31 jan, 2020
Não há "instinto maternal". As mulheres não são à partida melhores progenitores do que os pais. Se há instinto para ter e proteger filhos, esse instinto é partilhado por homens e mulheres, não é exclusivo das mulheres. Ou seja, o "instinto maternal" como algo específico das mulheres e alienígena para os homens é uma ideia que dá jeito a quem quer manter a sociedade de 2020 ancorada em 1950: mulher em casa a tratar dos filhos, prejudicando a sua carreira e os seus sonhos; o homem na rua, procurando os seus sonhos profissionais e entregando os filhos à mulher, à mãe, à criada, à tia, à vizinha, à sogra, à irmã.
Muitos homens adoram esta ideia, porque assim não têm de crescer, são adolescente eternos até aos 60; passam directamente da adolescência à velhice sem passarem pela idade madura. Muitas mulheres, por outro lado, também aceitam a ideia, porque, pelo menos assim, são líderes em alguma coisa, têm uma soberania garantida. Como não têm acesso ao topo do sucesso profissional e público, agarram-se ao mito da intrínseca superioridade moral da mulher no campo da educação dos filhos. Sucede que o amor não é monopólio de um género. Não se confunda biologia com moral. O útero não é o coração.
Não conhecem os estudos sobre as depressões pós-parto e sobre as depressões nas mulheres causadas pela infância dos filhos? Se existisse o tal "instinto maternal", essa alquimia mágica e exclusiva das mulheres, estas depressões não seriam uma dura realidade quotidiana e a maternidade seria gozada ao som de harpas celestiais. Sucede que os filhos não são querubins, e a maternidade não é uma harpa, é uma bateria gótica. E, já agora, não conhecem os números do infanticídio, única forma de violência doméstica e sentimental em que a mulher iguala ou supera o homem? Se não querem estudos, olhem para a literatura. Vou dar só alguns exemplos a partir do que li nos últimos tempos. Em “A Sangue Frio”, de Truman Capote, a mãe que acaba assassinada tinha uma depressão causada pelo tal trabalho doméstico - era a típica dona de casa desesperada. Não existe um "instinto maternal" para nos salvar da ansiedade gerada pelos filhos. Quem tem filhos tem cadilhos. Reparem também na mãe da Lenu da saga de Elena Ferrante. Aquela mãe é dominada pelo ressentimento que sente pela filha; Lenu é protegida pelo pai, não pela mãe. Em "Servidão Humana", Somerset Maugham mostra-nos uma paleta de personagens femininas que são tudo menos primores maternais; o fantasma do infanticídio paira como um fantasma. Reparem ainda nas duas memórias que estão a agitar a consciência de classe nos EUA: “Hillbilly Elegy”, de JD Vance, e “Heartland”, de Sarah Smarsh. Ambos relatam comunidades dominadas por mulheres ressentidas contra os próprios filhos. Querem continuar?
Também não existe instinto maternal na gravidez. Como salienta Gina Loeher na católica "First Things", a gravidez pode ser uma via sacra. Boa parte das mulheres odeia a gravidez em silêncio, sem protestar. É como se tivessem de sentir culpa pelo incómodo físico e moral causado pela nova vida que cresce no seu útero. Claro que o bebé não é um intruso que tem de ser expulso. É uma bênção, mas é uma bênção dura. Os filhos são sagrados desde a concepção, sim, mas isso não significa a adopção do discurso cor-de-rosa sobre os espinhos da gravidez. Este optimismo ilusório até é contrário à mensagem do Evangelho: a vida passa sempre pela cruz.
Criar filhos não é um instinto só de mulheres, é uma decisão moral de homens e mulheres. Não, não é um chip natural que se esconde nas mulheres e que se liga por artes artes mágicas quando ouve o choro da criança, como se fosse um robô de cozinha incrustado no adn feminino, um robô-babysitter que começa a fazer tudo sozinho. Este robô instintivo é um mito. "Cuidar bem dos filhos" é uma acção que não nasce num instinto fofinho e feminino. Nasce, aliás, no exacto oposto: nasce no amor, que é sempre uma decisão racional e não instintiva, e que é naturalmente uma decisão unissexo, tanto pode ser deles como delas. Ser mãe (ou pai) é aceitar um filho mesmo quando se sabe de antemão que não há alquimia instintiva que nos salve da angústia e do cansaço. Ser mãe (ou pai) é aceitar o filho mesmo quando se conhece de antemão o pesadelo da gravidez, a dor do parto, possibilidade da depressão pós-parto, o cansaço físico e mental gerado pela infância. Não é instinto, é amor e sacrifício - duas características que não são monopólio das mulheres.