28 jan, 2020
Mário Centeno “atira-nos” com 100 números em escassas 15 páginas de discurso na abertura da discussão do Orçamento de Estado para 2020 na especialidade. E digo “atira-nos” porque, esta segunda-feira, ficámos literalmente afogados em números, que o ministro avisou logo à partida que visavam retratar “o resultado do trabalho feito ao longo dos últimos anos”. O pior é que, como os números, ao contrário do mito, não falam por si, o ministro não cumpre a promessa. Os números que escolhe não seguem nenhuma lógica e frequentemente confundem mais do que esclarecem.
É um caso típico de “com a verdade me enganas”. Não acredito que Centeno minta num único dos 100 números. Mas percebo muito bem que, em tribunal, se prometa dizer “a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade”. No discurso de Centeno ou há dados a mais ou dados a menos. O período de comparação nunca é o mesmo. O indicador escolhido é frequentemente uma misturada (ou é líquido ou é bruto, ora nominal ora real, são taxas de crescimento ou variações entre elas ou, pelo contrário, são variações de montantes…). Da salganhada numérica sai um retrato que suspeitamos não ser certo, mas sem o conseguir provar.
Já vivi este filme, era Braga de Macedo ministro das Finanças e Manuel Pinho diretor-geral do Tesouro. O ministro chegou a dar aulas de economia aos jornalistas, até mesmo aos economistas, mas era fatal que saíssemos todos chumbados no exame. A ideia era provar que vivíamos num oásis em plena recessão. E o objetivo era sempre conseguido, sentíamo-nos todos perdidos em modelos que, pela sua validade inquestionável, nos faziam parecer uns pobres ignorantes. Pelo contrário, com Centeno na direção do Banco de Portugal, as suas análises da economia portuguesa eram aguardadas com entusiasmo, claríssimas, assertivas e tecnicamente incontestáveis, o que nos anos seguintes fez subir a nossa autoestima coletiva.
Daí o contraste, agora, com o Centeno ministro, que considera que chega “a ser triste” que os parlamentares não consigam distinguir entre impostos e contribuições para a Segurança Social – porque admitem que os impostos, mesmo o IRS que resulta de salários e remunerações, logo também da criação do bom emprego, só podem ser “maus”, e não querem ver que as contribuições para a segurança social, que resultam exatamente das mesmas variáveis, embora até o mau emprego desconte, resultando também das remunerações, não têm nada a ver com fiscalidade, até porque são “intrinsecamente boas”.
Onde irá já a política económica, inicialmente proposta pelo mesmo Mário Centeno, de alteração faseada da TSU? Digamos que tem agora uma desconfiança, pouco socialista, na bondade dos restantes impostos. Adiante.
Esse mesmo ministro faz agora um exercício curioso, em que cada indicador é vítima da própria unidade escolhida para o apresentar, do ano de referência utilizado, das variações ocorridas ou omitidas. Tudo seletivamente apresentado em função do que vai dando mais jeito. Resultado: o retrato traçado em 15 páginas é o de um país que vive literalmente num oásis e caminha a passos largos para o milagre económico. Se o fantasma do grande António Lopes Ribeiro aterrasse no Parlamento, talvez se ouvisse aquela frase do filme português "A Vizinha do Lado" que tão bem nos descrever: “Pode ser que seja verdade, mas desde já te digo que é falso.”
O ministro tanto compara taxas de crescimento e variações em pontos percentuais como aponta os valores absolutos. Não diz se a comparação é entre valores previstos ou executados, se se refere a médias ou a um ano concreto, mistura indicadores comuns de todos conhecidos com indicadores sofisticados só do conhecimento de alguns, líquidos e brutos, por exemplo.
Li o discurso antes de adormecer e diverti-me a pensar para cada um dos números (os tais 100!) o que perguntaria o juiz Carlos Alexandre, conhecido por ser um “picuinhas”, para perceber a verdade escondida em cada afirmação. Coisas do tipo: