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"O Estado poderá ter de assumir a responsabilidade por acidentes com carros autónomos"

07 fev, 2020 - 17:39 • Sandra Afonso

Um dos grandes desafios da condução autónoma não é tanto o software, mas saber quem vai assumir a responsabilidade em caso de acidente. É o preço a pagar pelo avanço tecnológico, diz Rodrigo Maia, da Altran Portugal, em entrevista à Renascença.

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Rodrigo Maia defende que até 2030 os automóveis vão passar a ser software com rodas. É nisso que a Altran trabalha. A rede 5G vai permitir dar um grande salto no desenvolvimento da tecnologia. Só não teremos carros a conduzir sozinhos nas estradas mais cedo, segundo Rodrigo Maia, por causa da burocracia, da legislação e dos seguros.

O problema, segundo o administrador, é saber quem irá assumir a responsabilidade quando acontecer um acidente. Em última análise, pode ter de ser o Estado.

Que desafios se colocam, a curto prazo, no desenvolvimento da mobilidade?

Na mobilidade e na transformação da indústria automóvel, no que diz respeito ao transporte individual, vamos ver um acrescentar de tecnologia digital dentro dos veículos, que já está a crescer. Aquilo que se prevê é que 90% da inovação que vai aparecer ao longo da próxima década, dentro dos carros, virá exatamente do que tem a ver com o software e pelo que é potenciado por ele. Obviamente, esse enriquecer do ecossistema automóvel, com mais software e mais inteligência, traz também riscos.

Que riscos são esses?

São riscos a diversos níveis. Desde os riscos para o código que está a correr dentro do veículo, que tem que ser bastante testado e verificado, de forma a garantir que tudo aquilo que é colocado dentro do veículo e todo o comportamento esperado do automóvel está de facto verificado e que não vamos ter situações inesperadas, como por vezes já acontece, mas que não vão poder acontecer no futuro. A partir do momento em que as marcas assentarem toda a sua política de comunicação em cima da fiabilidade do software que têm a correr dentro dos carros, esse mesmo software não pode falhar, porque isso destruirá o valor da marca.

Também importante é como se responde a ameaças externas, como é que os carros, estando conectados, ligados a infraestruturas, como é que são resilientes a ataques externos, seja fortuitos, por pessoas que não têm intenção de estragar mas que podem provocar dano, seja por ataques que são verdadeiramente direcionados para causarem danos na infraestrutura de software que corre dentro do carro.

Podemos dizer que a evolução se faz em dois campos: a evolução da própria tecnologia e convencer o consumidor da segurança do produto?

Teremos sempre que ter em mente as duas perspetivas. O consumidor vai aceitar, normalmente, que a tecnologia vai invadindo o seu espaço. Temos visto isso nos mais diversos ecossistemas, desde as comunicações móveis, até à forma como nos relacionamos com as entidades e sistemas públicos, com os bancos. Em todas essas áreas a tecnologia entrou nas nossas vidas e fomos aceitando, reconhecendo o risco, mas aceitando que do outro lado há uma entidade que se preocupa com esse risco.

No caso da indústria automóvel, essa confiança também terá que ser conquistada, garantindo que, por um lado, há regulação, há formas de controlar a tecnologia que está a ser posta dentro do veículo e que foi verificada e validada de forma a poder dar o comportamento esperado. Mas temos também que avançar pela confiança e transmitindo confiança aos utilizadores dessas mesmas tecnologias. Uma coisa que nos ajuda é que as gerações estão sempre em evolução e, portanto, aquilo que é mais difícil de aceitar para pessoas com idades mais avançadas, para os jovens torna-se imediato. Vemos isso com a tecnologia, cada nova geração tem mais apetite tecnológico do que a anterior, isso faz com que a adoção tecnológica vá sempre progredindo.

"O software não pode falhar, porque isso destruirá o valor da marca"

Qual é o posicionamento de Portugal neste momento, comparando com outros países, nomeadamente com a União Europeia?

