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Entre a Austrália e a Holanda. Quão liberais e reguladas são as propostas de lei para a eutanásia?

19 fev, 2020 - 13:56 • Joana Gonçalves

Que países são mais liberais e onde é a regulamentação da eutanásia mais apertada? Compreenda os diferentes regimes jurídicos da morte medicamente assistida - e como os projetos de lei que vão a votos na Assembleia da República se posicionam face a essas legislações estrangeiras.

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Na Europa apenas três países legalizaram a eutanásia. A Holanda foi o primeiro, em 2002, seguida da Bélgica, no mesmo ano, e do Luxemburgo em 2008. Oito anos depois, em junho de 2016, o Parlamento do Canadá aprovou uma alteração ao Código Penal que veio descriminalizar tanto a eutanásia como o suicídio assistido, sempre em contexto clínico. E em novembro de 2017, Victoria tornou-se o primeiro estado da Austrália a legalizar a morte assistida para doentes terminais (no resto do país continua a não ser legal).

Apesar do princípio comum, cada país tem o seu próprio regime jurídico que enquadra a eutanásia -- desde a idade mínima para a requerer à natureza do parecer médico e condições na origem do pedido. E como se situaria Portugal em relação a estes países caso a eutanásia fosse legalizada?

Para tentar encontrar respostas, a Renascença pediu ajuda a um constitucionalista português e a Ana Sofia Carvalho, professora do Instituto de Bioética da Universidade Católica, para criar parâmetros de comparação das leis nos cinco países onde a eutanásia e o suicídio assistido são legais - Austrália, Canadá, Luxemburgo, Bélgica e Holanda - e para os pôr frente aos cinco projetos de lei que vão a debate e a votação na Assembleia da República na próxima quinta-feira, 20 de fevereiro.

As propostas portuguesas

Em Portugal, são mais as semelhanças do que as diferenças que separam os cinco projetos de lei sobre a morte medicamente assistida apresentados pelo PS, PAN, PEV, Bloco e Iniciativa Liberal (IL).

Com base nos critérios adotados para avaliar a legislação dos cinco países onde a prática é legal, todas as propostas portuguesas se situariam no mesmo ponto: liberalização total com condicionantes, dada a exclusão de doentes com perturbações mentais, e valor máximo de regulamentação, à semelhança do que se verifica na Austrália (ver gráfico acima).

Todas as propostas excluem doentes com menos de 18 anos, estrangeiros não residentes em Portugal e pessoas que padeçam de uma doença do foro mental. Partido Socialista, Bloco de Esquerda e PAN excluem, também, doentes sujeitos a processo judicial visando a sua incapacidade.

A aprovação da comissão de avaliação é obrigatória em todos os projetos de lei, que preveem ainda que os profissionais de saúde possam declarar-se objetores de consciência.

Entre o que distingue os cinco documentos conta-se o número de médicos intervenientes no processo, a quantidade de vezes que o doente deve reiterar o pedido, a obrigatoriedade de avaliação de um psiquiatra, o local da prática e a possibilidade de avançar com o processo na eventualidade de o doente ficar inconsciente após o pedido.

Neste último ponto, apenas o Bloco prevê que se avance com o processo se "tiver disposto diversamente em declaração antecipada de vontade constante do respectivo testamento vital". Nas restantes propostas aplica-se a suspensão imediata do procedimento, até que o doente volte a recuperar consciência e seja capaz de, novamente, realizar um pedido informado, livre, pessoal e reiterado.

O PAN e o PEV exigem a consulta de um psiquiatra, sem que seja necessária a existência de dúvidas sobre a situação psicológica do doente. Já o PS, BE e IL só o propõem caso o médico responsável ou o especialista na patologia do candidato manifestem dúvidas quanto à presença de perturbação psíquica que afete a capacidade do doente de tomar decisões.

