ENTREVISTA DE VIDA

Júlio Isidro: "Faço televisão como quem faz ginástica de manutenção, não quero reumatismo nas meninges"

22 fev, 2020 - 10:30 • Tiago Palma com Ricardo Fortunato (vídeo) e Rodrigo Machado (grafismo)

De vida, “vida vivida”, leva já 75 anos. A comunicar, seja como jornalista, na rádio feita de censura e da “arte da metáfora” que a contorna, seja como apresentador, na cabine ou na TV, são muitos também: 60. Tantos que diz não se recordar do que é ser anónimo. Na Renascença, numa longa entrevista de vida onde quase tudo se perguntou e a tudo respondeu, Júlio Isidro resolve no passado. Mas é de olhos postos mais adiante, no futuro, que garante: “Vou continuar”.

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Entrevista de vida com Júlio Isidro
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Ainda muito petiz, assistia entusiasmado às sessões experimentais da TV, lá mesmo, na Feira Popular. Entusiasmo maior tinha-o, não nas câmaras, mas bem mais alto: nos céus. O daltonismo traiu-lhe, sem deixar mágoa, o sonho de vir a ser piloto.

Tímido e nunca líder, um “bocadindo totó” até, foi no coro, ainda no liceu, que despontou para comunicar. E não tardou até chegar, empurrado pelo regente do orfeão – que foi o “Júlio Isidro” de Júlio, afinal –, com brevíssimos 15 anos, para os holofotes da fama, não voltando a ser anónimo. À fama e seus artifícios, rejeitou-os sempre. Não se diz vedeta, diz-se antes “rigorosamente igual” a todos nós.

Começou no pequeno ecrã, apesar de “razões de caráter estético” quase o terem impedido, mas foi no éter do Rádio Clube (apesar de uma resposta à “carapau de corrida” quase o ter impedidido também) que se fez comunicador. Primeiro como jornalista, rodeando a censura pela “arte da metáfora”, e logo após a revolução, na decisão mais correta que podia ter tomado na vida, como apresentador.

Aproximou-se dos ouvintes, trazendo-os a si, à rádio, na "Febre de Sábado de Manhã". Reencontrou-os na TV, com “O Passeio dos Alegres”. Quando teve tudo, audiência como ninguém, o auge, resolveu abdicar de tudo isso. Talvez por influência (e conselho) da mãe, certamente por ter medo (infundado, sabe hoje) de “queimar a imagem".

Em papelinhos inventaria programas e dos papelinhos fez inúmeros sucessos televisivos, superando períodos turbulentos, de esquecimento – pelos “mandantes”, nunca pelos espectadores –, superando “canalhices”.

Partilhou a geração entre gente “absolutamente brilhante”. Recusa ser também ele brilhante ou tão brilhante quanto outros. Mas aprendeu do pai um valor acima disso: o trabalho, a persistência no trabalho.

O tempo não é de parar, não agora, quem sabe nunca, pois os seus muitos (quase todos) cabelos brancos não são velhice; são vida – “e é com vida que se recria vida”. Não se diz “exilado" na RTP Memória, mas tem como ambição ascender ao primeiro canal. Enquanto isso, ascende ao seus, ao povo que o vê. “Só assim se justifica comunicar”, assume Júlio Isidro.

A primeira pergunta que eu gostaria de lhe fazer é se o "Júlio Isidro" do Júlio Isidro terá sido, ou não, o maestro do Orfeão do Liceu Camões?
De alguma maneira… [Risos] De alguma maneira. Porque quando fui candidato a apresentador do "Programa Juvenil" da televisão fui indicado por alguém. E quem me indicou foi o padre Ávila, que era o regente do Orfeão do Liceu Camões, onde eu cantava. Porquê? Porque algumas das músicas eram apresentadas por mim, eu ia lá à frente, ele mandava-me dizer o nome da cantiga, e eu lá apresentava a cantiga. Não terá sido apenas por isso, mas também porque o "Programa Juvenil" ia ter uma rubrica de bricolage, mais exatamente de modelismo. E também, para além do padre Ávila, o meu professor de aeromodelismo, que era o Luís Santana Leite, colaborou para que eu fosse candidato. E, portanto, fui empurrado por dois "Júlios Isidros" para ser aquilo que sou hoje.

Nessa altura, ainda antes do "Programa Juvenil" e já no Liceu Camões, era uma espécie de líder? Ou era o tímido?
Não! [Risos] De líder não tinha nada. E ainda hoje não tenho, graças a Deus. Era mesmo tímido. Era, digamos, um bocadinho totó. E dedicava a minha vida a coisas que não eram exatamente todas aquelas que estariam, digamos, na moda para a rapaziada. Embora jogasse às caricas, embora saltasse às uvas, embora também fizesse desportos físicos, a minha tendência era muito mais para inventar coisas que tivessem a ver – mal eu imaginava – com aquilo que podiam vir a ser os audiovisuais.

Vamos falar precisamente desse "Programa Juvenil". E como é que chega lá. O programa estreia a 16 de janeiro de 1960. Mas para chegar lá, o Júlio passou por uma série de audições, que aconteciam sobretudo nos liceus, não só no Camões. A verdade é que eram muitíssimos os candidatos. E o Júlio chegou a uma seleção final.
Eram, eram. Eram para aí 300, entre 300 e 350, mas que foram aos estúdios da televisão, as provas não foram feitas nos liceus. Para mim, o facto de ter sido empurrado para ir ao estúdio da RTP já era uma coisa extraordinária, porque eu não fazia a mínima ideia o que era a televisão vista por dentro. Para ser mais correto, apesar de tudo, fazia alguma ideia. Porque como já, anos antes, me metia na Feira Popular para ir ver as sessões experimentais, mesmo do lado de cá do vidro, olhando lá para dentro, para a tenda onde eles estavam a fazer as emissões experimentais, já via mais ou menos como é que aquilo funcionava. Mas estar no estúdio… Ainda por cima, o estúdio onde eu fiz provas era o estúdio do Telejornal.

No Lumiar.
No Lumiar. O estúdio do Telejornal não tinha nada a ver com a nave espacial onde hoje em dia os pivôs fazem os noticiários, era apenas uma secretária, que podia ser a secretária de um notário, eventualmente. Mas, mesmo assim, para mim já era uma coisa extraordinária estar a ver aquilo. E as circunstâncias de estar enclausurado num estúdio que teria o máximo, no máximo, 80 metros quadrados.

Foi sem expectativas? Foi descontraidamente?
Não: fui inconscientemente! Nem com expectativas nem com coisa nenhuma. Fui absolutamente inconsciente. Quer dizer, sem ter qualquer intenção de que aquilo viesse a ser a minha vida, não é?

A verdade é que chega aos 16 finalistas. Não ficou logo...
Não, não fiquei logo.

Por uma razão...
Por uma razão de caráter estético. [Risos] Porque eu entrei para esse grupo de 16, fui fazer essas provas, as provas finais, num dia muito triste para mim, porque tinha morrido a mãe do meu melhor amigo e eu tinha estado no velório. E, portanto, com aquela idade todos nós somos de dormir muito. Eu hoje durmo bastante menos. Os velórios antigamente não terminavam à meia-noite ou às dez horas da noite, foi durante muitas horas e eu fui dormir muito pouco. E depois fui fazer as provas. Ia provavelmente olheirento, não é? Não estando muito feliz ou, por outra, estando até muitíssimo infeliz, porque eu adorava esse meu melhor amigo – que também já perdi – e a mãe dele, e uma das provas que eu tive de fazer foi contar uma anedota. Não apetece nada contar anedotas a quem está em estado de sofrimento. Mas pronto, lá fiz as provas e, curiosamente, talvez pela facilidade com que eu construía a gramática, devem ter ficado impressionados com o meu português e, particularmente, com o meu francês, porque também tive de fazer provas de francês e de inglês. Mas eu francês falava, mais do que correntemente, eu diria quase corretamente, portanto, acabei por ficar. E depois mandaram-me chamar para me dizer...

Que foi o melhor...
“Sim, senhor, foste o primeiro, mas não entras porque esteticamente não agradas muito à vista.” Pronto. E fui embora para casa.

