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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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​Trump lançou o petróleo na fogueira

10 jan, 2020 • Opinião de Graça Franco


Ainda vamos na primeira quinzena do ano e já estamos perante a ameaça de uma nova guerra. Não daquelas guerrilhas comerciais ao estilo da que está em marcha com a China ou da que significa a deserção de países poluidores do combate climático. É pior.

A economia europeia está a abrandar, com destaque para a Alemanha mergulhada na indecisão sobre o que espera do futuro da sua poderosa indústria de transportes. O Brexit está aí e embora tenha cedido as manchetes aos incêndios da Austrália, às várias tempestades e às desgraças da época o senhor Trump, a braços com um processo de eventual destituição, e a poucos meses da desejada luta pela reeleição, resolveu lançar gasolina para a fogueira de incertezas em que o mundo já estava envolvido. Resultado: 2020 começou bem pior do que se previa.

Ainda vamos na primeira quinzena e já estamos perante a ameaça de uma nova guerra. Não daquelas guerrilhas comerciais ao estilo da que está em marcha com a China ou da que significa a deserção de países poluidores do combate climático. É pior. Trump sem consultar aliados, nem dar ouvidos aos próprios conselheiros (pelo menos aos mais prudentes e experientes generais), decidiu fazer um ataque seletivo em solo estrangeiro e eliminar um dos seus inimigos. Aliás, um ex-amigo americano de longa data, recém incluído na lista negra. Nada mais nada menos que o general iraniano Soleimani que estava a ser crescentemente contestado no seu próprio país e além de passar a mártir, rapidamente passou a herói nacional.

Talvez o mundo compreendesse melhor este ato ao estilo “israelita” efetuado a “drone” em território terceiro, não fora, o número dois do regime iraniano, ser simultaneamente o estratega das milícias xiitas na zona.

Por outro lado, entre as exigências impostas a Israel e aos USA há algumas diferenças: abater o inimigo quando este sai do aeroporto de Bagdad em visita a um país com o qual se coopera e ao estilo de turista é um ato à revelia de todo o direito internacional e pode mesmo ser visto como uma espécie de “declaração de guerra “, que não interessa a ninguém. Nem ao Irão, cujo potencial militar não chega para desafiar os Estados Unidos, nem aos aliados e menos ainda aos próprios Estados Unidos e à sua estratégia de redução de presença militar na zona. Soma-se o ridículo de o próprio Trump em 2016 acusar Obama de falta de sentido de estado e eleitoralismo quando este ameaçava levar a cabo uma manobra de diversão do mesmo tipo.

O único líder que não se sentiu traído pela ação de Trump foi o nosso compreensivo Presidente da República ao afirmar que “aliados não deixam de ser aliados mesmo quando praticam atos isolados”. Acho que omitiu o qualificativo de “desastrados” para que a referência não se tornasse demasiado óbvia num encontro com o corpo diplomático.

Os restantes governantes recomendaram apenas bom senso às partes envolvidas, evitando escaladas que pudessem desencadear uma catástrofe global. Imaginemos como se estará a sentir o Presidente canadiano que na sequência do “incidente” viu, a confirmarem-se todas as atuais suspeitas, 67 nacionais abatidos por “engano” quando abandonavam o aeroporto de Teerão poucas horas depois do decorrer de uma ação de retaliação contra as bases americanas no Iraque.

A morte do general responsável por milhares de outras mortes em ações tão polémicas como cruéis não criaria uma lágrima de comoção fora do seu próprio regime, mas o seu desaparecimento acabou com a morte de mais de meia centena de apoiantes em delírio no próprio funeral e gerou manifestações de multidões em fúria a pedir vingança contra a América.

Ou seja, além do embaraço causado a todas as forças que integram a coligação (onde Portugal se inclui e tem soldados no terreno dando literalmente o corpo às balas…) Trump conseguiu o dano colateral de acabar com a contestação interna ao regime de Ali Khamenei.

