorar a aparência e condições das suas quintas. Ou então, aproveitaram para lhes dar nova utilização.

É o caso de Marco – igualmente um “parceiro científico” que permitiu a colocação de um caudalímetro nas suas terras para monitorizar a altura do caudal da ribeira.

Começou a recuperar a casa da quinta e transformou-a num Alojamento Local, a que agora se dedica quase totalmente. “Antes do trilho não tinha pensado nisso, mas daqui ao centro são cinco minutos. E as pessoas estão a aderir. A maioria dos clientes chegam aqui, estacionam o carro e vão para a praia. No Inverno não tive ninguém, mas daqui para a frente e no Verão está quase tudo cheio.”

Ainda assim, Marco gostaria de ver a zona do mercado mais arranjada. E não ficou sem resposta. “O projeto já foi aprovado e daqui a dois, três meses a qualificação poderá avançar. Uma boa notícia!”, anuncia João com um grande sorriso de satisfação.

Lá ao fundo já se vê outra quinta e Umbelina, também ela uma protagonista neste projeto. O marido (já falecido) várias vezes teve dificuldade em receber assistência porque as ambulâncias não conseguiam lá chegar. O que, agora, já foi corrigido.

“Qualquer tipo de veículo chega aqui em caso de necessidade. Mesmo a ponte permanente, mas em muito mau estado, foi substituída por uma outra ligeira, de madeira e amovível. Conseguimos sempre circular com um trator ou o que quer que seja.”

“Foi pena, ele lutou tanto por aquilo. Mas é sempre assim: uns morrem e a vida continua para os outros”, desabafa Umbelina com resignação.

Um trilho para muitos utilizadores

Em dia de mercado em Cascais, porque é quarta-feira, o movimento no Trilho da Ribeira das Vinhas ainda se torna mais intenso. Poucos são os que passam por João Dinis sem um cumprimento ou até dois dedos de conversa. Ninguém fica sem resposta e o sorriso rasgado está sempre garantido.

Há os que fazem a corrida matinal ou simplesmente passam apressados a caminho da vila. Paula é apenas uma das pessoas que passeia o cão. Ou, por outra, observa o cão, que, entretanto, já se diverte dentro da ribeira. Gosta muito deste percurso, que faz pelo menos uma vez por dia.

Quem se mostra desagradado com a atitude de alguns donos é Manuel Machado, um dos caseiros da zona há mais de 20 anos. Na ida para o mercado sugere a João Dinis que deviam “pôr ali uma placa para as pessoas não deixarem as necessidades dos animais no chão, isso é falta de educação e os donos é que são os culpados”.

Fora isso, Manuel está muito satisfeito como novo trilho, que lhe facilitou muito a vida. “No Inverno não podíamos passar por causa da erva, molhava-nos todos. Agora está maravilhoso, podemos agradecer a este homem que aqui está”, diz, dirigindo-se a João. “Ele é que andava sempre em cima do acontecimento.”

Joana vai ao mercado. “É um caminho menos urbano e faz bem apanhar ar puro. Agora, com a ribeira cheia e tudo a ficar verdinho, está muito bonito, é muito agradável.”

Mais à frente, cruzamo-nos com outro jovem a caminho da escola. Tiago revela que usa o trilho todos os dias na ida. “Dá jeito, é mais rápido. 15, 20 minutos. Mas à tarde, como saio tarde e não há luz, vou de autocarro, é o dobro do tempo.”

Já de volta, carregados de sacos, vêm Dália, Aida e José. Admitem que o tempo não lhes tem permitido usar o trilho tanto quanto gostavam. “Com o tempo melhor, fazemos mais vezes, assim é muito húmido.”

Já depois da despedida José ainda volta atrás para dizer que “há 50 anos andava aqui sempre a pé, claro, mas para ir à chinchada”. Agora não é preciso.

Há quintas em que os proprietários e caseiros colocam caixas com fruta que vai caindo das árvores junto às grades para quem passa levar. “Em vez de se estragar, é melhor”, diz a caseira, Rosa.

Filomena, que todos os dias ali passa com o seu filho, confirma. Já com algumas laranjas na mão, diz que “são muito boas, biológicas, muito docinhas.” “Todos os dias levo uma manchinha. O caminho agora é uma maravilha, antes tinha muita lama.”

E já só faltava encontrar as prometidas ovelhas e cabras, à guarda do pastor Luís Barros. Todos os dias de manhã andam por ali, “estão habituadas a ir pelo caminho e eu também”.

O pior é quando as pessoas trazem para aqui os cães e vão atrás das cabras. ”Elas desalvoram e depois tenho que ir atrás delas”, diz com uma gargalhada.

Obstáculos ultrapassados, mas ainda há muito para fazer

Já tínhamos passado as tampas preferidas de João Dinis, as casas saloias, quando o responsável pelo projeto Ribeira das Vinhas chamou a atenção para a parte “menos boa”.

Trata-se de uma zona do vale onde existiram explorações pecuárias, entretanto abandonadas, mas cujas infraestruturas foram aproveitadas pelos proprietários para outros fins.

