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Simon Kuper: "Se alguém grita coisas racistas em Inglaterra, tem a polícia à porta no dia seguinte"

18 fev, 2020 - 12:45 • Filipe d'Avillez

O autor britânico escreve sobre o futebol numa perspetiva antropológica. Kuper critica alguns aspetos do Governo português para lidar com a violência no futebol.

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O livro “Football Against the Enemy”, de Simon Kuper, escrito em 1994, continua a ser um favorito entre quem gosta de pensar e escrever sobre a importância do fenómeno futebolístico na política e nas relações internacionais.

O tema esteve em debate no Clube Lisboa, no final de Janeiro, com a presença de Kuper, que é jornalista do “Financial Times” e de Raquel Vaz Pinto, especialista em Relações Internacionais e autora do livro “Para lá do relvado”.

Em entrevista à Renascença, Kuper diz que o futebol nunca foi tão importante para a política como hoje, por causa da crise de confiança nos partidos políticos, e dá a sua opinião sobre temas do futebol português, como a proposta do Governo de criar um cartão do adepto. O autor avalia a forma como se lida com casos de violência e racismo no futebol, em Portugal. Kuper dá o exemplo de Inglaterra, onde as autoridades são implacáveis.

Faz 26 anos que escreveu “Football Against the Enemy”, no qual argumenta que o futebol é mais do que apenas um jogo e tem interligações com o mundo da política. Passados estes anos todos, alguma coisa mudou?

Penso que o futebol tornou-se ainda mais importante para a política nos últimos anos. Os eleitores estão a perder a confiança nos partidos políticos, por isso os políticos de carreira estão a ter mais dificuldades. Veja-se o caso da Hillary Clinton. Cada vez mais vemos dirigentes desportivos como Berlusconi, em Itália e Mauricio Macri, da Argentina, que geriram clubes, ou então o George Weah, que foi jogador, a usar isso para chegar ao poder.

À medida que os partidos se tornam mais fracos esta porta do desporto torna-se mais importante. Donald Trump tinha ligações ao wrestling profissional e isso ajudou-o a ganhar nome entre as classes baixas americanas e George W. Bush tinha um passado no beisebol.

A política estraga o futebol?

É muito difícil imaginar o futebol sem um significado político e social. Quais são as instituições em Portugal que geram mais entusiasmo e lealdade? Em todos os nossos países as igrejas e os sindicatos têm perdido influência. O que sobrevive são os clubes de futebol. Clubes como o Benfica e o Porto são hoje algumas das instituições mais poderosas e populares em Portugal, e claro que não se trata só de desporto. A relação entre o Benfica e o Porto é também a relação entre duas cidades, o que em Portugal tem ganho um importante cunho político e gera muito azedume e desconfiança.

Muitas pessoas encontram hoje o seu sentido de comunidade no futebol. Vemos isso nas redes sociais, as pessoas identificam-se com referências ao seu clube e isso torna-se cada vez mais comum à medida que as outras identidades enfraquecem.

O futebol nunca é apenas futebol, apela sempre a divisões tribais mais alargadas na sociedade.

Está a par do caso Football Leaks?

Só por alto.

Rui Pinto: criminoso ou denunciante?

Eu diria que é possível ser ambos. Mas não me quero meter num assunto em que não domino os factos.

Nos últimos anos houve vários casos em Portugal que levantam suspeitas de corrupção, envolvendo diferentes clubes. Os adeptos cuja equipa está em baixo queixam-se sempre de que os adversários são beneficiados. Na sua experiência existe mesmo tanta corrupção assim no futebol europeu?

Penso que Portugal tem um problema maior neste sentido do que os campeonatos do norte da Europa. Vemos isso na figura de José Mourinho. Ele é um produto do futebol português e sabe tudo sobre estas viciações, ou alegadas viciações, muitas das quais não duvido que sejam verdade.

Então quando ele chega a Inglaterra assume que o sistema é igual e começa a dizer que o Chelsea está a ser enganado pela BBC, pelo Arsenal e pela Federação e que estão todos a conspirar para que o Chelsea tenha um calendário mau e apanhe com os piores árbitros. Em parte faz isto para chamar atenção, mas faz também porque acredita mesmo que é assim. Em Inglaterra as pessoas ficam zangadas com o árbitro, mas não pensam que é tudo um esquema, tudo corrupto e acho que têm razão e que a maioria dos campeonatos do norte da Europa não são corruptos. Na figura de Mourinho encontramos esta mentalidade portuguesa transposta para um país em que apenas parece bizarro.