Triste.
Ainda por cima tratando-se de um miúdo. Hoje em dia não sei se com esta idade somos todos miúdos. Ou se serão todos miúdos. Eu tenho duas miúdas lá em casa.

Era-se mais miúdo? Com 15 anos era-se mais miúdo?
Eu era mais miúdo do que hoje em dia um miúdo com 15 anos ou com 16. Eu acho que era.

Portanto achava que não tinha ficado, mas depois vai mesmo apresentar o programa.
Durou muito pouco tempo, porque realmente havia uma rubrica no "Programa Juvenil" que era exatamente sobre modelismo. E aí, por exclusão de partes, precisavam mesmo de alguém que fizesse aquilo. E coincidiu que o primeiro "Programa Juvenil" tivesse como convidado musical o Orfeão do Liceu Camões… Portanto, tudo isto são conjunções de sorte.

Quase ironias do destino.
Boas ironias do destino. E, portanto, eu fui fazer as provas, não imaginando que no lançamento do "Programa Juvenil" estava o Orfeão do Liceu Camões onde eu ia cantar. Lá cantei e lá fiz logo a minha bricolage. E nesse dia era tudo só apresentações, era o lançamento do "Programa Juvenil". Na semana seguinte é que já foi a sério, a contar para o campeonato. Curiosamente, eu tenho o guião, o meu guião, não o guião do programa infelizmente, o guião das minhas partes, escrito à mão. Esses guiões eu tenho guardados. Agora o guião original do programa não. Nem o contrato. Mas tenho para aí o contrato número cinco ou seis ou sete, não sei.

Muitas pessoas não se recordarão, outras sim, do que era o "Programa Juvenil". Era um programa que passava entre as seis e as oito da noite.
Mais ou menos entre as seis e as oito da noite. Eram duas horas.

E tinha muitos “jovens”: a Lídia Franco, o João Lobo Antunes, que infelizmente já não está entre nós, creio que a Maria João Avillez também chegou a fazer parte...
Entrou mais tarde. Depois tivemos ainda a Maria Cabral, que foi uma grande atriz, atriz do Cinema Novo português. Entrou também depois o Luís Laureano Santos, um ilustre advogado da nossa praça, um grande amigo meu, que também, mais tarde, trabalharia comigo no Rádio Clube Português, também foi locutor do Rádio Clube Português.

"Não me lembro de entrar no liceu e de alguém me dizer ‘vi-te na televisão’. As únicas pessoas que eu sabia que me viam na televisão eram os meus pais e as minhas avós, que quando eu chegava a casa diziam que eu tinha ido muito bem."

Quando se tem 15 anos, se apresenta um programa na RTP 1 – na RTP; nem era “um”, era o único canal! – e depois se volta ao liceu, é-se uma estrela no liceu? É-se admirado? Ou passou...
Passei completamente desapercebido. Eu penso que por várias razões. Para já, porque o número de espectadores devia ser muito reduzido, porque o número de televisores era mesmo muito reduzido, não é? Eu não me lembro de entrar no liceu, com toda a sinceridade, e de alguém me dizer “vi-te na televisão”. As únicas pessoas que eu sabia que me viam na televisão eram os meus pais e as minhas avós, que quando eu chegava a casa diziam que eu tinha ido muito bem. Porque também não tenho a mínima noção do que é que eu fazia naquela altura, porque não há nada gravado. Há apenas já umas reportagens, filmadas, não gravadas, porque eu sou anterior à descoberta do videotape – que hoje em dia também já é uma coisa obsoleta –, portanto, algumas coisas que eu fiz foram filmadas em 16 milímetros, eu com 15 ou 16 anos a fazer umas reportagens de exterior.

Na estreia, quando volta a casa, sei que o seu pai lhe deixou um recado. E não só um recado: deixou-lhe também um pequeno “presente”.
Como o programa acabava cedo, devo ter comido uma sanduíche ou coisa assim, meti-me no elétrico e fui para Avenida de Roma, para o cinema Roma, ver um filme que se chamava "A Europa à Noite". E vi algumas grandes vedetas que eu ouvia às vezes em disco. Lembro-me que uma das atuações era o grupo The Platters, americanos, algures na Holanda. E depois é que fui a pé para casa, da Avenida de Roma para a Avenida João Crisóstomo, o que é muito a pé. E quando cheguei a casa, em cima da minha mesa de cabeceira estava uma garrafinha de espumante miniatura, uma taça e um cartão do meu pai a dizer "De José Isidro Carmo, o pai amigo, para o filho amigo, por estreia em andanças" – e ele pôs entre aspas, não sei porque que é que pôs entre aspas [risos] – "em andanças da RTP". Eu não bebi o champanhe, porque não gostava. Aquilo funcionou como o meu contrato, porque não tive contrato nesse primeiro dia. Para os outros dias já tive contrato.

E teve um primeiro ordenado de 200 escudos.
Por semana!

O que à época, para um jovem de 15 anos, era bastante.
Era o suficiente para eu ter pedido aos meus pais para guardar o dinheirinho, porque queria fazer uma viagem.

E fez.
Fiz. Aos 18 anos estava a meter-me no comboio para ir a Paris, porque tinha a mitologia do que seria Paris, particularmente nos anos 60. Portanto, lá fui de comboio, embora em terceira classe, juntamente com muitos emigrantes, e tinha na Gare d’Austerlitz uma grande amiga da minha mãe, que era pintora e que vivia em Montparnasse, à minha espera para eu ir para uma cave muito pequenina, lembro-me perfeitamente, da zona de apartamento onde ela vivia. Uma cave húmida, com um divãzinho encostado à parede. E ali fiquei alguns dias e fui fazendo de turismo, sempre solto, poupando ao máximo o meu dinheirinho, até poder voltar.

Estreou-se na televisão, mas a sua grande formação, onde aprende definitivamente a comunicar, foi na rádio, quando entra para o Rádio Clube Português. Teve de fazer uma série de testes, que correram bem, mas não ficou logo. Porquê?
Ora bem, tinha feito rádio no liceu e tinha também passado pela Rádio Universidade, mas numa perspetiva meramente amadora. Depois fui convidado para ir fazer um programa para o Rádio Clube Português, que era o "FM 67", que se estava a estrear naquela altura. Também o próprio FM estava quase que em estreia, o FM ainda era uma onda muito pouco usual. E, então, fui fazer provas, as provas foram também muito exigentes, e ainda bem que foram, e quando terminaram as provas, o diretor, o senhor...

Álvaro Jorge.
Álvaro Jorge. O senhor veio ter comigo e com o ar paternalista que lhe era conhecido disse-me: "Oh filho, tu estiveste muito bem, gostei da tua voz, leste bem..." Também li, lá está, um texto em português, um texto em francês, um texto em inglês, um noticiário, umas páginas de um romance, uma reportagem inventada ali ao momento e tal...

Mas tudo com a fita a correr. Ou seja, não há como falhar.
Não, não. Era mesmo para, se houvesse falhanço, ficar ali, não era para emendar. Ele disse: "Gostei muito. Agora há uma coisa… tu leste o noticiário e logo a seguir leste as páginas do romance praticamente com o mesmo tom, foi um bocado monocórdico." Eu disse: "Olhe, tem razão, porque eu li o noticiário à maneira daquilo que eu penso que deve ser um noticiário, com o efeito da distância normal de um noticiário. E, portanto, como vinha com o balanço… li o texto do romance sem a mesma carga interpretativa". E ele: "Pois é, mas quem está aqui para te fazer críticas sou eu…" E respondi: "Está bem, mas quem está aqui para fazer autocrítica sou eu!"

Pespeneta.
Armado em carapau de corrida. [Risos] E então ele disse: "Vais fazer a autocrítica para casa durante um ano!" Pensei, “pronto, isto é um caso perdido". Enfim, fui para casa, continuei a minha vida, colaborando também na televisão aos fins-de-semana. E passado um ano exatamente, o senhor Álvaro telefona-me e diz-me para eu ir, para me apresentar...

