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"The Two Popes". Onde acaba a realidade e começa a ficção?

29 dez, 2019 - 16:45 • Inês Rocha

O filme da Netflix começa com a expressão “inspirado em eventos reais”, mas envolve um grande número de eventos que nunca aconteceram. Dos dois Papas a comer pizza ao passado controverso de Bergoglio: o que é realidade ou ficção no "The Two Popes"?

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"Os Dois Papas”. O filme da Netflix sobre Francisco e Bento XVI já é apontado aos óscares
"Os Dois Papas”. O filme da Netflix sobre Francisco e Bento XVI já é apontado aos óscares

O filme "The Two Popes" ("Dois Papas", em português), que explora os meses que antecederam a resignação do Papa Bento XVI e a relação com o então cardeal Jorge Mario Bergoglio, que viria a ser eleito Papa em 2013, estreou na Netflix, no dia 20 de dezembro.

Inspirado em eventos reais, o filme mistura eventos históricos com ficção e tem causado muitas discussões acerca de onde acaba a realidade e começa a imaginação do argumentista. Dissecamos o filme e fomos aos recortes da história recente da Igreja Católica para "separar as águas".

Se não viu o filme, o melhor é não se aventurar já neste artigo, que contém spoilers. E não são poucos. Bastantes.


O Cardeal Bergoglio disputou o conclave de 2005 com Ratzinger?


Sim, o cardeal Bergoglio foi o maior "rival" de Ratzinger na terceira votação do conclave de 2005. O cardeal alemão estava a cinco votos de atingir a maioria de 77 necessária; Bergoglio recebeu 40 votos nesta votação.

Mas o cardeal argentino acabou por incentivar outros a apoiar Ratzinger, assegurando a sua eleição.



Jorge Bergoglio e Bento XVI encontraram-se para discutir a reforma de Bergoglio?


No filme, o Cardeal Bergoglio, ao aproximar-se dos 75 anos de idade, encontra-se com o Papa Bento XVI na sua residência de Verão, em Castel Gandolfo, no outono de 2012.

No filme, Bergoglio quer resignar em protesto contra o conservadorismo com que Bento XVI está a conduzir a igreja. Mas Ratzinger, para prevenir um escândalo, recusa.

Este encontro não aconteceu na realidade. Os dois Papas encontraram-se em Castel Gandolfo, mas só quando Bergoglio já era Papa.

Isto não significa que eles nunca se tenham encontrado no Vaticano antes da resignação do Papa Bento XVI. Provavelmente conversaram quando os bispos argentinos faziam a sua visita “ad limina” - uma obrigação dos bispos diocesanos e outros prelados da Igreja Católica, de a cada cinco anos se encontrarem com o Papa, ao visitar os túmulos dos apóstolos São Pedro e São Paulo, em Roma.

Ao jornal norte-americano USA Today, Fernando Meirelles garantiu que “os dois Papas encontraram-se realmente três vezes antes de o Papa Francisco ser eleito”.

Sobre a vontade de Bergoglio de se reformar, fontes próximas do cardeal dizem que fazia intenções de apresentar a sua renúncia e, quando esta fosse aceite, de dedicar-se a uma paróquia e à oração.


Os Papas realmente partilharam pizza e Fanta?


Provavelmente não. Em declarações ao USA Today, o realizador Fernando Meirelles afirmou que “a Fanta é real”, referindo-se ao gosto documentado do Papa Bento XVI pelo refrigerante. Bento XVI bebia pelo menos quatro latas por dia, incluindo ao jantar.

Mas a pizza “foi invenção minha”, diz Meirelles.


Porque é que Bergoglio assobia uma canção dos ABBA?


A cena em que o cardeal Jorge Bergoglio assobia a canção “Dancing Queen”, dos ABBA, numa casa de banho do Vaticano - tal como aquela em que a canção toca enquanto os cardeais votam, em 2005, na Capela Sistina, para escolher um novo Papa - é “uma piada que ninguém percebe”, diz o realizador.

“A letra, nesse ponto da canção, diz ‘Sexta-feira à noite e as luzes estão baixas. Vens à procura de um rei / Qualquer pessoa podia ser esse alguém”, enquanto os cardeais estão a andar".

“Queríamos algo popular; Bergoglio estaria a assobiar algo popular. Provavelmente o Papa Bento XVI, que é um fã de música clássica, nem sabe quem são os ABBA”, explicou o realizador.

Os Papas alguma vez viram futebol juntos?


“Parece que o Papa Bento não gosta de futebol; gosta de Fórmula 1”, diz Meirelles. “Seria uma boa oportunidade, mas nós inventámos essa parte”, admite.

Na verdade, o Vaticano chegou mesmo a publicar uma declaração em 2014 que dizia que os dois pontífices não iriam ver a final do Campeonato do Mundo juntos, quando as seleções dos seus países se iam enfrentar.

Então, o que é real?


Apesar de todos os elementos ficcionais, o realizador garante que a substância dos debates entre os dois papas é real.

“Todos os diálogos são retirados de discursos, entrevistas ou daquilo que escreveram”, diz Fernando Meirelles. “O que eles dizem no filme é algo que disseram em algum momento das suas vidas”.

Também as cenas de “flashback” acerca do passado de Jorge Bergoglio são consistentes com os relatos existentes sobre a juventude do atual Papa.

Bergoglio enfrentou grandes dificuldades durante o tempo em que foi feito provincial dos Jesuítas argentinos, quando estava na faixa dos 30 anos.

