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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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Nas urgências, quem não tem gato caça com cão

17 jan, 2020 • Opinião de Graça Franco


O que há de novo agora? Talvez nada, a não ser a confluência de uma série de coisas. Anos de sucessiva frustração e desinvestimento. A gota de água que já não escorre da parede e é aparada pelo balde, mas o balde que já não tem capacidade para aparar nem mais uma gota de água.

Urgências alagadas. Pessoal hospitalar a espalhar toalhas pelo chão, para apanhar as águas da chuva que entram na sala um pouco por todo o lado. Buracos vários: luzes que pingam, janelas mal calafetadas, chão encharcado. Lá fora, chove torrencialmente. É inverno. O edifício antigo acolhe doentes que se espalham em macas um pouco por todo o lado. Quase amontoados entre corredores e salas de espera estão doentes e acompanhantes. O espetáculo é simplesmente deprimente.

Ouço o relato de alguém que entrou em S. José pelo lado da cafetaria e vai dizendo que o nível das águas chega a atingir vários centímetros e vai descendo até à zona das urgências, onde o chão já apenas encharcado desfeia ainda mais o lúgubre ambiente circundante.

Parece, mas não estamos num país subdesenvolvido. Estamos no centro de Lisboa, uma das capitais da moda, num dos seus principais hospitais. Enquanto as televisões vão captando as imagens de degradação, típicas de um SNS caído em desgraça depois de oito anos de desinvestimento e austeridade, na Renascença debate-se o mais recente tema da atualidade: devem ou não agravar-se as penas para evitar a subida exponencial das agressões a médicos e enfermeiros por parte de doentes e acompanhantes?

Um simpático secretário de Estado, ex-médico no moderno e pouco usado hospital de Leiria, aceita discutir o tema com médicos da oposição e agentes do sector, incluindo a bastonária dos enfermeiros, conhecida pelo seu mau feitio. Assistindo-se, em simultâneo, às imagens da TV que mostram e acentuam (focando-se aqui e ali nos pormenores de degradação mais flagrantes) a penúria do serviço e a realidade com que se confrontam os utentes e, por outro lado, ouvindo a gravação do debate em estúdio - não se acredita.

Discutem-se dois países. Nas TVs, o quadro é de um Portugal tristemente subdesenvolvido. Em estúdio, ataca-se o problema como se vivêssemos na Suécia. Apetece recomendar a todos um pequeno estágio em zona hospitalar de urgência e internamento. Noites em claro, entre macas. Teme-se que ninguém tenha sequer lido uma das últimas crónicas de Dulce Maria Cardoso na sua passagem pelo país real das urgências.

Eu tenho experiência em excesso do sistema. Um uso recorrente e antigo suficiente para saber que a degradação não é de hoje, nem do atual Governo, ou do anterior, mas parece, ultimamente, ter entrado numa rampa deslizante da qual já não se vê o fim.

Santa Maria, anos 80, onde tudo parecia correr bem. Estefânia, anos a fio, com os pais a dormir em cadeiras ao lado de bebés em perigo de vida, onde o oxigénio que falta justifica a frustração de enfermeiros desesperados que não conseguem conter o choro contra a morte que os vence cedo demais (ainda era Maria de Belém ministra da Saúde). São João, no Porto, meados da primeira década do novo milénio, obras que já nessa altura se espalhavam pela envolvente, quando os administradores sofriam todo o tipo de pressões e os medicamentos “caros” eram substituídos por outros mais baratinhos, mas com efeitos muito mais demorados e colaterais diversos (escrevi na ocasião sobre isso, era Álvaro Santos Almeida, do PSD de Rio, o atento presidente da ERS). IPO, já no final da década, onde faltavam instalações e sobrava amor à camisola. Faro, em férias, anos a fio só com médicos de sotaque estranho. São José, Capuchos, Curry Cabral, mais recentemente. Experiência própria ou alheia, doente e acompanhante, mãe ou filha. Histórias clínicas complicadas, situações de “stress” extremo ou corriqueiras e complicações normais que, fatalmente, vão atingindo todos.

Anos de austeridade chocante e carências graves, anos de prosperidade e crescimento e outros de corte e austeridade desmedida, coisas que funcionam muito bem e outras que parecem milagres só porque continuam a existir e ninguém desiste.

O que há de novo agora? Talvez nada, a não ser a confluência de uma série de coisas. Anos de sucessiva frustração e desinvestimento. A gota de água que já não escorre da parede e é aparada pelo balde, mas o balde que já não tem capacidade para aparar nem mais uma gota de água.

Diz o secretário de Estado que talvez, antes, o nível de agressões não fosse afinal muito diferente. Mas temos este “aumento substancial a que se assiste”: dez agressões por mês, quase mil em nove meses de 2019.