Quando vai para o Rádio Clube, vai fazer noticiários. E num horário bastante tardio: era noite, já madrugada.
Pois. Ora bem, os noticiários do Rádio Clube Português tinham uma originalidade à época. Porque naquela época todos noticiários de todas as estações de rádio – e também da própria televisão – tinham dois núcleos, o núcleo dos redatores e aqueles que liam as notícias. Não era a mesma coisa.

Chamavam-lhes os "papagaios".
Exatamente.

Com alguma ironia...
Com alguma arrogância. Porque nós ali no Rádio Clube Português, fruto da iniciativa do Luís Filipe Costa, que felizmente continua entre nós, ele criou a figura do redator-locutor, o que dá muito mais gozo. Porque hoje em dia os jornalistas são mesmo jornalistas de informação, tanto que o pivô lê os seus próprios textos, não é? E são todos responsáveis por aquilo que escrevem. Naquela altura havia realmente locutores de voz muito bonita a quem metiam os papéis à frente e que eles liam aquilo que os redatores tinham escrito. No nosso caso, não. E com uma particularidade: o serviço de noticiário do Rádio Clube Português tinha, creio eu, no máximo, oito pessoas. Portanto, seis horas seguidas, uma pessoa sozinha a fazer os noticiários da estação.

"Não tirei um curso de comunicação social. Tenho um ‘curso’ numas oito páginas, escritas cuidadosamente pelo meu chefe [no Rádio Clube Português], o Luís Filipe Costa, a ensinar-me como é que se fazia um noticiário. E as duas últimas páginas são como é que fugimos à censura."

Mas estamos a falar de um período que é o Estado Novo. E, portanto, há a censura prévia e há a PIDE. Alguma vez teve problemas por causa desses noticiários que redigia? Ou conseguia contornar algum tipo de censura, porque os redigia mais cuidadosamente?
Olhe, eu inventei a expressão, naquela altura, da "arte da metáfora". É evidente que todo o tempo que eu trabalhei na fase inicial de jornalista de rádio – e não de "entertainer" ou, como quiser, de animador – foi feito no regime fascista. E, portanto, quer dizer, o que aconteceu é que nós tínhamos que saber ultrapassar isso. Mas, curiosamente, como não tirei um curso de comunicação social... Eu tenho um “curso” de comunicação social numas oito páginas, escritas cuidadosamente pelo meu chefe, o Luís Filipe Costa, a ensinar-me como é que se fazia um noticiário. E as duas últimas páginas são “como é que nós fugimos à censura” ou como é que rodeamos a censura, como é que ultrapassamos. E quais são os assuntos tabu sobre os quais devemos ter cuidado. Porquê? Porque nós recebíamos os telexes. E os telexes eram recebidos pela nossa redação, mas simultaneamente pela Comissão de Censura. Ora bem, em princípio a regra seria esperar que o telex fosse libertado ou que viesse com as correções que a censura determinava, que eram de várias ordens, podiam ser de ordem política, social, de uma de uma certa moralidade, enfim, os critérios eram os mais diversos. Nós podíamos correr o risco de antecipar isso. E fizemos isso inúmeras vezes. Mas tínhamos a perceção dos caminhos pelos quais podíamos seguir. Quando se tratava de falar da Guerra Colonial, por exemplo, devíamos ter mais cuidado, porque havia adulterações até bastante grandes, algumas adulterações eram bastante grandes, relativamente, por exemplo, às baixas que tinham acontecido, passávamos a não ter baixas ou ter menos. Enfim, havia correções que algumas delas não eram bem correções, eram já novas redações das notícias. E nesse aspeto tínhamos tido uma orientação da parte do nosso chefe que, no fundo, era um acordo: quando as notícias estivessem verdadeiramente adulteradas, nenhum de nós lia, não éramos obrigados a ler.

O João Paulo Guerra, que trabalhou consigo no Rádio Clube, chegou a ter problemas com a censura. E outros jornalistas também.
Éramos da mesma equipa.

O Júlio chegou alguma vez a ter algum problema, a ser chamado à atenção? Ou até a ser chamado à António Maria Cardoso, não sei...
Nós éramos chamados à atenção. Eu nunca fui chamado à atenção para ir à PIDE. Fui à PIDE por outras razões. Mas foi porque sempre que eu ia sair [do país] tinha de lá ir dar conta do que é que ia fazer, com um papel a dizer o que é ia fazer e quando é que voltava. Só nessa circunstância já dava para ir a tremer, ir nervoso, pelo menos nervoso ia. Agora, a esse nível, nós tínhamos censura interna, tínhamos um senhor que era o nosso chefe da censura e mais uma pessoa ou duas...

Que estavam na redação convosco?
Iam lá... De vez em quando iam lá. "O que é que vocês escreveram?!" O senhor não tinha um trato muito afável – vou omitir o nome, como deve calcular. E então o senhor lia e tal. "Isto não pode ser! Não pode ser..." Pessoalmente tive – curiosamente não em termos de informação, mas em termos de entretenimento, porque o meu entretenimento nunca foi vazio de conteúdo – duas ou três situações. Tive uma em que fiz uma coisa sobre o aniversário do Picasso, que me foi cortado porque o Picasso “era comunista”, do ponto de vista deles. Não pude falar do aniversário do Picasso. Eu fiz uma peça tão bonita, com sons e um texto biográfico e tal, e ficou pendurado, nem sequer passou. Nem sequer passou… E houve um outro mais grave ainda. É que eu fiz uma coisa dedicada à vida do António Aleixo, do poeta popular, e essa peça teve de ser ouvida pela censura interna e mandaram-me lá chamar. "Você sabe o que é que está a escrever?! Então você faz uma coisa sobre esse fulano, esse comunista que está fugido do país, que fugiu à tropa?!" Eu disse: "Como? Este senhor fugiu à tropa?! Não... Este senhor não fugiu à tropa, já morreu há muito tempo..." "Esse está lá na Argélia!" Eu disse: "Mas olhe que não deve estar a ligar o nome à pessoa: António Aleixo..." E ele diz assim: "AHHHHH!"

Confundiu com o Manuel Alegre.
"Pensávamos que era o Manuel Alegre!" [risos] O censor também não era um homem de grande cultura e tinha confundido o poeta popular António Aleixo com o poeta Manuel Alegre. E, portanto, vá lá, depois lá me libertaram a peça. Mas fui chamado à pedra por esse facto. E também com a canção "Je t'aime… moi non plus"…

"Passei a canção 'Je t'aime… moi non plus' de manhã. Enfim, a canção tinha uns laivos de sensualidade. E à tarde já estava proibida"

[Risos]
Passei a canção "Je t'aime… moi non plus" de manhã, recebemos o disco e toda a rapaziada começou a passar. Enfim, a canção tinha uns laivos de sensualidade. E à tarde já estava pendurado um papel na parede do estúdio a dizer que a canção era proibida.

O Júlio, nessa altura, vivia apenas da rádio? Lembro-me de ler algures que terá sido também delegado de propaganda médica.
Era também.

Coincidente com o trabalho no Rádio Clube?
Era tudo. Há uma altura da minha vida em que eu estava na tropa, no Regimento de Infantaria 1, onde dava instrução militar. Depois saía às quatro da tarde e ia para os consultórios com a minha pasta na mão, convencer os médicos de que o produto X ou Y ou Z tinha uma substância ativa muito boa e tinha estes efeitos colaterais assim-assim-assim. E, portanto, ia para os consultórios dos médicos, aproveitava para ler, e normalmente depois quando saía ia fazer o noticiário das 19, até à uma da manhã. Ou então, se tivesse médicos para mais tarde, tinha de optar pelo da uma da manhã, sete da manhã. Reentrava na tropa muitas vezes às oito da manhã sem ter dormido.

Quero falar precisamente da fase do Exército. O Júlio dava cursos de fotografia, de cinema...
Estou a falar disto [delegado de propaganda médica] e ainda estou a dar instrução militar, instrução militar mesmo.