“Qualificamos um espaço tão bonito e de repente temos aqui uma infraestrutura cinzenta, degradada, com alguns odores e que, por falta de entendimento, nos impede de arranjar tudo a tempo.”

João Dinis elogia, então, a “coragem política” da autarquia que, mesmo assim, decidiu avançar. “Há sempre espaço para a melhoria.”

E é disso que dá conta ao chegarmos a uma zona mais alta, que ainda precisa de uma grande limpeza e requalificação. “Vamos falando com os donos. Temos interesse em recuperar o património cultural, nomeadamente aquela azenha lindíssima, mas já sem as mós, que as pessoas que as levaram com certeza sabiam bem o valor”, lamenta o geógrafo.

Além disso, é preciso assegurar a manutenção, que inclui a fiscalização permanente e a limpeza – pelo menos duas vezes por ano – da ribeira para permitir a drenagem perfeita e evitar inundações.

O Trilho tem agora cerca de quatro quilómetros, mas está previsto o seu prolongamento até à Quinta do Pisão, no Parque Natural Sintra-Cascais. Deverá estar concluído em 2021.

“Vamos ligar o centro de Cascais ao centro do Parque Natural, ao Rio da Mula, onde nasce esta ribeira. São cerca de 10 quilómetros. Permite a qualquer pessoa deslocar-se de uma ponta a outra do concelho sem usar o automóvel. Hora e meia a caminhar ou uma hora a correr. O que muda muito a perspetiva da qualidade de vida desta população”, frisa João Dinis, coordenador de Alterações Climáticas e Sustentabilidade da Cascais Ambiente.

“Herói, eu? Não, é toda a equipa”

Este é um dos muitos projetos da Cascais Ambiente, com co-financiamento comunitário que valeu a João Dinis a distinção de “herói comum”. O geógrafo mostra-se embaraçado com o título que rejeita só para si próprio.

“Porque é um trabalho de equipa e que requer, por um lado, alguma liderança e alguma coragem para experimentar novos projetos e novas ideias. Temos várias áreas de saber misturadas. Temos que ouvir os nossos colegas e as populações. É um projeto colaborativo. O ‘rosto’ acabam por ser as pessoas que usam este percurso, o sorriso e os elogios que lhe fazem é que deviam ser o rosto do projeto.”

Quem apoia a distinção é Scott, um polaco que se mudou para Cascais depois ouvir João Dinis numa conferência no seu país natal. Ele e a mulher ficaram curiosos, vieram – primeiro de férias – e, há dois anos, mudaram-se de vez.

“Vivemos a dois minutos da rua que dá acesso ao trilho. Por isso, todos os dias fazemos uma caminhada até cá abaixo com os nossos cães. Com a água, como está agora, este verde é tão lindo! Estamos muito felizes”, diz Scott, com visível satisfação, antes de continuar a caminhada até à vila.

“As pessoas não têm noção da importância dos fundos europeus no seu dia-dia”

A requalificação deste trilho teve comparticipação comunitária, mas João Dinis admite – e lamenta – que as pessoas nem sempre tenham a noção da importância que os dinheiros da União Europeia na sua vida.

“O impacto na população é tremendo, a capacidade que a União Europeia significa para os governos locais, para a inovação, novos projetos, novas ideias. Dão-nos ferramentas para podermos trabalhar com outras cidades, noutros contextos europeus e experimentar e partilhar diferentes soluções.”

E reforça, revelando que grande parte dos projetos que gere atualmente dependem de fundos europeus: “Acho que as pessoas deviam perceber melhor o que nos move dentro da Europa e não só a nível governamental. Tem um impacto direto até à porta da nossa casa”.

A propósito do Brexit, João Dinis declara não ter dúvidas que não houve qualquer interesse em informar a população britânica. A caminhada na Ribeira das Vinhas termina com um lamento: “E, agora, vão viver com isso. Perdem-se também as parcerias porque há centros que agora já não se podem associar a nós, dos outros 27 países, porque estão sediados no Reino Unido”.

Os outros heróis portugueses

A União Europeia atribuiu o título de “heróis comum” a outros sete portugueses, o que não quer dizer que desenvolvam a sua atividade no país.

É o caso de Francisco Luís, engenheiro informático que lidera a equipa do Projeto de Análise “Cyborg” no Centro Europeu de Cibercriminalidade da Europol, na Holanda.

Henrique Marques, capitão da Polícia Marítima, já participou em duas operações de resgate da Frontex Poseidon, em Lesbos, na Grécia. Operações em que também participa regularmente o Sargento António Vieira.

Em Portugal, no Quartel de Mação, está a bombeira Nilsa Timóteo Rito, que participou na frente de combate aos fogos de 2017; João Pedro Janicas coordena as operações de busca e salvamento no Centro de Coordenação e Salvamento Marítimo de Lisboa; Elisabete Cavaleiro e Paulo Pereira são assistentes sociais na AMI – Assistência Médica Internacional e participam no projeto “No PLANet B”, financiado pela União Europeia.

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