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Caretos de Podence a um passo de subir a Património Imaterial da Humanidade

11 dez, 2019 - 06:17 • Olímpia Mairos

​A tradição em Podence perde-se no tempo. Há quem diga que remonta à época pré-romana e encerra as festividades de inverno no Nordeste Transmontano. Atualmente, mais do que uma tradição, os caretos são o símbolo da cultura nordestina.

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A milenar tradição dos caretos de Podence, em Macedo de Cavaleiros, está a um passo de ser reconhecida como Património Imaterial de Humanidade pela UNESCO, organismo das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura.

A candidatura, designada “Festas de Inverno Carnaval de Podence”, foi considerada “exemplar” pela UNESCO, num reconhecimento “raro”, segundo o embaixador António Sampaio da Nóvoa, e, por isso, em Macedo de Cavaleiros e no país, aguarda-se apenas o anúncio da decisão para se cantar a vitória.

António Carneiro é o presidente da Associação dos Caretos de Podence e é também o grande impulsionador dos caretos de Podence e, por isso, acredita que o selo da UNESCO será uma realidade.

“Acho que é uma mais-valia para toda a região do Nordeste Transmontano e para toda a identidade única que tem. A história dos caretos perde-se nos tempos, é uma tradição que passa de geração em geração. E eu falo por mim, passou do meu pai para mim e de mim para o meu filho que já é careto e gosta muito desta tradição”, conta à Renascença.

Mas, se é verdade que a tradição hoje “está bem viva, com uma dinâmica muito forte, enraizada numa comunidade que sempre a teve e a manteve com muita alegria, com muito orgulho”, também é verdade que o feito em muito se deve à dedicação, paixão, empenho, resiliência e liderança de António Carneiro, porque nos anos de 60 e 70 do século passado esteve quase extinta.

Foi precisamente em 1985 que os Caretos de Podence ganharam vida, quando se organizaram e transformaram o grupo numa associação cultural, com o objetivo principal de preservar estes eventos tradicionais. De lá para cá, os frenéticos mascarados tornaram-se num símbolo da cultura do nordeste transmontano e têm corrido mundo. São convidados a participar em vários acontecimentos culturais e recreativos, sobretudo quando é possível integrar a animação de rua.

Os homens que podem correr e saltar vestem fatos de caretos, feitos de lã, em tons de amarelo, verde e vermelho, e juntam-se em grupos por tudo que é sítio. Irrompem pelo meio do povo, com ruidosos chocalhos presos à cintura. Apoiados em pau de madeira de freixo ou castanheiro, que lhes serve de apoio quando saltam, não dão sossego a ninguém, afastam os homens e chocalham as mulheres.

“Temos esta candidatura que, esperamos, vai ser reconhecida pela UNESCO. No fundo, é um reconhecimento de 40 anos, que andamos a fazer esta caminhada, com muitas dificuldades. Abriram-se portas, fecharam-se portas, mas foi com esta vontade que nós conseguimos trazer esta tradição a nível nacional e esperamos que seja reconhecida mundialmente”, partilha o presidente dos caretos.

António Carneiro vê na mais que certa classificação da UNESCO um “grande contributo para que os naturais e os descendentes de Podence, do concelho de Macedo de Cavaleiros e de toda a região vejam isto de outra forma”.

“Nós não vamos receber nenhum cheque, vamos receber um reconhecimento e mais responsabilidade, para continuar a fazer cada vez mais, a fazer melhor, a preservar esta tradição com a matriz bem definida em termos do que é tradicional, porque não basta receber o prémio. Daqui a quatro anos, se formos classificados, obriga a um plano de salvaguarda e esse plano é rigoroso e nós estamos cá para cumprir o que nos é solicitado”, assegura.

Na aldeia de Podence, o carnaval, também designado por entrudo chocalheiro, é um dos eventos mais importantes do calendário anual. E tudo porque há caretos, há tradição, há festa.

Caretos dão vida à terra e animam economicamente a região

Com pouco mais de 200 habitantes, a aldeia transforma-se, tornando-se pequena para acolher tantos visitantes das mais diversas partes do mundo. Os emigrantes também escolhem essa época para vir à terra, “deixaram de vir no verão ou no Natal, só para se vestirem de careto, para sentirem e partilharem o que é ser careto”, diz António Carneiro.

“Isto criou aqui uma dinâmica muito grande em termos económicos. A restauração e a hotelaria, aqui à volta, fica toda lotada. Vem cada vez mais gente procurar-nos e só aqui na aldeia já há 130 camas disponíveis”, diz, com orgulho, o presidente da associação que representa os caretos.

“Macedo de Cavaleiros acaba por beneficiar de uma tradição de séculos e que, na sua essência e na sua genuinidade, acaba por ter algumas transformações, algumas modificações que permitiram que se transformasse num evento único e numa candidatura exemplar a Património imaterial da Humanidade”, refere por sua vez o presidente da Câmara de Macedo de Cavaleiros.

O autarca Benjamim Rodrigues integra a delegação portuguesa presente em Bogotá, na Columbia, e acredita num “desenlace feliz para o país, também porque acaba por o país ter mais um evento marcante na lista que temos de Património imaterial da Humanidade e, como tal, isto dá visibilidade ao país, dá visibilidade ao distrito de Bragança, ao nosso território e ao nosso concelho”.