Portugal está numa posição fantástica, na minha opinião. Portugal teve ao longo de muitos anos um trabalho importante na requalificação dos seus recursos humanos e hoje, não estando ainda no pelotão da frente ao nível da qualificação de recursos humanos, nomeadamente com graus de doutoramento, mestre e licenciados, mas temos uma população muito bem formada do ponto de vista da engenharia e das áreas tecnológicas. Isso tem feito com que muitas multinacionais e fornecedores de primeira linha estejam a olhar para Portugal como um destino que pode suprir os grandes défices de mão-de-obra especializada que existem, nomeadamente no centro da Europa.

Temos visto casos como os da Volkswagen, da Daimler, da BMW, da Continental, da Bosh, que têm centrado em Portugal centros digitais de desenvolvimento de software para essas grandes marcas. Tal como a Altran, onde trabalho, que hoje tem cerca de mil pessoas a trabalhar para grandes fabricantes europeus.

Está a falar do Vórtex?

O Vortex é um centro de investigação aplicada. Os nossos centros de engenharia, que têm cerca de mil pessoas, estão destinados ao desenvolvimento de produto, o Vortex está numa fase anterior a essa, na fase de conceção, de exploração da aplicação de tecnologias que saem das universidades e que são colocadas depois ao serviço dos produtos que venham a ser desenvolvidos no futuro. Nós temos esta aproximação dual, entre aquilo que é a concessão e exploração de Tecnologia e o desenvolvimento do produto, propriamente dito.

Os centros da Altran têm mil trabalhadores no total?

A altran portugal tem neste momento 2600 pessoas, dessas, mais de mil, cerca de 1100 pessoas, trabalham diretamente para fabricantes estrangeiros que têm em Portugal, com a Altran, uma parte do seu desenvolvimento.


Fala-se muito da exportação do know how português, dos jovens que acabam de sair da universidade e procuram oportunidades fora do país, o que está a dizer é que nesta área há colocação e oportunidades em Portugal?

A Altran foi pioneira, em 2013, na atração do negócio certo para ser desenvolvido em Portugal. Montámos no fundão o nosso primeiro centro de Engenharia, onde temos hoje cerca de 450 pessoas. É uma zona de baixa densidade e, portanto, representa um sucesso imenso da capacidade da engenharia portuguesa de centrar talento, de o desenvolver e de fornecer esse talento para o estrangeiro. Estamos a exportar, não estamos a mandar lá para fora recursos para produzirem lá fora, exportamos a partir de Portugal.

Em 2016 abrimos um novo centro, no Porto, que tem hoje cerca de 500 pessoas e que também exporta projetos, a partir do Porto e de Vila Nova de Gaia para o estrangeiro. Tem sido um percurso de extremo sucesso da Altran, conseguir convencer os nossos clientes internacionais e grandes multinacionais que Portugal é uma fonte de talento extraordinário, que a nossa Engenharia produz talento muito bom, que pode ser usado no desenvolvimento dos seus projetos.

Qual é a perspectiva a curto-médio prazo? Vão continuar a alargar as candidaturas, a absorver mais mão-de-obra?

A Altran tem crescido a um ritmo muito grande nos últimos 5 anos, não é previsível que vamos desacelerar de um momento para o outro, manteremos este passo e a nossa ambição é crescer ainda mais do que aquilo que já crescemos, não é estabilizar. Nos próximos anos continuaremos a atrair talento e não só em Portugal. Hoje em dia já atraímos talento de toda a parte do mundo para os nossos centros, do Nepal ao Brasil, à Argentina, ao continente africano, estamos a atrair talento que vem trabalhar connosco nos nossos centros, seja no Fundão, no Porto ou mesmo aqui em Lisboa.

Em relação a projetos, o que é que está em desenvolvimento pronto para sair?

Assinamos recentemente com o governo português um contrato de financiamento para a criação de mais 200 postos de trabalhos em Portugal, portanto, essa é uma das ambições a mais curto prazo. Temos também o desafio de continuar a expandir em Portugal os centros, que consigam servir cada vez com maior valor acrescentado os nossos clientes internacionais. A criação do Vortex serve exatamente para puxar o mais próximo possível do início da cadeia de produção a entrada da Altran nos seus clientes e com esse Centro captar cada vez mais projetos, mais interessantes e mais valiosos, com maior valor acrescentado para aquilo que fazemos em Portugal e dessa forma sermos um parceiro, não só importante para os nossos clientes, mas um parceiro core na estratégia dos nossos clientes.