É posterior.
Depois de dar instrução militar é que, um dia que estou de oficial de dia, oficial de serviço, na madrugada resolvi ler uma coisa que se chama "A Ordem". "A Ordem" é um documento que sai diariamente com o balanço da atividade do quartel, da unidade, e li no final uma coisa: "Precisa-se de um oficial para a Divisão de Fotografia e Cinema dos Serviços Cartográficos do Exército, especializado ou relacionado com questões de cinema ou de televisão". Eu disse: "Isto é para mim! Isto é meu..." E, então, concorri. Concorri e fui aceite, exatamente nos Serviços Cartográficos do Exército, Divisão de Fotografia e Cinema. O que fiz ali foi um ensaio geral da minha vida inteira.

Porquê?
Porque dobrei dezenas de filmes americanos, filmes de instrução, das coisas mais variadas, como é que se manobrava a espingarda não-sei-quê, como é que se atirava uma granada ofensiva ou como é que nos protegíamos de uma granada defensiva. Sei lá, havia inúmeros filmes de instrução americanos que eu dobrava e, portanto, ia para a Nacional Filmes gravar esses filmes, normalmente filmes de cerca de 20 minutos. Esse foi um dos aspetos, dobrar filmes. O outro foi ir às unidades do país inteiro e fazer uma reportagem sobre a vida da unidade, que fiz desde lá de baixo, do Algarve, o Regimento de Infantaria 5, até aos paraquedistas em Tancos, por aí fora. E normalmente gostava de fazer aquilo com algum realismo e envolvia-me também. Para além de realizar, eu próprio filmava algumas coisas com alguma dificuldade. E depois houve uma altura em que me encomendaram fazer um filme, isso era mesmo um filme, de 35 milímetros, a cores, sobre, exatamente, “Portugal e a Cartografia”.

Que ganhou um prémio.
Ganhou a menção honrosa do Festival de Versailles.

Voltando à rádio. O Júlio acaba por deixar o Rádio Clube. Porquê? E o que é que se segue?
Depois do 25 de Abril, todos nós fomos confrontados com uma opção: querem continuar na informação ou querem ficar na área do entretenimento. E aí, eu que normalmente não tomo decisões muito corretas na vida, tomei a melhor possível. Foi decidir ficar na área de entretenimento. Porque a partir daí [25 de Abril], se tinha sido difícil fazer informação por algumas razões – e muitas razões de censura – no tempo do antigo regime, depois também a luta política não era uma coisa que me interessasse especialmente. E depois porque também essa luta política, de alguma maneira, trazia limitações e restrições, até se calhar alguns desagravos.

Teve algum tipo de convite para entrar na política ativa, apoiar alguém?
Não. Não. Não, não.

Tentou sempre afastar-se disso.
Atenção: não, eu nunca fui convidado para apoiar ninguém, mas comecei a fazer uma leitura da situação em que nós vivíamos e comecei a perceber em que área ideológica é que eu me situava. E quando senti que o devia fazer, apoiei essa área ideológica. Da qual não ando muito afastado.

"O ‘Febre de Sábado de Manhã’, curiosamente, não estreou no [Cinema] Nimas; estreou numa discoteca chamada Night and Day, uma discoteca que nem seria muito bem frequentada durante a noite, mas que às 10 da manhã estava muitíssimo bem frequentada porque não estava lá ninguém."

Júlio sempre teve muitas ideias de programas. Os seus programas são ideias suas. O "Febre de Sábado de Manhã" é provavelmente um dos programas de maior sucesso na história da rádio, no caso na Rádio Comercial. Como é que surge a ideia de fazer esse programa?
Porque eu acredito que nada se cria, tudo se transforma. E, portanto, quer dizer, eu comecei por propor ao meu diretor um programa diário de três horas, das dez da manhã à uma da tarde, na Rádio Comercial, entretanto surgida, já uma rádio privada, não é? Surgiu a Rádio Comercial, dirigida pelo João David Nunes – e muito bem dirigida –, e ele evidentemente disse que queria contar comigo. E escrevi-lhe um papel. Eu tenho todas as propostas de coisas que eu faço, guardo-as cuidadosamente. E, portanto, escrevi uma coisa chamada "Grafonola Ideal", das dez da manhã à uma da tarde, cinco dias por semana. E o João David Nunes olhou para aquilo, éramos colegas, conhecíamo-nos há tantos anos, todos nós sabíamos das nossas qualidades e defeitos, e disse-me: "Sim senhor, faz". E então comecei a fazer a "Grafonola Ideal", que tinha uma característica importante, que era – hoje em dia isso já é feito mais por via eletrónica, mas naquela altura era muito mais presencial, o que eu acho muito interessante – uma interação muito grande com os ouvintes. Eu pensei que os ouvintes não podiam estar eles em casa ou fosse onde fosse, a ouvirem-nos, e nós dentro de uma cabine a fazer. Portanto, a rádio saía muitas vezes da cabine, os espectadores, os ouvintes, também passavam a ser espectadores e iam muitas vezes também à cabine. Comecei a pensar nisso e um dia subi a escada e disse: "Olha, eu gostava de fazer uma coisa aos sábados também, mas num palco, a rádio feita… não apenas para se ouvir, mas para ou-ver..." "O que é isso de ou-ver?" "Ou-ver, olha, é: estão a ver e estão a ouvir ao mesmo tempo…" "E onde é que podemos fazer isso?" Naquela altura, curiosamente, a Rádio Comercial era de alguma maneira proprietária do Cinema Nimas. Eu disse: "Olha, tinha pensado no Cinema Nimas…" "Então, pronto, o que é que queres fazer?" Disse-lhe assim: "Olha, eu escrevo-te também um papel..." E lá escrevi mais um papel a dizer mais ou menos o que era o conceito da "Febre de Sábado de Manhã". Curiosamente, não estreou no Nimas; estreou numa discoteca chamada Night and Day, uma discoteca que nem seria muito bem frequentada durante a noite, mas que às 10 da manhã estava muitíssimo bem frequentada porque não estava lá ninguém. [Risos]

O Júlio diz uma coisa curiosa: que o seu auge é o presente. Mas a "Febre de Sábado de Manhã", de facto, teve um pico de audiência extraordinário, esteve no auge… E o Júlio decide acabar com o programa. Mais tarde, isso volta a acontecer também com "O Passeio dos Alegres". O que é que o levou a tomar essas decisões?
Olhe, naquela altura eu ouvi inúmeras vezes – mas fui ingénuo – conselhos do género "estás a queimar a imagem".

"A minha mãe, com aquela perceção que têm as mães, de proteger o menino, disse assim: ‘Estás a ter fama demais, tem cuidado com isso, acaba...’ Mas não era acabar com o programa; ela queria que eu me afastasse. Mas aí eu pensei que não podia ser, porque era o meu ganha-pão."

E levou-os a sério?
Acreditei. Acreditei de alguma maneira. Porque hoje em dia quando nós vemos pessoas que fazem vários programas por dia, têm um programa de manhã e mais um concurso à tarde e mais uma outra coisa à noite e não sei quê, ninguém se preocupa com isso. Naquela altura eu pensei que eram meus amigos. Mas eram pessoas mesmo da televisão, eu refiro-me concretamente à televisão. Obviamente, estou como o Kennedy: estão perdoados, mas não lhes esqueço os nomes. E, portanto, comecei a pensar: "Se calhar é melhor acabar com isto e tal." Para além disso, a minha mãe, com aquela perceção que têm as mães, de proteger o menino, disse assim: "Estás a ter fama demais, tem cuidado com isso, acaba..." Mas não era acabar com o programa; ela queria quase que eu me afastasse, não é? Que me afastasse... Mas aí eu pensei que não podia ser, porque era o meu ganha-pão. E, portanto, em relação à "Febre de Sábado de Manhã", ela começa com 180 pessoas, depois 360, porque ainda cabiam dois no mesmo lugar, depois aquilo já estava a ter alguns problemas, porque havia filas de quilómetros para entrarem no Nimas, não conseguiam entrar, e as filas eram geridas com muita coragem pelo meu assistente, o António Barra, e depois, em determinada altura, passámos para pavilhões gimnodesportivos, daqueles que levam cinco mil pessoas, cheios, e depois, por aí fora, fomos até ao estádio do Sporting, com 50 mil meninos a assistirem a um programa de rádio. Assistir a um programa de rádio, que isso é que, do meu ponto de vista, é interessante e é um fenómeno que nunca foi estudado. Talvez não se justifique que seja estudado, também não tenho essa pretensão, mas é um fenómeno muito curioso, porque é um fenómeno sociológico. Porque é que a rapaziada ia para os liceus aos sábados – porque tinham aulas de manhã – e era permitido pelos liceus levar o transístor e ouvirem o programa durante as horas das aulas. Havia muitas aulas que não existiam, normalmente também porque aos sábados de manhã as aulas não eram de tanta responsabilidade, não seria certamente matemática ou físico-química. As aulas de manhã aos sábados deviam ser matérias mais ligeiras. E, então, aquilo foi num crescendo de tal maneira que todos as iniciativas que eu criei tiveram uma adesão impressionante. De tal maneira que depois de 50 mil em Alvalade – ainda hoje é um recorde que estará para ser batido; certamente um dia será, nada é eterno – eu fui convidado para fazer um programa que eu quisesse [na RTP], de quatro horas e meia, aos domingos.

