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Entrevista a virologista

Coronavírus é “mais transmissível” do que a gripe

03 fev, 2020 - 10:10 • Joana Bourgard , com Sofia Moreira (transcrição)

A virologista do Instituto Ricardo Jorge, o laboratório responsável por fazer as análises para despiste do vírus em cerca de cinco horas, diz à Renascença que a transmissão através de secreções respiratórias é a via mais frequente, mas que a transmissão por objetos também pode ocorrer. Raquel Guiomar, responsável Laboratório Nacional de Referência do Vírus da Gripe e outros Vírus Respiratórios, lembra que, numa superfície, os vírus não têm uma vida muito longa.

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Em entrevista à Renascença, a virologista Raquel Guiomar, responsável do Laboratório Nacional de Referência do Vírus da Gripe e outros Vírus Respiratórios, explica que uma infeção viral "não se trata com antibióticos" e não há um tratamento específico. "O que se faz é tratar toda a parte da sintomatologia e dar todo o suporte respiratório que seja necessário, para que a condição clínica do doente melhore", explica.


Este vírus é mais transmissível que outros do género?
Os valores que temos são ainda muito provisórios. Comparando com valores que são já bastante conhecidos, por exemplo, com os do vírus da gripe, a transmissibilidade deste novo coronavírus é um pouco mais elevada. A probabilidade de um caso gerar novos casos parece ser, nesta situação de epidemia, mais elevada. Os números ainda não estabilizaram e estão a crescer todos os dias. Só a investigação que está a ser feita, o acompanhamento da epidemia, poderá depois gerar os números mais verdadeiros.

Como é que este vírus se transmite?
A transmissão dos vírus é feita através de aerossóis e de gotículas de secreções respiratórias. Essa é a via mais frequente de transmissão destes agentes virais e também deste novo coronavírus. A transmissão por superfícies ou objetos infetados poderá ocorrer, mas é menos provável. Os vírus são sensíveis à secura, à humidade e à temperatura. Numa superfície, não têm uma vida muito longa.

Quais as medidas de higiene a tomar?
Uma das medidas de higiene que deve ser mais frequente é a lavagem das mãos e a etiqueta respiratória, exatamente porque a transmissão mais frequente é através de secreções respiratórias, aerossóis que se possam gerar ou gotículas. E, claro, evitar um contacto muito próximo se sabemos que estamos num ambiente onde se podem encontrar casos de infeção respiratória.

Ingerir produtos vindos da China representa um risco mais elevado de contaminação?

Penso que não. Os produtos alimentares são sujeitos a algum controlo. O que se recomenda é que todos os alimentos sejam bem cozinhados e que sejam mantidas as medidas de higiene para que não sejam contaminados por vírus ou bactérias. Relativamente à permanência do vírus em qualquer superfície, ou em qualquer objeto, esta é muito limitada no tempo e, por isso, essa não será a principal forma de transmissão deste agente respiratório.

O primeiro caso conhecido surgiu no início de dezembro, mas a primeira morte ocorreu só um mês depois. Este é um comportamento normal para estes vírus?
Estamos a falar de um vírus que foi identificado pela primeira vez nem há quatro semanas. Foi no dia 9 de janeiro que este foi declarado como uma epidemia de pneumonias. No fundo, foi detetado um número elevado de pneumonias, num grupo de pessoas que trabalhava ou que tinha frequentado um determinado local, num mercado. Este número de pneumonias, que tinham já este enquadramento epidemiológico, de associação a um local específico, foi publicamente divulgado no dia 31 de dezembro. O início da transmissão do vírus ao homem e o início da doença deverá ter ocorrido no início de dezembro. No fundo, tem um agravamento ao longo do tempo, mas não há uma regra que se pode generalizar. Além disso, o número de doentes não é assim tão grande ainda.

Nas últimas semanas, o que se tem registado e observado é que a epidemia ainda está em tendência crescente e a ter uma dispersão geográfica, principalmente na China e nos países da Ásia, em contínuo. É prematuro dizer se vai haver uma dispersão a nível global ou não. Nos países europeus, nos Estados Unidos e em outros países existem sistemas de vigilância e de deteção precoce dos casos. Estes sistemas estão já todos acionados e o objetivo é detetar precocemente os casos suspeitos, fazer o diagnóstico laboratorial e impedir que se inicie uma cadeia de transmissão pessoa a pessoa.

