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​Eleições britânicas. “Nada deve mudar no Mercado Único até 2022”, diz Teixeira Fernandes

12 dez, 2019 - 19:09 • José Bastos

“Uma grande economia como o Reino Unido não pode negociar acordo comercial em 11 meses. Canadá e Japão demoraram quatro a cinco anos”, defende o especialista em geoestratégia.

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“As eleições mais importantes dos últimos tempos” porque “o futuro está em jogo”. Mensagens deste tipo inundam as imediações de várias mesas de voto nesta quinta-feira de eleições. Mas os mais cínicos não lembram que os alertas eram os mesmos nas legislativas de 2017, o referendo ao Brexit em 2016 ou até a consulta sobre a independência da Escócia em 2014.

Mas se dois em cada três britânicos dizem que o Brexit é o tema fundamental das eleições então é porque o é.

Se o Partido Conservador obtém a maioria absoluta, a saída do Reino Unido com um acordo com Bruxelas antes de 31 de janeiro será um dado objetivo. Se ganha Corbyn, o líder trabalhista pretende renegociar com Bruxelas e convocar novo referendo que pode acabar por anular todo o processo.

Mas, com uma vitória de Boris Johnson, depois do Brexit com acordo chegará o período de transição, durante o qual Bruxelas e Londres terão de acordar os termos da sua futura relação, mas para além do acordo comercial com a União Europeia virá o momento de negociar unilateralmente acordos comerciais com outras potências como os Estados Unidos, Japão ou China. Ou ainda decidir o futuro do NHS, o serviço nacional de saúde ou da Escócia. Agora que o Reino Unido pode acabar por se desvincular da União Europeia, as possibilidades de rutura com a Escócia voltam a estar sobre a mesa. Nicola Sturgeon, a líder escocesa já anunciou que antes do Natal vai escrever ao primeiro-ministro reclamando as competências necessárias para promover novo referendo secessionista.

“Se Johnson ganhar teremos uma saída formal em 31 de janeiro ou um pouco antes. Depois há o período transitório negociado até ao final de 2020 e aí a situação manter-se-á na essência na mesma: com a continuidade do Reino Unido na União Aduaneira e no Mercado Único”, defende José Pedro Teixeira Fernandes, professor universitário nas áreas das Relações Internacionais e Estudos Europeus, especialista em geoestratégia e autor do livro “Europa em crise”, da Quidnovi.

“Seria realmente inédito que uma grande economia como é o Reino Unido conseguisse num espaço de 11 meses negociar um acordo comercial abrangente e seguramente complexo como é o acordo com a União Europeia. Casos como o do Japão, o do Canadá demoraram anos a negociar com Bruxelas”, sublinha José Pedro Teixeira Fernandes, investigador do instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

Com as sondagens a apontar para a vitória dos conservadores o que devem os investidores e empresários no Reino Unido e na Europa esperar depois das eleições desta quinta-feira? Afinal, a Europa exporta para o Reino Unido o dobro do que exporta para a China...

Uma clara vitória dos conservadores será sempre uma maioria absoluta confortável dos conservadores, porque, pelas sondagens, já se percebeu que a diferença é muito significativa entre conservadores e trabalhistas a ponto de se inverter a hierarquia, a ponto do Partido Trabalhista poder ter aqui alguma hipótese de vitória.

Mas num cenário como este a questão chave das eleições de hoje é mesmo a de obter uma maioria parlamentar, ou seja mais de 50% dos deputados e preferencialmente uma maioria expressiva. Como todo o historial do Brexit tem mostrado são questões complexas em todo este processo de abandono da União Europeia, suscetíveis de induzir divisões nos partidos e, portanto, uma margem pequena de votos é sempre delicada.