Talvez os agredidos que, antes, resistiam a notificar cada ocorrência achem agora mais normal fazê-lo. Faz sentido. Podemos imaginar que, há uns anos, o diálogo podia ser assim: "Então levaste um ensaio de pancada de um doente e ainda te vais queixar do sucedido? E agora que os tempos mudaram: já apanhaste alguma sova hoje? Tenho aqui um impresso a mais para a notificação e vou entregar agora." É possível. Tudo é possível.

Diz o secretário de Estado que agravar as penas não serve de nada. Concordo. Gente que perde a cabeça não pensa na pena que lhe vão aplicar. Gente que se sente e vive em total impunidade não acha, sequer, que um dia lhe aplicarão uma pena.

Perante isto, percebe-se que os médicos, além de reivindicarem melhores salários, também queiram reclamar, já na greve marcada para dia 31 deste mês, um subsídio de penosidade pelo risco continuado de agressão. Ou seja, os médicos consideram-se, tal como os militares, que a sua “condição” exige uma compensação por risco de vida e disponibilidade permanente. Faz sentido. Não é o agravamento das penas que resolve este risco.

É preciso investir antes na prevenção, diz o governante. Todos de acordo. O pior é quando exemplifica, para que Centeno não comece logo a fazer contas de cabeça ao estilo “não há dinheiro”. Lacerda acrescenta “medidas simples”: bastam umas salas de espera com melhor especto, com televisões, umas revistas, mais literacia e - porque não? - umas “refeições ligeiras”. O investimento sugerido resume-se a umas pintadelas e uma questão de “catering”. Mais “friendly?” resume a Marina Pimentel. Chá e bolos, Resumiria eu. Não. Não chega.

Parece-me estar a ouvir um consultor sueco a dar conselhos a um administrador hospitalar colombiano. Vamos discutir a cor das paredes que mais reduz a tensão, o tipo de sofás a instalar, os jogos que podemos distribuir entre triagens, o número de voluntários a mobilizar para os doentes desacompanhados, os psicólogos a distribuir pelas salas onde os desfechos dos casos podem ser mais problemáticos.

António Lacerda parece vir de Marte. É importante que alguém lhe explique que investir na prevenção é, sobretudo, reduzir os tempos de atendimento, informar em tempo real sobre o que se passa para lá das portas que se fecham no nariz de doentes e acompanhantes, providenciar informação contínua, verdadeira, repetir triagens, respeitar a dignidade dos doentes, proporcionando-lhes o mínimo bem estar; refeições a tempo e próprias, agasalhos, cuidados de higiene mínimos, acompanhamento e reavaliação da situação clínica de entrada, tempo de descanso para alimentação e higiene do acompanhante.

Isto para já não falar no investimento transversal a fazer na educação cívica de um povo cada vez mais infantilizado, a quem tudo se permite e que cada vez mais se arroga o direito de desrespeitar o outro, sem nenhuma capacidade de resiliência à frustração.

Ter paciência, aguardar a sua vez, ser ultrapassado por quem mais precisa, mesmo que isso custe, são hoje conceitos desconhecidos porque há um problema óbvio, que também é importante prevenir, mas de que não se pode nem falar. Nem todos os utentes constituem perigo eminente de agressão, mas nas urgências hospitalares há grupos de utentes, facilmente identificáveis, que constituem verdadeiras ameaças coletivas, numa espécie de “gangs” organizados para violar todas as normas de civilidade.

Mas, comparado e abusando da rima de Sophia, gente que intimida de formas óbvias (em que até entram e mostram as navalhas) e “ por outras maneiras que sabemos, tão sábias tão subtis e tão peritas, que não podem sequer ser bem descritas”.

E se não há dinheiro para investir a sério? Então, a solução não passa por agravar as penas. Mas é prudente contratar mais médicos e é imperioso que se contratem também mais alguns polícias. Quem não tem dinheiro para prevenir, resta-lhe reagir. Quem não pode ter gato, caça com cão.

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  • Cidadao
    19 jan, 2020 Lisboa 15:12
    Podem dar as voltas à questão, que quiserem, mas chegamos sempre ao mesmo ponto: é preciso não só diminuir drasticamente o tempo de espera para ser atendido, como também é preciso alterar a lei permissiva que existe, assim como aumentar a segurança efetiva, leia-se policias nos hospitais e não só. Isto para já, porque a longo prazo talvez começar pouco a pouco a acabar com a ideia da impunidade, fazendo com que os prevaricadores saibam que não vão sair pela porta grande sem que lhes aconteça nada. O problema é que isto custa dinheiro e isso significa menos transferências para a Banca, e menos "números bons" para apresentar em Bruxelas...