Tempo
|
A+ / A-

Entrevista

Pé diabético. "O Alentejo é a região do país com mais amputações por habitante"

21 fev, 2020 - 13:15 • Rosário Silva

À Renascença, o presidente da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) revela que 82% das pessoas rastreadas em três concelhos alentejanos estão em risco de desenvolver pé diabético. "É de facto preocupante", sublinha José Manuel Boavida.

A+ / A-

A Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) esteve no Alentejo, durante vários meses, onde desenvolveu um projeto de intervenção para prevenir e tratar o pé diabético, em lares e centros de dia. Qual era o principal objetivo?

Foi um desafio da Direção-Geral da Saúde (DGS), que cofinanciou o projeto, lançado para responder ao número de amputações que existem no Alentejo. Em Portugal, 20 a 25% das admissões hospitalares de pessoas com diabetes acontecem devido ao pé. E, atualmente, o pé diabético é a causa de mais de mil amputações dos membros inferiores, sendo que o Alentejo é a região do país com mais amputações por habitante. Era, por isso, necessário desenvolver medidas de sensibilização e um trabalho mais profundo. O desafio da DGS propunha que fossemos ter com a população idosa, aquela que está em centros de dia ou em lares, e aí pudéssemos desenvolver quer um rastreio da situação dos pés dessas pessoas com diabetes, quer tratar as situações que fossem aparecendo, cuidados de podologia, mas também dar formação a essas instituições, assim como aos profissionais que pudessem estar interessados nessa mesma formação.

E essa intervenção foi feita em três concelhos da região, certo?

Sim, foram escolhidos três concelhos atendendo à verba disponível para este projeto e também à disponibilidade e abertura das instituições e dos próprios municípios. Os concelhos que visitámos durante um ano foram os de Montemor-o-Novo, Vendas Novas e Alcácer do Sal. Visitámos 20 Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), a maior parte lares onde estão internadas pessoas, mas também centros de dia, onde foi possível avaliar utentes com diabetes. Com algumas surpresas pelo meio, creio que os objetivos foram cumpridos. Posso dizer-lhe que 30 a 50% destas pessoas com diabetes que foram rastreadas têm pés de alto risco. Quero dizer com isto, que são situações que se não tiveram uma atenção muito especial e um cuidado permanente em relação aos pés e que podem acabar em amputações, com consequências gravíssimas quer para as pessoas, quer para as próprias instituições, quer até para o próprio Estado, com todos os custos inerentes a esta situação. E, nestas idades, [são situações] quase sempre irrecuperáveis do ponto de vista da reabilitação das pessoas.

Agora que os resultados foram conhecidos, como avalia o impacto do projeto?

Realizámos intervenções em duas dezenas de IPSS, intervenções essas que incluíram o rastreio com classificação do risco para lesões, os tratamentos necessários aos casos de médios e alto risco, bem como a sensibilização e educação dos cuidadores formais e informais para o pé diabético. Tivemos 334 participantes e através deles foram realizadas várias dezenas de formações e mais de 630 tratamentos. Metade das pessoas que observámos, cerca de 300, tinham alto risco de vir a ter uma amputação dos membros inferiores, pois apresentavam problemas de circulação, de diminuição de sensibilidade ou deformações do pé. Posso dizer-lhe, ainda, que a prevalência de diabetes nas IPSS é de 23,8%. E atendendo à classificação do risco de que falei, 44% dos indivíduos tem um risco moderado e 38% apresentam risco elevado. Assim, estamos a falar de 82% de pessoas rastreadas, o que é de facto preocupante.

São números inquietantes, sim. Perante esses dados, de que forma equacionaram o vosso trabalho?

Aquilo que fizemos -- não podia ser de outra forma -- foi tratar esses pés, ensinando e aconselhando essas pessoas e, algumas vezes, sempre que possível, também os familiares, alertando-os para os cuidados a ter. Foi necessário insistir, durante a formação das pessoas, na necessidade de vigiar mais e melhor os pés, quer nos cuidados de higiene quotidianos, quer nos serviços de prevenção a serem levados a cabo, quer na identificação de todos os sinais de risco. Isto para que rapidamente se possa encaminhar essas pessoas para tratamento, evitando o pior, as amputações. Houve também um trabalho junto dos municípios. A própria DGS reconhece a importância deste trabalho e a sua função aqui foi agitar e sensibilizar as instituições locais para este trabalho tão necessário. Uma nota positiva que queria deixar é que foi manifestada a vontade de encontrar meios, nomeadamente financeiros, para se poder prosseguir com este tipo de projeto. Nós, APDP, estamos totalmente disponíveis para colaborar em todas as ações, para que o número de amputações no Alentejo possa ser reduzido e as pessoas com diabetes tenham a qualidade de vida que lhes é merecida, e que têm direito a lutar por ela.

O que mais o surpreendeu no decorrer do projeto no terreno?

O número de pessoas que estão internadas nas IPSS, pessoas relativamente jovens e que precisam de uma vigilância enorme, pois têm necessidade desses cuidados. Na verdade, há uma percentagem significativa de pessoas com diabetes nestas IPSS, entre os 20 e os 24%, ou seja, uma em cada cinco pessoas que estão no lar padecem desta doença. E a maior parte dessas pessoas, com muitos anos de evolução da enfermidade, em média cerca de 16 anos, lidam com uma ou mais complicações relacionadas com a diabetes. Estamos a falar de populações fragilizadas pela idade, pela doença, e como tal é necessário que a ligação aos cuidados de saúde, a formação dos cuidadores dos próprios lares e dos familiares, seja uma atividade permanente, para poder evitar consequências maiores para estas pessoas.

A situação que a APDP encontrou no Alentejo espelha a realidade do país ou, nesta região, o panorama é muito mais grave?

É mais grave nesta região, sem dúvida. Só para lhe dar um exemplo, o número de amputações no Alentejo é cerca do dobro comparativamente com a região norte do país. Isto mostra que há, claramente, um caminho a percorrer e há aqui uma agilização que é preciso ter entre a identificação destes problemas, onde as pessoas estão, os centros de saúde, e depois uma rede que possa permitir que elas tenham um acesso rápido quer às consultas especializadas, quer a eventual revascularização e aos tratamentos mais modernos que hoje se pode ter. E isso é possível. Uma situação por nós identificada, extremamente grave, foi resolvida graças à rápida identificação, ao esclarecimento e ao diagnóstico correto. A pessoa foi encaminhada para o hospital de Évora, onde foi revascularizada, evitando a amputação. Ora, isto deveria ser a prática normal e habitual. Daí que as pessoas ligadas às IPSS necessitem, urgentemente, desta formação, tal como é necessário que os centros de saúde disponham de consultas de diabetes, de enfermeiros com experiência nesta área. Uma formação que a associação está disponível para fornecer, quer em estágios, quer no próprio terreno.

Agora que o projeto está em tempo de balanço, deixa algum apelo às diferentes entidades, nomeadamente ao Ministério da Saúde?

O apelo ao Ministério da Saúde é para que sensibilize, também ele, os municípios, as próprias IPSS, pois a saúde não pode fechar-se nas suas paredes. A saúde tem de se abrir à sociedade. E, já agora, as autarquias têm um papel fundamental de coordenação local, que é absolutamente determinante para o futuro da saúde nas doenças crónicas -- naturalmente, em articulação com o Ministério e com os organismos locais de saúde. O apelo é para a Administração Regional de Saúde do Alentejo, para o Ministério, mas também para as autarquias. Estas, penso eu, podem ser os facilitadores de todo este processo, pois compreendem melhor as necessidades locais que a população tem.

Tópicos
Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+