Admitindo que o Partido Conservador consiga essa vitória com uma maioria absoluta razoavelmente confortável o partido fica numa posição de condução clara de todo o processo político do Brexit. Se assim for parece claro que a saída da União Europeia - prevista até finais de janeiro do próximo ano se irá concretizar, mas essa é apenas a primeira parte desse processo e seguramente a parte mais fácil. Se realmente vencer Boris Johnson terá facilidade, tudo o indica, em conseguir fazer aprovar a legislação para o Brexit e teremos uma saída formal em 31 de janeiro ou um pouco antes. Depois há o período transitório negociado até ao final de 2020 e aí a situação manter-se-á na essência na mesma: com a continuidade do Reino Unido na União Aduaneira e no Mercado Único.

Já lá vamos. Mas ainda do ponto de vista político a única alternativa à falta de uma maioria conservadora parece ser um Partido Trabalhista aquém da maioria e dependente dos outros partidos - numa espécie de geringonça. A ser assim, esse governo existiria apenas para o Brexit e um acordo comercial idêntico ao da Noruega?

É teoricamente possível ocorrer um cenário sem uma maioria absoluta dos conservadores - as sondagens também não o excluem totalmente - e existir uma possibilidade, conjugando os deputados do Partido Trabalhista, mas também do Partido Nacional Escocês e dos liberais democratas, de existir uma maioria que nesse caso apoiaria Jeremy Corbyn como primeiro-ministro.

Mas se é possível em teoria e poderia permitir o afastamento de Boris Johnson e dos conservadores do poder já não antecipo como nada fácil um entendimento entre estes três partidos para conferir alguma estabilidade governativa a uma solução desse tipo. Com outro líder nos trabalhistas que não Jeremy Corbyn, eventualmente esse entendimento até seria mais fácil, mas com Corbyn tudo se torna muito difícil. O próprio Partido Trabalhista está extraordinariamente dividido.

O foco não tem estado tanto nos trabalhistas por questões óbvias, estão na oposição e não no poder, e é natural que quem esteja no poder seja o alvo das atenções da opinião pública por ser quem tem de tomar as decisões, mas percebe-se que o sector trabalhista a apoiar Corbyn é, de um modo geral, o sector mais céptico quanto à União Europeia e até nem vê como muito problemática uma saída, embora não na 'versão Boris Johnson' e há outra parte do Partido Trabalhista mais ao centro que pretender permanecer na União Europeia e apresenta resistências a uma liderança do tipo Corbyn.

Se considerados os Liberais Democratas como o partido mais europeísta do Reino Unido - e, abertamente, com um programa para reverter o Brexit para permanecer na União Europeia - esse cenário ainda se complica mais. Por outro lado, embora possa haver aqui alguma convergência com os nacionalistas escoceses no sentido da permanência na União Europeia, o Partido Nacionalistas Escocês tem uma agenda própria e o que pretende é um segundo referendo - o que não será assim tão facilmente aceite por todo o eleitorado trabalhista.

Então um Governo minoritário trabalhista parece um cenário improvável. Regressando ao quadro de análise anterior, fez uma alusão ao acordo de outubro que estipula um período de transição até ao final de 2020 - com possível prorrogação por mais dois anos - e no manifesto eleitoral Boris Johnson compromete-se a não estender esse período além de dezembro de 2020.

Assim, Boris Johnson promete negociar em 12 meses, mas nunca nenhuma grande economia obteve qualquer acordo comercial em menos de quatro ou cinco anos - exemplos recentes do Canadá com UE.

Já vimos Boris Johnson a garantir que "preferia morrer numa valeta" do que não deixar a UE a 31 de outubro e até o Financial Times escrevia que do ponto de vista económico é bom que "a carreira de Johnson se baseie na hipocrisia casual". É isto?

Provavelmente é mesmo isso. Seria realmente inédito que uma grande economia como é o Reino Unido conseguisse num espaço de 11 meses negociar um acordo comercial abrangente e seguramente complexo como é o acordo com a União Europeia. Casos como o do Japão, o do Canadá demoraram anos a negociar com Bruxelas. Só para se ter uma ideia do que estamos a falar demorou 4 meses só a parte de finalizar o texto com o detalhe jurídico - no caso do acordo com Canadá - que fez traduções nas 24 línguas.