O Vortex é um dos projectos mais recentes e ainda está em instalação. Qual é o ponto da situação?

O Vortex tem estado a crescer. Ao longo de 2019 criamos toda a infraestrutura, temos hoje já uma dezena de pessoas a trabalhar no Vortex. A nossa expectativa ao longo de 2020 é, pelo menos, dobrar o número de pessoas, chegar perto das 30 pessoas este ano, fazendo investigação aplicada, testando tecnologias e aplicando-as em contexto de novas aplicações tecnológicas e ao mesmo tempo atrair clientes que nos peçam 'explorem isto, testem esta tecnologia, digam-nos como é que pode ser usada'. Estamos já a conseguir, já vamos tendo alguns projetos com alguns clientes.

Que tipo de projectos?

Decidimos apontar inicialmente para um sector de mercado, para criarmos uma base sustentável num determinado mercado, apontámos para o Mercado Automóvel. Estamos a desenvolver projetos ligados ao apoio à navegação autónoma, em particular com algoritmos de inteligência artificial que permitam catalogar e fazer a caraterização dos objetos que o carro vê à sua volta. Temos vindo a trabalhar com isso e a desenvolver projetos nessa área.

"Daqui a uma ou duas décadas, poderemos começar a ver a coexistência entre veículos conduzidos e não conduzidos"

Quando é que acha que será seguro a navegação autónoma em Portugal e no mundo?

A navegação autónoma vai evoluir. Nós hoje em dia temos carros que já fazem navegação autónoma, já conseguimos pôr um carro na autoestrada a guiar, a assumir praticamente todas as funções da condução. É óbvio que, do ponto de vista da certificação e dos regulamentos, o condutor não pode deixar de ser o dono do veículo, mas o veículo já está a controlar a maior parte das funcionalidades.

Do ponto de vista de passarmos para momentos em que o carro assume toda a responsabilidade, creio que isso vai acontecer primeiro usando vias dedicadas, onde se separa aquele que é o veículo autónomo do veículo conduzido pelo humano, de forma a separar a responsabilidade que existe na estrada. Portanto, vamos ver estratégias, primeiro, se calhar, em autoestrada com corredores específicos para veículos autónomos. Depois, em contexto de cidade, haverá zonas onde o carro tem a liberdade de se conduzir sozinho. Daqui a uma ou duas décadas, poderemos começar a ver a coexistência entre veículos conduzidos e não conduzidos. Mas, penso que ainda vamos ter algum tempo pela frente para conseguir chegar a esse ponto.

Qual será o maior desafio, convencer as pessoas?

Penso que não. O ser humano tem uma apetência natural pela inovação e pela descoberta das novidades. A questão está no risco e na gestão do risco que estas tecnologias implicam na vida das pessoas. Não podemos estar a colocar coisas na estrada que depois não se sabe muito bem como é que é gerida toda a questão da responsabilidade, no caso de haver um acidente ou uma fatalidade, como acontece quando um humano conduz, é preciso haver forma de alguém assumir a responsabilidade.

Será ao nível da burocracia, alterações na legislação, seguros?

Sim. Tudo isso terá aqui grandes desafios que terão de ser ultrapassados. A gestão dos seguros da condução, em que é preciso perceber, no caso de estar o carro a conduzir e de haver um acidente, como é que alguém tomará a responsabilidade.

No futuro, não podemos imputar a responsabilidade a quem estava sentado no carro porque não estava a conduzir e pensar que isso poderá vir a ser imputado ao fabricante do carro também é um desafio, é uma arquitetura difícil do ponto de vista da regulamentação.

Vai ter que existir uma arquitetura regulamentar que permita identificar em que condições é que o acidente aconteceu e depois, se calhar, havendo o respeito pela regulamentação e certificação alguém, no final do dia, ou entidade responsável pela segurança ou o Estado, enquanto garante máximo, terá que assumir em alguns casos essa mesma responsabilidade, porque tudo foi cumprido. É o contrabalanço entre o avanço tecnológico, que nos permite ter mais segurança e, se calhar, menos fatalidades na estrada, mas depois o haver uma fatalidade em que alguém tem que assumir essa mesma responsabilidade.

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