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O vírus manifesta-se, na forma mais grave, sob uma pneumonia. Por que é que isso acontece?

Os vírus respiratórios, especialmente os coronavírus, preferem um ambiente onde consigam multiplicar as células, como é o caso do trato respiratório superior, porque tem uma temperatura ótima para o vírus. No entanto, as nossas células do trato respiratório inferior também têm recetores aos quais este vírus se consegue ligar e, ao penetrar as células do trato respiratório inferior, poderá estar associado a uma infeção mais grave e que, clinicamente, se pode designar de uma pneumonia viral.

As pneumonias virais são mais mortais em pessoas que já tenham um historial clínico ligado a outros tipos de doenças?
Os casos mais graves e especificamente associados a este novo coronavírus têm sido verificados em pessoas que têm já alguma fragilidade ou alguma doença de base. No entanto, os dados sobre os indivíduos em que a doença se está a manifestar de forma mais grave são ainda relativamente recentes e que estão ainda a merecer investigação para conhecermos melhor a forma de apresentação da doença relacionada com este novo agente.

O que torna este novo coronavírus tão letal?

Há quatro coronavírus que, normalmente, causam infeções respiratórias no homem. Todos os invernos são detetados casos de infeção respiratória por esses agentes. Na história do coronavírus, foram já identificados outros novos coronavírus, nomeadamente, aquele que provocou a síndrome respiratória aguda, em 2002, e a síndrome respiratória do Médio Oriente, em 2012.

Neste momento, não podemos afirmar com toda a segurança que este é um vírus mais letal ou não, porque o que se tem visto é que há grupos em que, realmente, ele é a causa de uma doença mais severa. Tem-se falado das pneumonias virais e essa situação também está a ser observada com maior frequência num grupo muito específico de doentes, que são aqueles que já têm outro tipo de doença.

Sabe-se que a taxa de mortalidade deste novo coronavírus é de 3%. Comparando com outros vírus, esta taxa encontra-se abaixo do normal para uma gripe?
Este agente, o novo coronavírus, não é o agente de uma gripe. No fundo, ele causa uma infeção respiratória que tem alguns sintomas semelhantes à doença respiratória, que é causada pelo vírus da gripe.

Pensa-se que o animal transmissor deste vírus ao homem é o camelo dromedário e, nos casos que foram registados de infeção respiratória associada ao coronavírus do Médio Oriente, a taxa de mortalidade era de 30%. Comparativamente, este novo coronavírus que foi detetado em 2019, na China, tem valores abaixo daquilo que se observou em 2012. Ao acompanharmos a situação nas próximas semanas ou meses, é que conseguiremos então fazer uma figura completa da epidemia e comparar com os dados que já temos de outras situações semelhantes.

Comparando com esse vírus do Médio Oriente, este está a ter um comportamento semelhante, desde o início?
O coronavírus do Médio Oriente, que surgiu em 2012, esteve associado a surtos muito limitados. Não teve a transmissibilidade que se está a observar agora nesta epidemia. Neste aspeto é completamente diferente do novo coronavírus.

Já foi anunciada uma vacina para altura do verão, mas, até lá, como é que se tratam os vírus?
Uma infeção viral não se trata com antibióticos e não há um tratamento específico dirigido para este agente. O que se faz é tratar toda a parte da sintomatologia e dar todo o suporte respiratório que seja necessário, para que a condição clínica do doente melhore.

O Governo chinês afirmou que o vírus poderá ter surgido de um morcego, que o passou para outro animal, transmitindo-o para um ser humano. Os morcegos são animais que transportam este tipo de doenças frequentemente ou tratou-se de uma exceção?
Os coronavírus encontram-se em diversas espécies de animais. A maior diversidade tem sido encontrada em várias espécies de morcegos. Devido à elevada semelhança dos vírus que têm sido detetados nos casos confirmados, pensa-se que a transmissão ao homem terá estado associada a um período limitado no tempo e também a uma espécie animal. Não se sabe ainda qual.