Ainda se pode considerar que é uma parte à posteriori depois da negociação política, mas são muitos os sectores que ainda há para negociar. São acordos abrangentes de comércio, são acordos que envolvem as questões regulamentares, o investimento, áreas onde há capítulos e sectores sempre potencialmente complexos e de se chegar a entendimento, portanto parece-me muito improvável para não dizer impossível um acordo fechado até dezembro de 2020.

Arriscar uma crise financeira durante o primeiro ano no cargo seria politicamente suicida para Boris Johnson e no seu interesse económico está ampliar o período de transição muito provavelmente até aproveitando os três anos que, no limite, o acordo com Bruxelas permite?

Muito provavelmente. As afirmações de Boris Johnson são produzidas a pensar apenas na meta atual para conseguir uma maioria absoluta de deputados e chegar ao poder. Imagino que nele próprio, e nos conselheiros, haja a perceção de que é irrealista negociar assim. Claro que é politicamente conveniente dizer ao eleitorado que o Brexit será mesmo concretizado a curto prazo e que não haverá adiamentos, mas já vimos que havia prometido não haver atrasos no quadro anterior e houve adiamentos.

Agora o que Boris Johnson poderá sempre dizer que o último adiamento não foi da sua responsabilidade e provavelmente é o que voltará a fazer com o andamento da negociação encontrará aí uma saída política para justificar depois o alargamento do prazo. Mas seguramente o prazo será alargado por um ou dois anos porque não me parece nada provável esse acordo num limite temporal mais curto. Ou então, em alternativa, estaria a saída sem acordo o que seria muito mau e não é uma opção que esteja sobre a mesa.

É então legítimo concluir que as relações entre o Reino Unido e a União Europeia ficarão, no essencial, na mesma durante um largo período de tempo independentemente das eleições de hoje?

Provavelmente é isso que vai ocorrer. Claro que temos sempre que contar com o fator incerteza das urnas, mas se confirmado o cenário de uma maioria absoluta dos conservadores, um governo liderado por Boris Johnson com maioria estável no parlamento e com este processo negocial teremos, provavelmente, a mesma situação durante dois a três anos, o tal período transitório alargado a funcionar dessa maneira.

Não antevejo sequer a possibilidade de na prática se poder fazer esse acordo comercial em menos tempo dada a complexidade dos temas em discussão. Outra coisa é o discurso político que aponta em sentido contrário.

Por último, olhando para o que se passou na campanha e até para a possibilidade - remota é certo - mas teórica de líderes como Johnson, Corbyn, Swinson ou até Sturgeon não serem eleitos e eleitas nos seus círculos, depois da simplificação Brexit sim/não, esta campanha também foi excessivamente personalizada, binária e negativa o que não é saudável para a democracia britânica?

Esse é um lado negativo. Observando alguns aspetos da campanha vê-se ter sido muito negativa e não tentando apostar nas qualidades de quem lidera os partidos, mas antes depreciando as alternativas. Em parte, é o resultado do ambiente instalado na sociedade britânica profundamente dividida entre ‘brexiteers’ e ‘remainers’. Aparentemente é uma atmosfera onde cada vez menos ambas as partes toleram as posições antagónicas.

O lado positivo, eventualmente, destas eleições poderá ser criar condições para gradualmente se ultrapassar esta atmosfera política e socialmente divisiva. Apesar de tudo se o processo entrar nalguma normalidade política e com uma maioria estável poderá acalmar esse grau de maiores tensões políticas e rivalidades internas. Vamos esperar que assim seja.

Mas, obviamente, trata-se de uma nota negativa sobre a forma como se desenrolou a campanha com os ataques a ser muito personalizados e até, estou a pensar, no próprio Partido Trabalhista a questão de Jeremy Corbyn e do alegado antissemitismo e outras realmente muito focadas a partir de um ângulo negativo.

É uma marca negativa deste processo eleitoral, mas até certo ponto inevitável por toda a dinâmica gerada desde o referendo de 2016. Vamos esperar é que estas eleições possam constituir um ponto de inversão desta tendência na sociedade britânica.

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