De acordo com a Associated Press, os missionários jesuítas Francisco Jalics e Orlando Yorio, que estavam envolvidos na oposição à ditadura, foram raptados em 1976.

Jorge Mario Bergoglio procurava conseguir a neutralidade política da Companhia de Jesus e proteger os seus elementos. Yorio chegou a acusar Bergoglio de os entregar aos esquadrões da morte ao recusar-se a apoiar o seu trabalho publicamente.

De facto, Bergoglio chegou a reconciliar-se com o Padre Jalics e celebraram missa juntos, tal como o filme mostra. O cardeal, na época, tentou realmente salvar os dois jesuítas quando estavam a ser torturados pelo regime, sem sucesso.


Porque é que a confissão de Bento XVI foi silenciada?


Alguns críticos expressaram frustração pela forma limitada como o “The Two Popes” trata a questão da responsabilidade de Bento XVI acerca da pedofilia na Igreja Católica.

Num momento-chave do filme, o diálogo durante a confissão ficcional do Papa ao cardeal Bergoglio é silenciado. O volume da voz do Papa Bento XVI diminui, tornado-se impercetível aquilo que ele diz depois de admitir ter tido conhecimento de um padre culpado. O tema da pedofilia termina aí, nessa cena.

“Tínhamos mais diálogo, tínhamos mais dois parágrafos”, explica Meirelles. “Mas tenho a sensação de que se fôssemos muito longe no tópico do abuso de crianças, o filme tornar-se-ia um filme sobre isso, porque o problema é tão forte. E o filme não é sobre a Igreja e os seus erros. Decidimos mencioná-lo mas não focar demasiado nisso. É um filme sobre o Papa Francisco, não sobre os problemas da Igreja”.

É verdade que o Papa Bento XVI negligenciou o caso do padre Marcial Maciel?


Apesar de o momento-chave da confissão ter sido silenciado, o filme dá a entender que Bento XVI se confessa ao cardeal Bergoglio por ter negligenciado o caso do padre Marcial Maciel - o padre fundador dos Legionários de Cristo, hoje acusado de abusar de mais de 60 crianças e de lavagem de dinheiro.

No entanto, o papel de Ratzinger neste caso é diferente daquilo que está implícito no filme. Na qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o então cardeal Ratzinger iniciou uma investigação canónica contra ele, em 2004 e esforçou-se por removê-lo do ministério; foi João Paulo II quem resistiu.

Como Papa, Bento XVI levou o Vaticano a reconhecer, pela primeira vez, os crimes de Maciel, em 2006, e ordenou que se retirasse, condenando-o a “uma vida de oração e penitência”.

Na Igreja, Bento XVI é reconhecido por ter mudado algumas práticas neste capítulo: tornou possível remover padres que abusassem de crianças e seminaristas e recomendou a colaboração com as autoridades.

Após a interrupção, a cena da confissão termina com o Papa Bento XVI a dizer que "não prestou atenção suficiente aos deveres atribuídos a este padre" e que lhe chegaram "provas à secretária". Esta frase parece referir-se ao caso divulgado pelo New York Times, em 2010. Nesse ano, o jornal norte-americano revelou documentos que comprometiam a forma como Ratzinger, como Arcebispo de Munique, lidou com casos de abusos. Os documentos indiciavam que Ratzinger saberia de casos de padres transferidos por terem abusado de menores e não agiu.

O Vaticano desmentiu que Bento XVI soubesse destes casos e apelidou as acusações de “especulação”.


É verdade que Bergoglio não concordou com a decisão de Bento XVI de resignar?


Esta “consulta” provavelmente nunca terá acontecido.

É altamente improvável que Bento XVI tenha discutido com Bergoglio a sua resignação, já que o cardeal não fazia parte da Cúria nem era do círculo próximo de Ratzinger. Esta terá sido uma opção do argumentista para mostrar as diferentes visões da Igreja e acrescentar algum “drama” ao guião.

Segundo o vaticanista irlandês Gerard O’Connel, Bento XVI tomou a decisão sozinho e disse-o apenas ao seu secretário, Georg Gänswein, ao seu irmão, o padre Georg Ratzinger, e ao cardeal Angelo Sodano, Decano do Colégio dos Cardeais.


Os Papas alguma vez dançaram o tango juntos?


“Acho que não”, disse o realizador ao USA Today, entre risos.

“O guião foi um bocado difícil de escrever porque são dois homens a falar de religião - não muito excitante. Por isso foi um grande desafio torná-lo envolvente. Mas sempre que eu lia essa cena dizia ‘não vai resultar, é demasiado ridículo’. Acabámos por gravar de qualquer forma, mas eu tinha a certeza que a ia cortar. Mas Pryce e Hopkins conseguiram que resultasse, tornaram-na emocional. Fiquei surpreendido”.


O Papa ligou a Bento XVI antes do seu anúncio como novo Papa?


Os jornalistas Peter Seewald e Gerard O’Connell afirmam que isto aconteceu realmente.

Os dois Papas falaram antes de o anúncio formal ser feito, apesar da demora do pessoal que acompanhava Bento XVI em atender o telefone.

O Papa emérito terá ficado muito tocado pelo gesto do novo Papa.

Comentários
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  • João Lopes
    31 dez, 2019 10:19
    Um filme superficial, algo ingénuo e malévolo ao mesmo tempo?

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