Pela Maria Elisa.
Pela Maria Elisa.

Mas não havia nenhuma ideia. O Júlio partiu do zero.
Nada, nada. Ela provavelmente estaria no seu subconsciente, ou até no consciente, a dizer assim: “Olha, este fulano inventou aquilo, vamos lá ver o que é que ele vai inventar agora, não é?” E, portanto, o que é que eu fiz? Eu potencializei com imagem aquilo que ali [“Febre de Sábado de Manhã”] me acontecia, essencialmente com o som. Embora lhe deva dizer que foi também uma outra forma de eu me construir a mim próprio, profissionalmente. Foi criar imagens através da palavra. Porque quem estava a ouvir a "Febre de Sábado de Manhã" no liceu ou em casa ou fosse onde fosse, tinha de perceber o que é que estava ali a acontecer. E como muitas coisas eram visuais, eu fiz relatos visuais do que estava ali a acontecer, o que é, do meu ponto de vista, um enorme exercício para um comunicador.

É a arte de comunicar na rádio.
É. É comunicar na rádio de maneira a que as pessoas percebam que há coisas que estão a acontecer, este está vestido de amarelo, o outro está vestido de azul, o outro não-sei-quê, o outro fez isto e tal. E, portanto, eu fazia relatos dos acontecimentos que ocorreriam no palco e isso era bom. Depois fui para casa e pensei num conceito também. Porque eu não invento nomes para programas… pim-pam-pum porque é pim-pam-pum, não é? Chamei-lhe "Febre de Sábado de Manhã" porque estava na berra, ou tinha estado há relativamente pouco tempo, a "Febre de Sábado à Noite", o filme. E, portanto, achei que se fosse criar uma coisa muito juvenil era interessante aproveitar este conceito e dar-lhe uma voltinha. Em relação ao "Passeio dos Alegres", foi exatamente por antítese em relação à tristeza que eu pressentia, e conhecia também por experiência – pouca, felizmente, porque os meus pais não faziam muito isso… –, o passeio dos tristes, que era aquilo que as pessoas faziam aos domingos.

A voltinha “domingueira”.
Meter-se no carro, dar uma voltinha, vão a Sintra, vão a Cascais, não-sei-quê, comem umas queijadas, dão uma voltinha, não-sei-quê, vêm para casa, gastaram combustível e tal. E ainda por cima Portugal estava pela primeira vez intervencionado pelo FMI.

O Júlio chegou a apresentar as contas ao ministro, não foi?
Fiz. Eu fiz isso no final do primeiro ano, apresentei as contas ao ministro da Energia.

Em palco.
Fiz em palco, fiz um painel. E disse, "Ora bem, o programa tem 95% de share, tem não-sei-quantos milhões de espectadores, há não-sei-quantos carros em Portugal, admitindo que todos os carros vão cheios com quatro pessoas, são não-sei-quantos carros, esses vão consumir – naquela altura mais do que consomem hoje – 10 litros aos 100 e vão fazer um passeio de cerca de 100 quilómetros todos os domingos. Portanto, vamos ver por aqui fora, senhor ministro, faça favor: neste momento eu ofereci ao país não-sei-quantos milhões de contos!” Não me lembro quanto, mas pronto, foi uma gracinha, é uma coisa completamente irrealista. Enfim, tinha ali uma basezinha, mas eram contas de trazer-por-casa.

"Sempre tive os pés assentes na terra, sempre tive a ideia de que nada é eterno, sempre tive a ideia de que a vida tem muitos altos e baixos, sempre tive a ideia do que há de provisório, particularmente, nos conceitos de popularidade e de fama. Tinha até uma rejeição à postura dos famosos."

Quando se tem o sucesso que tem na rádio, quando se tem 90 ou mais por cento de share na televisão, e se é tão popular, isso pode subir – e subiu – à cabeça de muita gente. Mas o Júlio sempre foi o oposto disso, sempre foi a anti-vedeta. Era muito assediado na rua? Não podia andar na rua distraidamente?
Na prática, acabou de me dar a deixa: eu não podia andar na rua. Mas andava. Porque considerei que a minha profissão tinha duas facetas. Uma, a de estar atrás do microfone e à frente das câmaras. E outra, o efeito colateral que daí resulta. Só que com uma atitude que felizmente, para mim, que sou um pessimista, me foi muito positiva. É que sempre tive os pés assentes na terra, sempre tive a ideia de que nada é eterno, sempre tive a ideia de que a vida tem muitos altos e baixos, sempre tive a ideia do que há de provisório, particularmente, nesses conceitos da popularidade e da fama. E diria que – porque, enfim, está-me a fazer uma entrevista em que eu tenho a obrigação de ser sincero – tinha até uma rejeição, para não ir mais longe, aos artifícios da fama e às posturas dos famosos. Ainda hoje tenho e alimento ainda mais, porque tudo isto hoje em dia está hiperdimensionado na nossa sociedade, infelizmente. Porque tenho umas ideias engraçadas, porque defendo a cultura portuguesa, porque defendo a música portuguesa, porque entretenho as pessoas de uma maneira inteligente, porque não-sei-quê, eu sou diferente dos outros e sou maior que os outros… Não! Eu serei rigorosamente igual aos outros no dia em que partir desta vida, como fui rigorosamente igual no dia em que cheguei. Mas isto é uma questão ideológica mesmo, sou mesmo igual aos outros E, portanto, senti nos tais efeitos colaterais da minha profissão eu ser aquilo que as pessoas consideram que eu sou. Se acham que eu sou simpático, sou simples e sou competente, eu quando estiver com as pessoas tenho de ser, desde que sejam também simpáticas comigo. E, felizmente, não tenho um único caso – é extraordinário poder dizer isto ao fim de 60 anos! – de alguém que se tenha cruzado comigo e me tenha chamado nomes. Nada! Nunca aconteceu. Provavelmente alguns terão pensado nomes, mas nunca ninguém teve foi o à-vontade de mo dizer. [Risos] Não tenho a ideia de que sou absolutamente consensual, ninguém é absolutamente consensual.

Corrija-me se estiver errado: diria que dois traços da sua personalidade muito vincados são a retidão e a sensibilidade. Arrisco dizer que isso vem da educação que teve, porque é criado numa casa com muitas mulheres – e talvez daí a sensibilidade. E é criado também por um pai que, não sendo austero, era conservador no trato – daí a retidão. Estarei errado?
Não. Eu acho, para já, que você está muito bem preparado. Realmente eu fui criado numa casa de mulheres.

Nove, salvo erro?
Eram, eram. Portanto, eram as minhas duas avós, avó e tia-avó, que eram irmãs, eram as minhas duas irmãs, a minha mãe, a minha prima, filha da minha tia-avó, uma cozinheira e duas empregadas de fora, a tia Trini, que era uma senhora espanhola que tinha sido casada com um irmão da minha avó e também lá estava em casa, também a costureira que ia lá todos os dias, a senhora dona Pacaró… E, portanto, quer dizer, era só mulheres. Só havia dois homens. Eu até costumo dizer um homem e meio, que era o meu pai...