A candidatura portuguesa foi apresentada em março de 2018 e o promotor foi o Município de Macedo de Cavaleiros, em parceria com a Associação dos Caretos de Podence. O processo desta candidatura foi iniciado em 2014, com uma equipa técnica e científica liderada por Patrícia Cordeiro.

A candidatura, designada "Festas de Inverno Carnaval de Podence", é a única apresentada pelo Governo português, que, durante meses, reuniu e avaliou pareceres de especialistas e documentação credível para poder arriscar os seus créditos em desafio tão ousado.

De facanito a careto, de estudioso a artesão

Luís Filipe Costa, de 34 anos, é de uma geração que cresceu com os caretos. Foi facanito e atualmente é careto e artesão de máscaras e trajes. É também um estudioso e os caretos de Podence, porque lhe estão no sangue, foram o tema da sua tese de mestrado em Arte.

O amor à tradição, quer dizer aos caretos, vem, por isso, de muito novo e foi com a mãe, ao serão, que aprendeu a fazer as franjas, um trabalho que “exige muita paciência, muitas horas, porque são precisos muitos metros de franja para um fato”, conta à Renascença.

O negócio de Luís Filipe Costa, uma espécie de oficina/loja na aldeia de Podence, surgiu há mais ou menos cinco anos, quando o artesão se apercebeu que “era das poucas pessoas jovens que sabia fazer franja”. E começou, então, a fazer as franjas, depois as máscaras, primeiro de lata e depois de couro”.

“Há cerca de dois anos, e porque havia uma grande procura de pessoas da aldeia, principalmente de emigrantes que queriam muito um fato de careto, apercebi-me aqui de uma oportunidade e comecei a aprender a fazer o resto que faltava: costurar, cortar a colcha e a coser as franjas no fato”, explica o artesão que atualmente confeciona o fato completo.

Os fatos dos caretos, antigamente, eram feitos “a partir duma colcha antiga, que era cortada e talhada. Era daí que se faziam os casacos e as calças. Mas já não é fácil encontrar em Podence mantas e colchas antigas, porque as que havia foram todas transformadas em fatos de caretos”, conta Luís Costa, que contorna esta dificuldade encomendando a fábricas mantas com um padrão parecido às velhas e típicas colchas.

O sonho do jovem artesão é que seja “criada em Podence a oficina do careto, onde se possam fazer as mantas à moda antiga”, com a lã a partir das ovelhas da terra. “É o processo que falta, para dizer que o falto é feito a 100% aqui, em Podence”, diz o artesão. Mas, enquanto tal não acontece, Luís vai continuar a dedicar-se ao fabrico dos fatos e a vestir os caretos, porque da falta de encomendas não se pode queixar.

“O meu problema é conseguir arranjar tempo para fazer as encomendas todas, porque, com o aproximar do carnaval - e eu já faço franja e casacos com alguma antecedência - é que vêm as encomendas de última hora e depois é um problema, se não estão prontas para o carnaval”.

Um fato simples para criança pode rondar os 350 euros. Já os dos adultos pode chegar aos 800 euros. “Depende do número de chocalhos que querem, da máscara”. “Todo completo, para sair à rua, com pau feito por um pastor aqui da aldeia,… junto as peças todas e vendo-as por 800 euros”, diz Luís.

Os enigmáticos caretos de Podence são vaidosos e, por isso, também exigentes quando encomendam o seu fato.

“Sim, também é normal. Vão despender de uma quantia considerável em algo que lhes vai ser útil para o resto da vida e que provavelmente vão passar às gerações seguintes, portanto, querem levar daqui algo que gostem muito e que possam exibir pelas ruas de Podence… E gostam de se exibir, sim…”, partilha o artesão por entre sorrisos.

As “Festas de Inverno Carnaval de Podence”, o mesmo será dizer, os caretos de Podence, estão em vias de ser Património Imaterial da Humanidade da UNESCO. O veredicto será conhecido esta quarta-feira e Luís Filipe Costa não esconde o orgulho de uma tradição que é hoje a sua forma de vida.

“Sim, é um orgulho porque acompanho isto desde criança. É a nossa forma de celebrar o carnaval. E acompanhar esta evolução até aos dias de hoje tem sido fantástico”, exclama o artesão, frisando que “até há bem pouco tempo ninguém sabia quem eram os caretos e até houve um apresentador da televisão que nos perguntou se éramos pastores”.

“E hoje em dia toda a gente reconhece os caretos de Podence, em Portugal e mesmo no estrangeiro”.

Por isso, o artesão Luís Filipe Costa considera que “ser Património da Humanidade é o coroar de um longo caminho, de um grande trajeto” que traz “mais responsabilidades” e, acima de tudo, “força para lutar e para continuar a preservar”.

“Não é só conseguir este título e acabou. Não! É a responsabilidade de o manter e continuar um nível elevado. É um território novo que vai ser para nós”, defende.

Em Podence, concelho de Macedo de Cavaleiros, o careto incarna uma personagem diabólica. É uma tradição pagã que se cumpre todos os anos e está a despertar cada vez mais entusiasmo e a atrair cada vez mais gente ao Nordeste Transmontano.

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