A aquisição da capacidade de infetar o homem e, até, de se adaptar à espécie humana, está a permitir que este vírus esteja a ser transmitido pessoa a pessoa e que consiga penetrar nas células humanas. Esta multiplicação de células mantém estas cadeias de transmissão e é só desta forma que os vírus conseguem sobreviver.

Portanto, tratou-se de uma transmissão numa ocasião em concreto.

Sim, temos que juntar vários fatores. O animal tem que estar infetado, o vírus tem que estar competente para se gerar o ambiente de proximidade, o vírus tem que ter a capacidade de se ligar às células humanas e fazer aí a sua multiplicação e ainda ter a capacidade de se transmitir de um primeiro indivíduo infetado a outro.

Isto até pode ocorrer várias vezes seguidas, mas se a sequência for parada, nunca chega a causar esta dispersão a nível da população, ficando-se por situações muito pontuais. Tem que haver um grande número de fatores que se conjugam, para que a dispersão seja como a que está a ser observada agora. Contudo, ainda com a esperança de ser contida em algumas zonas do globo, claro.

Recentemente, circulou um vídeo nas várias redes sociais de uma mulher a comer uma sopa de morcego. Existiu, neste caso, perigo de transmissão?
Vi o vídeo, mas desconheço todos os fatores daquela situação. Esta transmissão do animal ao homem ocorre através de aerossóis e de secreções, ou através da manipulação dos animais quando estão a ser preparados. Todos os animais que poderão estar envolvidos eram também preparados para a alimentação daquela população. Portanto, a manipulação dos animais, com tudo o que isso envolve, pode também ser uma forma de transmissão. Apesar disso, o animal tem que ter o vírus, algures, em algum dos órgãos, para que possa haver transmissão. Nos alimentos, de forma geral, o que se aconselha é que tudo aquilo que se consome, nomeadamente a carne, seja bem cozinhada, para que se limite esta via de transmissão.

Os mercados chineses de animais vivos têm sido apontados como locais propícios à origem destes novos vírus. É algo que costumam estudar?

Existem, com certeza, grupos que se dedicam à vigilância de infeções virais na área da veterinária. Não conheço especificamente a situação nos mercados chineses, mas é desejável que haja vigilância a nível da exploração dos animais comercializados, ou não, mesmo os de origem selvagem.

Têm algum plano de intervenção estipulado no laboratório para os portugueses que chegam este domingo da China?
Não estamos envolvidos diretamente com todo esse processo que vai para além da missão do Instituto, que é realizar o diagnóstico laboratorial deste novo vírus. A certeza é que vamos estar atentos a qualquer solicitação e se necessário, de acordo com a melhor decisão dos clínicos que estão a acompanhar todos os viajantes com nacionalidade portuguesa que vão ser repatriados, iremos estar cá para cumprir a missão.

Como foi a receção da amostra do primeiro caso suspeito do vírus, no laboratório?
Trata-se de um processo que já está muito mecanizado. O Instituto Ricardo Jorge já tem alguma experiência aqui no laboratório de referência para o vírus da gripe e outros vírus respiratórios que coordeno. Estivemos envolvidos em situações de resposta a estes novos agentes respiratórios, não só à pandemia de 2009, mas também a outros coronavírus.

Posso dizer que tudo correu de uma forma bastante calma. Todos os intervenientes tinham já implementado as vias, desde o transporte do possível doente, até à recolha das amostras. Portanto, seguiu tudo aquilo que estava previsto, para que rapidamente o clínico e as autoridades de saúde tenham o resultado para poderem intervir, quer a nível do tratamento doente, mas também a nível da saúde pública e das medidas a implementar.

Os resultados do diagnóstico demoram cerca de cinco horas a chegar, correto?
Sim, o diagnóstico é feito em, aproximadamente, cinco horas. Nesta fase, em que as amostras vêm a um ritmo muito especial, os casos são detetados de forma muito individual e é isso que se quer: detetar precocemente qualquer caso que necessite investigação laboratorial.

Tivemos reuniões prévias e já tínhamos adaptado todo o procedimento laboratorial para a deteção específica deste novo coronavírus. Já existia documentação para que todo o plano fosse revisto e acompanhado conforme tinha sido estabelecido. Desde que o alerta foi dado, o sistema estava montado para um possível caso e foi acionar todos os mecanismos. Internamente, correu bastante bem.

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