E o Júlio era o "meio".
[Risos] Pequenino. E portanto habituei-me a aperceber-me da sensibilidade que por ali se gerava, nalguns aspetos positivos, noutros negativos, porque as pessoas de idade como as minhas avós falavam muito de doenças e de mortos e não-sei-quê e transmitiram-me alguma hipocondria. [Risos] Mas, tirando isso, foi muito vantajoso ter-me apercebido disso. Embora não tenha sido nunca um "enfant gâté" [menino mimado], pelo contrário: até levava algumas chapadonas de vez em quando, só da minha mãe, das minhas avós não, mas a minha mãe de vez em quando chegava-me a roupa ao pêlo. Não lhe estou a atribuir nenhum crime por esse facto. Não me doem as costas. Por outro lado, tinha realmente um pai de uma cultura geral muito acima da média...

Ele que estudou Filologia Clássica.
Ele era formado em Histórico-Filosóficas e Filologia Clássica. E, independentemente disso, era um leitor compulsivo, era uma pessoa com um nível de informação extraordinário. O que era muito bom.

Era músico também, tocava muitíssimos instrumentos.
Era músico amador, mas tocava tudo quanto era instrumento. Era uma pessoa extremamente dotada, mas extremamente introvertida. A minha mãe era muito expansiva e tinha sacrificado tudo em função da família. Porque a minha mãe estava no Conservatório, quase a terminar o Conservatório de piano, e depois quando se casou nunca mais pôs as mãos nas teclas do piano. E quando nasceram as minhas irmãs, tínhamos dois pianos em casa, para se ocupar espaço para os berços das meninas um dos pianos foi vendido e um deles está ainda em minha casa. Curiosamente, vendeu-se o do meu pai, ficou o da minha mãe, porque o meu pai considerou que o piano da minha mãe era “mais macio” para tocar e tal.

O seu pai era um homem de regras.
Era. O meu pai não falava comigo. Quer dizer, conversava comigo… mas no que respeitava às questões formais. E ainda hoje eu faço isso – se calhar por uma questão de timidez e pelo facto de não ser um líder; não sou mesmo líder –, de vez em quando também escrevo, escrevo recados. E quando as coisas não estão bem, eu tenho imensa dificuldade, imensa dificuldade!, em de olhos nos olhos acusar, estender o dedo e tal. O meu pai, para que eu cumprisse aquilo que ele considerava serem as suas regras do meu comportamento, escrevia-me notas de trabalho, escrevia-me ordens de trabalho…

"O meu pai nunca entrou no meu quarto, nem quando eu estava com gripe ou com sarampo. Chegava à porta, olhava lá para dentro e dizia assim: ‘Olá rapaz, estás melhor?’ Porque no quarto onde eu vivia era o quarto onde tinha vivido o meu padrinho. E ele morreu naquele quarto. Para o meu pai era como se fosse um irmão."

Que tinha afixadas na parede do seu quarto.
Onde o meu pai não entrava. Porque no quarto onde eu vivia era o quarto onde tinha vivido o meu padrinho. A história desse meu padrinho é curiosa. Tinha sido adotado pela minha avó. Tinha sido o filho de um pescador que morreu após um naufrágio na Figueira da Foz. E a minha avó adotou-o. E, portanto, para o meu pai era como se fosse um irmão. E ele morreu naquele quarto. E o meu pai nunca entrou no meu quarto, nem quando eu estava com gripe ou com sarampo ou fosse o que fosse. Chegava à porta, olhava lá para dentro e dizia assim: "Olá rapaz, estás melhor?" "Estou melhor, obrigado..." Nunca entrou. Porque o quarto para ele era absolutamente sagrado.

O Júlio diz uma coisa muito bonita sobre o seu pai: sou aquilo que ele não foi com metade do que ele era.
Obviamente!

Quer isto dizer que, de certa forma, o Júlio cumprir-se enquanto comunicador, com o sucesso todo que teve e que tem, foi também um orgulho para ele? Mesmo que talvez não o demonstrasse, lá está, com palavras...
Sim. Apesar de tudo, eu tinha com o meu pai algumas conversas que ele não tinha com ninguém. O meu pai era uma aparente contradição. Era contra o regime, era um homem com o coração à esquerda, claramente, mas, por outro lado, era comportamentalmente um conservador. E ninguém imaginaria em quem é que ele ia votar. Eu sei em quem é que ele votou nas primeiras eleições para a Constituinte e ninguém imaginaria. Não vou hoje dizer, mas pronto, ninguém imaginaria. Ele disse: "Eu só digo ao rapaz, porque o voto é secreto..." E quando me disse ao ouvido eu não queria acreditar em quem ele tinha votado. O meu pai foi rigorosamente sempre essa referência para mim pelo seguinte: eu pensava assim, “eu toco muito mal guitarra, toco pessimamente piano, não tenho o ouvido musical do meu pai, não tenho os conhecimentos da língua portuguesa que o meu pai tem, não escrevo tão bem quanto ele”… E portanto tive de trabalhar muito mais para atingir algum nível. Sem estar aqui a fazer a rábula do modesto, eu considero que, mesmo em relação ao meu meio, estou muito longe de ter o talento de alguns dos meus colegas. Simplesmente, tal e qual como aprendi por parte também do meu pai...

O culto do trabalho.
Que era a ideia: o aluno mais dotado ou o aluno menos dotado? “O que trabalha mais!” Portanto, do que eu não tenho dúvidas nenhumas é que me possa bater com todos os meus colegas no que respeita às horas de trabalho e à persistência no trabalho. Agora, no que respeita ao brilhantismo, tive na minha geração colegas absolutamente brilhantes.

Há uma curiosidade no seu percurso profissional que é: poderíamos hoje não estar a falar aqui, pelo menos enquanto Júlio Isidro comunicador, se não descobrisse que era daltónico. Porque foi o daltonismo que lhe travou a intenção de ir para a Academia Militar ou de estudar Engenharia Aeronáutica.
Exatamente. Exatamente...

Quer dizer, poderíamos estar aqui a falar sobre engenharia aeronáutica...
[Risos] Era muito pouco provável.

Isso foi uma desilusão para si? Ou conviveu bem com isso?
Convivi bem com isso por uma razão muito simples: porque não cheguei a ir fazer provas. Se tivesse ido fazer provas na Academia Militar e tivesse sido posto fora porque sou daltónico, teria provavelmente um grande desgosto. Mas não. Como eu fazia desporto, fui ao Centro Desportivo não-sei-de-quê, eu penso que era na António Augusto Aguiar, fazer testes, aqueles testes que os desportistas hoje em dia têm de fazer. Claro, com um primeiríssimo muito grande. Se eu tivesse um problema na aorta, ou se tivesse uma válvula no coração a funcionar mal, não teriam descoberto também nesse mesmo dia. Mas de qualquer das maneiras, fizeram-me alguns testes e quando me fizeram os testes do daltonismo, ou mais propriamente da perceção da cor, foi quando eu me confrontei com o facto; ao final da primeira página, olhava para as bolinhas e já não distinguia as cores que lá estavam. Para aí aos 17 anos, 16, 17 anos, apercebi-me que confundo as cores – não perceciono, para ser mais correto. E era absolutamente eliminatório um piloto aviador confundir as cores. O que também é normal, não é? [Risos]

"Ao longo da minha vida senti-me inúmeras vezes injustiçado. Não pelo público, mas ostracizado por quem manda. Nunca tive uma boa relação com os ‘mandantes’. Às vezes nem são os grandes chefes, aqueles que estão no topo da hierarquia. É preciso ter mais atenção aos quadros intermédios. Aí conheci realmente alguns canalhas.”