Um outro ponto de divergência é o local onde o procedimento final pode ter lugar. À exceção do partido ecologista "Os Verdes", todas as restantes propostas preveem que a morte medicamente assistida possa ocorrer numa instituição de saúde pública ou privada, em casa do doente ou noutro local, desde que aprovado pelo médico que o acompanha. Apenas o PEV limita o local da administração do fármaco a hospitais públicos.

Contas feitas, e assumindo que um ou vários projetos de lei a votos são aprovados e dão origem a uma legislação única, Portugal situar-se-ia ao nível da Austrália no que toca à regulamentação - é o país com regras mais estritas definidas para a prática da eutanásia. Já no que toca à liberalização, ficaria a meio caminho entre aquele país e os restantes quatro.

"Aquilo que os gráficos expostos nos dizem é que nós já vamos começar numa posição de liberalização muito mais próxima daquilo que são as circunstâncias atuais da Holanda e da Bélgica, com casos absolutamente inaceitáveis", adianta Ana Sofia Carvalho, em declarações à Renascença.

Para a professora do Instituto de Bioética da Universidade Católica, "há exceção do PEV, relativamente à possibilidade do pedido, as diferenças são mínimas e os projetos em si, do ponto de vista ético, colocam todos eles o mesmo tipo de riscos".

"Quando se utiliza o argumento da rampa deslizante a resposta que ouvimos é sempre de que isso não vai acontecer porque nós vamos ter tudo muito regulamentado, mas a verdade é que Portugal já começou a deslizar. Nós já nem vamos começar do princípio, começamos a meio da rampa", explica Ana Sofia Carvalho.

"A maior parte dos projetos de lei em apreço já começam claramente a deslizar para uma liberalização que é eticamente inaceitável, próxima da Bélgica e da Holanda. É isso que é verdadeiramente assustador", acrescenta.

E lá fora? Austrália é a menos liberal, Holanda a menos regulamentada

Com base nos critérios aplicados, depreende-se que a Holanda é o país com o menor grau de regulamentação e com o nível máximo de liberalização. Já a Austrália é a menos liberal, contemplando em simultâneo o ponto mais alto de regulamentação.

Nestes dois casos, as principais divergências são a condição na origem do pedido, que na Austrália implica doença incurável e na Holanda sofrimento físico ou psíquico sem perspetiva de melhoria, bem como a idade mínima para requerer a eutanásia.

Neste último já se discute, inclusive, a possibilidade de introdução de um comprimido “de fim de vida”, destinado a idosos que não desejem continuar a viver.

Entre as condições favoráveis à prática da eutanásia na Austrália está a obrigatoriedade de um parecer médico, de caráter vinculativo, que deverá envolver pelo menos dois profissionais de saúde. Outro fator determinante é a limitação territorial da prática: a eutanásia só é permitida num estado australiano, Victoria, continuando a ser ilegal no restante território nacional.

A idade mínima de requerimento da morte medicamente assistida varia entre os cinco países. No Luxemburgo só é permitida a cidadãos com mais de 16 anos, enquanto na Holanda qualquer criança com idade entre os 12 e 16 anos pode aceder à eutanásia a par dos adultos, desde que com o consentimento dos pais ou dos representantes legais. Neste aspecto, a Bélgica é o país mais liberal - não impõe limite de idade.

A legislação belga prevê, ainda, a elaboração de testamento vital. A presença de um médico no ato da administração não é obrigatória e não há referência a registo de acesso a cuidados paliativos.

Já no caso da Austrália e Canadá nenhuma pessoa com menos de 18 anos pode recorrer à morte medicamente assistida.

Ainda no velho continente, o suicídio assistido não constitui crime na Alemanha, Suécia e Suíça. Este último contempla duas conhecidas organizações de natureza associativa, a Dignitas e a Exit, que têm vindo a dedicar-se a ajudar doentes terminais a pôr fim à vida.

A associação Exit só aceita pacientes nacionais ou residentes no país, enquanto a Dignitas também acolhe estrangeiros. De acordo com os registos da Dignitas, sete portugueses anteciparam a morte com o apoio dos serviços da instituição suíça até hoje.

