24 jan, 2020
As palavras não são só palavras.
Quando chegamos ao Purgatório da “Divina Comédia”, há um pormenor que começa a fazer uma certa comichão teológica: estão ali almas que podem ser consideradas piores do que aquelas que permanecem fechadas no inferno; cometeram pecados mais sinistros. Então porque é que já subiram um nível até ao purgatório? Porque sabem usar as palavras certas; têm consciência do que fizeram e conseguem falar sobre si e sobre os seus pecados com uma certa distância, até com um certo humor. O livro não se chama "Divina Comédia" por acaso.
O que define a pessoa que está no inferno é a mais perfeita paralisia, uma stasis gélida. Nesse inferno gelado, não conseguimos usar palavras, só sentimos fluxos emocionais sem tradução verbal. Não saímos do mesmo sítio, porque andamos em circuito fechado ao sabor do remoinho dessas emoções primárias, como um cão atrás da própria cauda. Só interrompemos este circulo fechado quando descobrimos as palavras que nos dão a distância crítica e até irónica sobre nós mesmos. Saímos do inferno quando deixamos de sentir um mal indizível e impronunciável, quando nomeamos e pronunciamos esse mal. O mal deixa de ser uma forma obscura e sem nome que opera em nós, e passa a ser algo nomeado, pronunciado, atacado e até gozado. Podemos gozar com a nossa maior dor? Podemos e devemos.
Olhemos para dois pecadores hipotéticos. O primeiro, como Santo Agostinho, rouba apenas peras do pomar dos vizinhos. Parece inofensivo. O segundo rouba velhos e crianças, rouba lares e misericórdias. Parece horrível. Quem é o pior? A "Divina Comédia" diz-nos que a gravidade de um pecado não se decide durante a realização do mesmo. Se for incapaz de reflectir sobre o que faz, se continuar a orgulhar-se da sua impunidade, o tipo que rouba peras fica no inferno. Ao contrário, o vilão que roubava velhos e a misericórdia pode elevar-se acima do inferno se sentir culpa, se reflectir sobre o que fez. Ou seja, aquele que não se imagina como pecador não pode sair do inferno mesmo quando o seu pecado parece ser leve, aquele que se imagina como pecador já saiu do inferno mesmo quando o seu pecado parece ser pesado, porque já conquistou as palavras que permitem a nomeação do mal que cometeu e, acima de tudo, da luz que está à sua espera.
As palavras não são só palavras. Os ideólogos dos números e da objectividade tendem a desprezar as palavras, porque só vêem gráficos e matéria. No lado oposto, os pós-modernos tendem a ver nas palavras meros ornamentos estéticos. Os dois grupos não percebem que as palavras são as lentes morais sobre a realidade. As palavras, por exemplo, são a matéria-prima das epifanias, isto é, os momentos de revelação, os momentos em que identificamos com uma precisão assustadora o bem e o mal neste mundo. Sim, as epifanias não são feixes de luz e magia. São palavras. Querem um exemplo? No meu livro, “Alentejo Prometido”, percebi que muitas mulheres (no Alentejo e não só) nem sequer conheciam as palavras necessárias para denunciarem os abusos sexuais de que eram alvo. Como não conheciam as palavras “violação” ou “abuso”, acabavam por aceitar passivamente a violência sexual. Elas não sabiam que se podiam queixar. Eles não sabiam que tinham de sentir culpa.