O Júlio fez quase tudo em televisão. Mas a verdade é que entre tantos programas – "O Fungagá da Bicharada", "O Passeio dos Alegres", o "Festa é Festa"… – ou entre décadas, se quisermos, houve sempre alguns períodos mais “turbulentos”, quase de travessia no deserto. Isso magoou-o?
Olhe, essa pergunta é muito oportuna. Porque eu já escrevi o primeiro volume da minha biografia, estou a escrever o segundo, e mais uma vez irei optar por não apresentar ressentimentos. Hoje, que existem as redes sociais, recebo – particularmente nesta altura, em que estou a fazer 60 anos de carreira – imensas mensagens de pessoas a perguntar porque é que fui maltratado. Significa que, como eu nunca me queixei, alguém se apercebeu, há espectadores que se aperceberam. “Porque é que foi exilado na RTP Memória?”, perguntam-me isso sistematicamente. “Porque é que não tem problema com a qualidade do "Inesquecível" no canal 1?” São as pessoas que o dizem. Penso que a minha resposta está dada. Ao longo da minha vida senti-me inúmeras vezes injustiçado.

Não pelo público, mas por quem manda.
Nunca pelo público, mas ostracizado por quem manda. Nunca tive uma boa relação com os “mandantes”.

O Júlio diz uma coisa curiosa: que nunca foi de “almocinhos”, de “jantarinhos”...
Nunca. Eu nunca criei lobby. E o lobby pode ser encarado, como sabe, de formas diferentes. De uma forma mais negativa e, até, num sentido positivo. Há lobbies positivos. Mas também há lobbies muito, muito retrógrados, perigosos até. Mas nunca fiz. Nunca fiz. Eu terminava a "Febre de Sábado de Manhã" e nunca almocei sequer com o meu chefe, que era um colega, que é João David Nunes. E nunca pensei provocar um almoço ou um encontro com o presidente do conselho de administração ou fosse o que fosse. E ainda hoje isso acontece. Há bocadinho perguntava-me, e acho que também o devo dizer, se logo após o 25 de Abril fui tomando alguma posição de caráter político-partidário. Também a esse nível posso dizer com o maior dos à-vontades que, mesmo tendo já dado alguns apoios de caráter político-partidário, nunca recebi moeda de troca. E digo isto porque isto é para ficar gravado. Nunca recebi moeda de troca. Pelo contrário…

E certamente também não queria.
Até pessoas ligadas à mesma área onde eu estou me disseram uma vez: "Tem sido sempre muito maltratado pelo partido!" Eu não tenho nenhum partido, mas eu sei o que é que queriam dizer. E, portanto, é evidente que eu posso reafirmar que nunca foi nenhuma conjunção de interesses que me fez progredir. Exatamente por isso. Às vezes porque nem são os grandes chefes, aqueles que estão no topo da hierarquia, que podem ter influência na minha carreira. Curiosamente, são muitas vezes os quadros intermédios.

O pequeno poder.
Eu costumo sempre dizer que temos de ter mais cuidado com o cabo quarteleiro do que propriamente com o coronel que manda na unidade. Percebe? Portanto, quer dizer, é preciso ter mais atenção aos quadros intermédios, onde tudo pode ficar estagnado. E aí conheci realmente alguns canalhas.

A entrevista não é sobre mim. Mas uma das minhas grandes referências na comunicação, no jornalismo, é o Morley Safer, que era jornalista do "60 Minutos" e que trabalhou até ao fim. Ele morreu em 2016 e trabalhou até ao fim.
Fantástico! Eu conheci.

Em Portugal não há essa tradição dos cabelos brancos.
Não.

Mas não é o público que não quer. O que é que se passa? Esses profissionais são perfeitamente úteis, capazes, e podem acrescentar. O Júlio continua a acrescentar naturalmente na RTP Memória. Mas em Portugal, parece-me, quem manda tem algum problema com os cabelos brancos...
Olhe, no caso concreto do país, a questão dos cabelos brancos tem sido prejudicial para imensas pessoas muito úteis, imensas pessoas. Eu conto-lhe uma história: há muitos anos, em determinada altura, a General Motors estava na iminência da falência. Foram chamar um senhor para recuperar a General Motors e ele foi buscar os empregados que estavam em casa, reformados, para recuperar a General Motors. Esta história é extraordinária e é verdadeira. E foram eles, com a sua experiência e com a sua capacidade de trabalho, que a recuperaram. No caso, em Portugal, não consigo perceber como é que não há uma coexistência, já nem é pacífica, uma coexistência laboral, uma coexistência de esforço comum entre os que estão a chegar e os que já cá estão. Há culpas de ambas as partes. Mas na generalidade criou-se uma mentalidade: “Eu, que estou a chegar, só consigo ter o lugar se aquele sair.” O que é muito, muito mau. Eu acredito verdadeiramente no sistema dos vasos comunicantes. Porque eu trabalho na RTP Memória, que tem o departamento conjunto exatamente com a RTP Inovação, o que é muito interessante. Eu quando estou a falar ou só com o olho em cima do computador do meu colega – porque são meus colegas; podem ter vinte-e-tal anos mas são meus colegas – que está a trabalhar, a fazer edição, eu estou provavelmente a olhar e a ver “ele edita de uma maneira diferente da minha, o que é que eu poderei fazer?” Ou ouvir, nomeadamente, um jovem que vem ter comigo e diz assim: "Eu tive uma ideia!" As ideias podem ser disparatadas, têm direito é a existir. Isto é o lado dos mais velhos .O lado dos mais novos é considerarem – isto normalmente é por uma questão de falta de informação – que aquele fulano que está ali de cabelos grisalhos, ou já brancos como os meus, tem de se ir embora, porque as ideias dele já não prestam. Estão completamente enganados. Verdi compôs a ópera "Falstaff" com 81 anos. Portanto, não vale a pena imaginarmos que a capacidade de criar, a capacidade de inventar, a capacidade de sonhar, são propriedades dos mais novos. Muito pelo contrário. Eu penso que é importante ter vida para recriar vida. Acho que em Portugal esse fenómeno é um caso único. Nós não temos de equacionar a idade das pessoas; temos de equacionar a obra das pessoas. Ou se quiser não a idade, mas a qualidade.

E o que vão acrescentar...
Eu já até disse em casa, em tom de brincadeira, que ao meu primeiro sinal de alguma degradação intelectual – o resto vai acontecer naturalmente –, “vocês avisem-me que é para eu parar logo”. Não será preciso, porque eu devo dar logo por isso. Mas, de qualquer das maneiras, digo isto em termos de graça. E realmente é verdade. É muito original esta coisa de nós em Portugal reagirmos assim. O Walter Cronkite, que foi um mestre, “o homem em que a América acreditava” – a expressão é esta –, que foi o pivô que fez a chegada do homem à lua, que fez o direto do assassinato do Kennedy, reformou-se aos 60 anos. Por vontade própria. Claro, com cabelos brancos. Mas a CBS pegou nele e meteu-o como consultor até ao final dos seus dias, com um gabinete dentro da CBS. E ele tem uma declaração extraordinária, em que diz que, no momento em que se despediu e no momento em que saiu a porta da CBS, estava rigorosamente arrependido. Agora, a postura que existe, e eu tenho de ser sincero, é que à mais pequena correção ou sugestão que se faz a alguma rapaziada, é muito mal recebido, e até troçado, como quem diz "eu cheguei agora e sei tudo". É mau. E esta expressão não é minha, é do Picasso. "Não sou suficientemente jovem para saber tudo." Portanto, quer dizer, o Picasso também deve ter tido problemas com algum jovem pintor. [Risos] Considero que realmente é um trauma da nossa sociedade – e da sociedade portuguesa concretamente. Porque em Inglaterra não é assim, em França não é assim, em Espanha não é assim. E nos Estados Unidos a mesma coisa. Em tantos países...