Por este motivo, que faz da Suíça um caso excecional, a Renascença optou por não integrar o país no gráfico representativo da legislação comparada.

O mesmo critério foi aplicado aos Estados Unidos. Nos EUA, a lei mais antiga de morte medicamente assistida remonta a 1997, no estado do Oregon, um de seis estados (Washington, Califórnia, Colorado, Vermont e Havai) onde o suicídio assistido é legal. A eutanásia ativa continua a ser ilegal em todo o país.

Para poder obter a receita do fármaco letal, o paciente tem de pedi-lo verbalmente a um médico duas vezes, durante um período de 15 dias, sendo que um segundo médico deve confirmar o diagnóstico. O método passa pela autoadministração do fármaco.

Eutanásia em Portugal. O que precisa de saber antes da votação

Atualmente, a eutanásia ativa é considerada crime em Portugal, configurável como homicídio a pedido da vítima, sendo punida com uma pena de prisão de até três anos.

Qualquer utente dos serviços tem direito a consentir ou recusar a prestação de cuidados de saúde, a que corresponde o correlativo dever de respeitar tal vontade. Este direito, expressamente consagrado, tem importância fulcral para a compreensão da eutanásia passiva, permitida nos casos em que o paciente declare não pretender continuar com os tratamentos.

No início do mês de fevereiro, o Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas da Ordem dos Médicos chumbou os quatro projetos de lei dos partidos políticos sobre a eutanásia, que vão a debate no próximo dia 20, na Assembleia da República. Falta apenas analisar o projeto do Iniciativa Liberal.

Em declarações à Renascença, o médico José Manuel Jara esclarece que este parecer negativo “resulta, em primeira instância, do facto de os projetos estarem em total desacordo com o código de deontologia médica, onde estão sintetizados os princípios da medicina”.

Tal como em 2018, o debate desta quinta-feira ocupará toda a tarde, mais de duas horas e meia, e, no final, os cinco diplomas serão votados. A votação será nominal, os deputados levantam-se e votam um a um.

Tratando-se de uma matéria de consciência, não há disciplina de voto na maioria das bancadas, à exceção do CDS, PCP e BE. Nas restantes, cada um vota em liberdade, o que dificulta a antecipação dos resultados na hora de votar os projetos do Bloco de Esquerda, partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), PS, Partido Ecologista "Os Verdes" e Iniciativa Liberal.

Em tese, os partidários do "sim" no PS, BE, PEV, PAN, o deputado único da Iniciativa Liberal (IL) e a deputada independente Joacine Katar Moreira, podem somar 135 votos.

Já o lado do "não" une o PSD, apesar do partido conceder liberdade de voto a todos os deputados, CDS, PCP, e o Chega, que juntos podem perfazer 105 votos.

A 29 e maio de 2018, os projetos de lei do PAN, BE, PS e PEV foram rejeitados.

Nota metodológica: Dois eixos guiam esta análise de dados: liberalização (eixo horizontal) e regulamentação (eixo vertical).

No eixo horizontal foram definidos quatro níveis - proibição total (0), eutanásia legal com condicionamentos e apenas aplicável em alguns territórios e províncias (0.4) eutanásia legal com condicionamentos (0.8) legalização total (1).

No eixo vertical, os critérios aplicados para obter o grau de regulamentação foram: participação médica, natureza do parecer - consultivo ou vinculativo, registo médico, acesso a cuidados paliativos, vontade (atual ou anterior), condição na origem do pedido e idade mínima de requerimento.

Com base no cálculo dos valores dos dois eixos, obtivemos uma representação gráfica das cinco legislações que permite avaliar os níveis de liberalização e regulamentação dos respetivos regimes jurídicos e compará-los nestes dois aspetos fundamentais.

Este trabalho é uma proposta de visualização comparada da legislação da eutanásia e suicídio assistido nos países em análise. Todos os critérios e classificações foram desenvolvidos em colaboração com um constitucionalista e uma especialista em bioética e ética médica.

Todos os dados utilizados, bem como a análise feita, podem ser consultados no nosso repositório de dados abertos.

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