Até que ponto o Estado deve estar envolvido no futebol?

É preciso um ambiente de Estado de Direito, por isso se há viciação de resultados isso deve ser crime, e há países em que não o é. A lei deve ser robusta e é preciso haver intervenção policial para a aplicar. Mas em termos da gestão do dia-a-dia, preferia que fosse deixada nas mãos de uma federação independente do Estado, mas supervisionada pelo Estado.

Em Portugal está a ser discutida uma lei sobre a violência no futebol que prevê a segregação dos grupos organizados de adeptos, a emissão de cartões de identificação para os adeptos e a legalização das claques que pretendam receber apoio dos seus clubes. O que lhe parecem estas medidas?

Penso que os cartões de adepto são uma péssima ideia, porque tornam mais difícil aos adeptos normais ir aos jogos. Tentaram isso em Itália. Quem não tiver encomendado o seu cartão com semanas de antecedência não consegue ir ao jogo e isso afasta os adeptos normais, as mulheres e, basicamente, toda a gente que queremos ter nos estádios para que o ambiente seja um bocado menos insano e fanático, que é o que acontece quando só lá temos os ultras.

No que diz respeito à violência, só temos de nos preocupar com um pequeno grupo de pessoas e a melhor maneira de fazer isso é através da polícia. Porque em países como Portugal, Itália e Argentina os ultras e os clubes têm demasiadas ligações. Os ultras sabem onde vive o Presidente e este precisa que eles estejam do seu lado. É normal haver trocas de dinheiro e de favores e se eles forem violentos a direção não se atreve a intervir. Estas relações promíscuas são muito perigosas.

Mas não é muito complicado, porque estamos a falar de poucas pessoas. Não temos de nos preocupar com 50 mil, mas com 500. É preciso que a polícia saiba quem são esses 500. Se alguém gritar coisas racistas, se bater em alguém ou usar engenhos pirotécnicos, está tudo gravado, sabemos quem são. O que acontece hoje em dia no Reino Unido é que na segunda-feira de manhã a polícia bate à porta e diz que sabe o que o adepto fez no jogo. Depois o clube proíbe o adepto de entrar no estádio e o problema fica resolvido.


O Reino Unido é sempre apontado como um exemplo por ter eliminado o hooliganismo. É verdade?

Em larga medida sim. As pessoas dizem que os grupos lutam na mesma, fora do estádio, mas não existem provas de que isso seja verdade. Ouvimos histórias sobre lutas combinadas: os hooligans gostam de falar disso porque os faz parecer machões, a polícia gosta de falar disso porque justifica o investimento no policiamento do futebol e os media gostam porque são histórias que vendem, mas na verdade não acontece assim tanto. Quando é que foi a última vez que morreu um adepto no Reino Unido? O caso mais recente de fatalidade com um adepto britânico passou-se em Istambul, na Turquia.

Estava em França quando Portugal se sagrou campeão europeu. Ficou surpreendido?

Estou nisto há tempo suficiente para saber que há muito acaso no futebol.

Deixem-me só esclarecer que sou um grande fã do futebol português, mas tiveram seleções muito melhores que a de 2016. Quando penso na seleção de 2004, com jogadores como Figo, Ronaldo mas também o Maniche, Miguel e Ricardo… Essa equipa era fenomenal.

Eu cresci na Holanda e apoio a seleção holandesa e lembro-me de quando nos derrotaram nas meias-finais. Ficou 2-1, mas na realidade mais parecia 5-1, porque a Holanda nunca teve hipótese. A forma como Portugal dominava o jogo e mantinha a posse de bola, com o Deco, por exemplo, foi do futebol mais belo que vi na vida.

Em 2016 a equipa não era comparável, era muito mais fácil de derrotar. Mas no futebol acontecem coisas estranhas. O futebol português é como o holandês, é muito inteligente, o que significa que as equipas podem ganhar sem ter grandes jogadores, por causa do posicionamento.

Portanto o facto de Portugal ter chegado à final em 2016 foi como a final do mundial da Holanda em 2010, é um tributo a uma cultura futebolística inteligente.

Portugal merecia ganhar um troféu porque têm uma história futebolística incrível para um país pequeno, por isso não mereciam necessariamente ganhar em 2016, mas não deixa de ser justo.

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  • Paulo
    20 fev, 2020 Coimbra 15:13
    Nanny State Big Brother=Reino Unido

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