Deixe-me fazer-lhe uma pergunta – não querendo ser demasiado pessoal, naturalmente – que tem que ver com a juventude. O Júlio é pai de três filhas. A Inês, a mais velha, ilustradora, fez um percurso profissional reconhecido – inclusive, agora, participou neste seu último livro. Ela curiosamente assina Inês do Carmo – que é o seu apelido – para, de certa forma, se descolar do percurso do pai. E tem duas filhas mais novas – o Júlio foi pai já depois dos 50 –, a Mariana e a Francisca. A Inês já sabemos que não enveredou por este caminho da televisão; comunica de outra forma. As filhas mais novas têm interesse? O Júlio vê, de alguma forma, a continuação do seu trabalho nelas? Ou, por serem filhas de quem são, desinteressaram-se? Elas são muito jovens ainda...
Olhe, é muito curiosa essa questão. Porque tendo a Mariana já no quarto ano, a caminho do quinto – porque ainda não falhou nem uma cadeira para trás, não tem nem um recurso, está sempre preocupada, acha que as coisas vão correr mal, mas ainda não fez nem nenhum recurso – e na eminência de terminar Medicina Dentária, é evidente que a Mariana não tem nenhum interesse na minha atividade. No caso a Francisca é evidente, porque ela está em artes. Tem 17 anos, está no 12.º ano, e mais até do que a irmã vive obcecada com as notas. Para ela um 19 é uma espécie de desastre, porque só o 20 é que assenta bem na pele; vai-lhe correr de uma maneira diferente quando entrar na faculdade, porque não se apanham “vintes” nas faculdades como ela hoje em dia tem no seu 12.º ano. Essa, obviamente, irá para artes. Penso que se se vai debater um dia destes com a situação de estar à frente ou atrás das câmaras. Porque tem uma grande capacidade enquanto realizadora, enquanto editora, mas também tem bastante à-vontade no discurso. Só que isto é o aspeto que se refere às suas futuras atividades profissionais. A Francisca irá um dia realizar um filme. Irá um dia fazer documentários. Já lhe disse que vai ter de fazer a “Via Sacra” que o pai também fez, não vai começar por realizar uma superprodução, provavelmente vai começar por um documentáriozinho, há-de ser assistente de realização… Ora bem, mas tudo isto para dizer o seguinte: independentemente de uma claramente ir enveredar por alguma coisa que tem a ver comigo, não há nenhuma que goste de estar à frente das câmaras, não há nenhuma que goste de tirar partido da circunstância de ser “o Júlio Isidro”. Pelo contrário. Embora uma venha a ser da minha atividade, não há nenhuma que ostente a atividade do pai. Nem é uma questão de modéstia; é porque não querem.

Tenho uma última pergunta para lhe fazer, Júlio, para terminarmos a entrevista. Porque isto, depois, conversa puxa conversa e ficávamos aqui mais umas horas. Muita gente não sabe, mas o Júlio vai, se não todos os dias, quase todos os dias à RTP. Diz que vai para as "catacumbas" – que é o arquivo.
[Risos] É, é...

O Júlio está neste momento a fazer dois programas. Mas gostava ainda, e já o disse publicamente, nunca o escondeu, de fazer um talk-show: na RTP 1, diário, à noite. Mantém esse desejo?
Eu posso dizer que uma pessoa como eu, com a minha idade e com estes anos de carreira, e relativamente às minhas reflexões – e reflito muito sobre a minha vida, com grandes hesitações, como deve calcular –, eu nesta altura faço televisão e rádio como quem faz ginástica de manutenção. Porque não consegui ainda resolver, e provavelmente nunca irei resolver, o problema de voltar as costas à minha atividade. Porque não tenho a certeza de que, sendo um pessimista como sou, vou ser muito feliz num "dolce far niente". Muito embora certamente viesse a encontrar outras coisas... Eu vou praticamente todos os dias à RTP por uma razão muito simples: é porque, sendo eu o autor total do "Inesquecível", quem edita todas as peças do programa sou eu. Construo as minhas entrevistas com base nos clipes que vou editando. Portanto, estou a editar o clipe e estou a pensar que tipo de conversa é que aquilo vai dar em função das reações, das previsíveis reações, dos meus convidados. E depois escrevo o guião do programa. Não escrevo texto, porque eu falo de improviso.

Não tem teleponto, nunca teve.
Nunca tive. Nem “ratinho” de orelha, nem nada dessas coisas. Não faço de improviso o programa; o programa está muito bem programado. As palavras é que são improvisadas, que é uma coisa completamente diferente. E isso, digamos, até utilizo – e isto é só um parênteses – como mais um exercício. Acho que é um grande desafio não estar pendurado num teleponto e não ter um “ratinho” de orelha, alguém a dizer-me quais são as perguntas que devo fazer, porque é um exercício para a minha cabeça, é para não parar. Já que eu sei que as costas me vão doer, e que me doem cada vez mais, e que as cervicais também, e que o dedo indicador da mão direita, devido ao rato, já tem aqui uma calosidade, eu acho que tenho pelo menos de exercitar as meninges, não quero reumatismo nas meninges. E, portanto, faço isso como um desafio total. Não estou sequer conformado com a situação de ser o "Júlio Exílio" da RTP Memória. Não, isso não. Eu estou muito feliz na RTP Memória. Mesmo muito feliz. Porque estou todos os dias a batalhar para que a RTP Memória tenha, através do meu pequeno contributo, mais espectadores e mais gente a aderir – e mais novos ainda. Mas o facto é que, estou a falar consigo e na segunda-feira passada fui ver de novo as audiências, não com aquela perspetiva obsessiva de um qualquer diretor de programas ou diretor de uma produtora de televisão, "o que é que a gente vai ter que fazer para ganhar mais espectadores", não é assim que eu faço; eu utilizo as audiências como um referencial. "Vamos ver se esta sala de espetáculos onde eu fiz um espetáculo tem clientes, se estão lá sentados." Só assim. E tentar perceber porquê. Não mais do que isso. E não vou fazer nenhuma cedência a um programa para se criar aquelas receitas que hoje toda a gente sabe quais são, que tem a ver normalmente com uma pitadinha de escândalo, com mais uma pitadinha de sofrimento, com mais uma pitadinha de sexo, até, com mais uma pitadinha de traição, com mais uma declaração mais ou menos bombástica, conseguir ter ali mais alguma audiência. Não faço isso. Agora, posso é dizer-lhe que, nesta segunda-feira, quando abri o computador dentro da RTP, verifiquei que o programa de sábado passado, com repetição no domingo, tinha feito a melhor audiência do ano. Ora bem, ao fim de 10 anos de programa, dá que pensar como é que não está ainda na curva descendente – como tudo um dia estará na curva descendente. Mas não dá o mais pequeno sinal que isso aconteça. Portanto, quer dizer, é um “filho” que eu tenho ali, que estou a fazer crescer e que está a fazer 10 anos.

Esse "Inesquecível" poderia ser o tal talk-show na RTP 1? Este formato?
Devo dizer-lhe que um programa como o "Inesquecível" não tem de ser modificado para se encaixar num qualquer canal. Quer dizer, era só pegar naquilo e pôr. E se quisessem experimentar eu achava graça. Não me parece que seja importante o tamanho da sala de espetáculos em função da qualidade do espetáculo. O espetáculo é bom, está bem feito, não tenho dúvidas nenhumas, e, portanto, ele passa ali, é aquele público que eu tenho, aquele público potencial. Tudo bem. Tudo bem. Tenho de fazer como se fosse, lá está, no Cinema Nimas ou para o estádio José Alvalade. É igual. Não fiz melhor no estádio José Alvalade porque estavam lá a 50 mil ou no Nimas com 180. Eu costumo sempre dizer que nos meus programas subo até ao povo. Não é para eu chegar às pessoas; é para que elas venham rapidamente ter comigo. Enquanto nós não estivermos de mão dada, não se justifica fazer comunicação social.

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  • Luisa Costa
    24 fev, 2020 S Joao do Estoril 15:29
    Nem podem sequer imaginar o quanto me deixa feliz esta entrevista, uma enorme entrevista, com tanto detalhes, alguns que ainda desconhecia, sobre o Julio Isidro e assim digo por ser quase da sua idade e nao por desrespeito ou familiariedade abusiva mas pq e alguem de quem muito gosto, desde sempre, pq o considero das pessoas mais importantes na nossa historia televisiva e radiofonica e pq sempre vivi revoltada com o facto de ter sido quase banido da nossa vista (televisao) e da nossa audicao (radio)!!!!UMA PERFEITA INJUSTICA E FALTA DE CARACTER E GRATIDAO!!!Gracas a Deus que agora esta bem presente para alegria de todos nos!!!!Deus nao dorme..... pelo menos para sempre!!!Viva o JULIO ISIDRO!!!!

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