A escalada não terminou. A reclamação de vingança continua. Muitas guerras tem o seu “arquiduque”, e a memória do assassinato de Francisco Fernando da Áustria, que deu origem à guerra de 14/18 veio, esta semana, demasiadas vezes à memória dos historiadores.

Só por milagre o “pingue-pongue” das retaliações ficarão por aqui e um grande atentado, mesmo que leve alguns meses a preparar, pode garantir o caos durante uma década.

Até agora esse não é o cenário mais provável, mas a desastrada gestão da crise por parte dos Estados Unidos, à falta de melhor informação ainda não eliminou o risco.

Primeiro, foi a fuga de informação da carta onde altos dirigentes militares ordenavam a preparação da retirada imediata das tropas americanas no Iraque para evitar que se tornassem alvo das expectáveis ações de retaliação do regime de Teerão. A carta uma vez conhecida acabou transformada num rascunho sem valor e apenas existente para o caso de agravamento da situação… e para dar crédito à versão, em vez da retirada anunciaram-se reforços.

Na mesma linha, Trump no dia a seguir ao ataque fez um discurso estranhamente apaziguador, mas a verdade é que as milícias terroristas agora órfãs podem muito bem sair do controle. No fundo são movimentos inorgânicos que tem nas mãos material, tão ou mais perigoso, do que os Estados envolvidos e ainda menor literacia para a sua utilização.

Antes Trump não conseguiu sequer evitar a fanfarronice acéfala ameaçando agravar um crime de guerra com outros crimes de guerra declarando-se preparado para destruir, no Irão, 52 alvos especificando que alguns dos quais seriam de incalculável valor cultural, classificados como património da humanidade. A gabarolice acabou em mais um desmentido. Afinal os Estados Unidos limitar-se-iam sempre a alvos militares, mas quando estas coisas passam pela cabeça de alguém mostram como a possibilidade de erro não tem limite e pode surgir a qualquer momento por vezes sem remédio.

Ataques de nervos e picos de stress nesta zona do globo são particularmente perigosos. O ataque aos petroleiros noruegueses no estreito de Ormuz (imputados justa ou injustamente a milícias iranianas são bom exemplo de incidentes capazes de cortar a respiração e fazer tremer os mercados).

Até agora era certo que 2020 seria um ano de relativo abrandamento económico. A guerra comercial China /USA não está totalmente ultrapassada; faltam umas poucas semanas para o Brexit passar à prática sem que ninguém saiba exatamente o que isso vai significar nas bolsas ou no valor da libra e do próprio euro. O petróleo que em 2018 andava pelos 70 dólares retirando algumas décimas ao crescimento mundial (pelo menos três segundo os últimos estudos do FMI) pode voltar a disparar. Isto, no exato momento em que se previa a sua queda para pouco mais de 55 dólares o barril de brent. Por cá o Orçamente prevê 58 dólares (menos 13 do que a média de há dois anos).

Se, de repente à queda da procura energética se somar a escassez da oferta a combinação sobre o crescimento económico pode transformar o abrandamento em estagnação.

Portugal como a Espanha são importadores líquidos o que significa que os nossos vizinhos também sofrerão as mesmas consequências e sendo o nosso maior mercado de exportação a procura das nossas exportações cairá por arrasto.

O retorno ao défice externo é para já o único contraponto às finanças em ordem prometidas pelo atual Governo. Mais investimento implica normalmente uma maior deterioração da nossa capacidade de financiamento da economia porque o conteúdo importado dos bens de investimento é ainda maior do que o dos bens de consumo e não são substituíveis por produção interna.

No Iraque e no Irão está concentrada 9% da produção total de petróleo. Se somarmos a Arábia Saudita, o Kuwait e os Emirados teremos qualquer coisa como um quinto da produção vulnerável a qualquer instabilidade nos países árabes. Não havia necessidade de lançar o petróleo na fogueira. Bem basta termos a Austrália literalmente em chamas para o ano começar mal, muito mal.

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