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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Um país, dois sistemas? A China e as RAE

11 dez, 2019 • Opinião de José Miguel Sardica


Tornou-se um ator global, e até um improvável campeão da globalização, à medida que vai preenchendo no mundo a retração do outro gigante, os EUA.

A frase “o século XXI será chinês” já não termina hoje com um ponto de interrogação, mas com um ponto final. Gigante em território e demografia, com um poder político musculado, uma agenda geoestratégica expansionista, uma ascensão económica meteórica, e uma crescente classe média consumidora, a China há muito deixou de ser só uma grande potência na Ásia. Tornou-se um ator global, e até um improvável campeão da globalização, à medida que vai preenchendo no mundo a retração do outro gigante, os EUA. A fórmula “um país, dois sistemas”, inventada por Deng Xiaoping, parece funcionar: o Estado é comunista, o partido é único, as liberdades e direitos individuais são o que são (ou o que não são), mas, na economia, o capitalismo é bem-vindo, atraindo o “high-tech” deslocalizado do Ocidente, e criando um mercado de exportações e consumo interno a caminho de ser o maior do mundo.

A fórmula “um país, dois sistemas” foi também o mantra com que, no termo do século XX, o Reino Unido e Portugal transferiram para a China os territórios de Hong Kong e Macau, respetivamente, o primeiro a 1 de julho de 1997, o segundo a 20 de dezembro de 1999, fará proximamente 20 anos. Há dias, numa cerimónia evocativa dessa data, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, desviou-se da retórica simpática da efeméride – celebrar o secular encontro entre povos e continentes e o importante legado de cultura e língua portuguesa em Macau – para lembrar o que lhe pareceu mais importante: a “especificidade” daquela RAE (Região Administrativa Especial), assente numa “solução” (o acordo de transição de 1999) que deve ser “respeitada”, sem “dúvidas”, “desvios” ou “esquecimentos”, e que requer a vinculação e respeito mútuos de Pequim e Lisboa pelos “compromissos jurídicos” vigentes em Macau, visando “garantir a permanência de um corpo de princípios e de regras”.

Quem o ouviu ou o lê ficou com vontade de perguntar o que tal retórica quer dizer. Não é preciso fazer grande esforço. Duas décadas depois do arriar da bandeira portuguesa no Palácio da Praia Grande, a memória da presença lusa naquele longínquo porto costeiro do Império do Meio, e a vida dessa herança (na cultura, na língua, na toponímia, nos hábitos, nos valores e, muito importante, nas leis) está a estiolar-se, às mãos de um cada vez maior “achinesamento” (perdoe-se a palavra) daquela RAE. Quando se fala de Macau, nunca se diz tudo, nem se diz o essencial. Macau nunca foi colónia, mas terra de missionários, comerciantes e, no fim, de muitos que ali iam enriquecer com a “árvore das patacas”. Sobretudo a democracia, desde 1974, poderia ter feito muito mais em, ou por, Macau. Os balanços de hoje assinalam a relevância dos portugueses na economia e na sociedade daquele pujante território, mas também revelam sinais de um previsível futuro com menor cor portuguesa.

A cordialidade diplomática, o temor de Pequim ou a dependência da Huawei (e etc.), cerceiam a verbalização da realidade: o Macau “português” poderá estar a definhar, por mais que se peça aos novos donos da RAE que o “respeitem”. Na verdade, este é um verbo eufemístico para lhes rogar que não façam, um dia, em Macau, o que as autoridades chinesas de Hong Kong estão a fazer à população local. 800 mil cidadãos dessa outra RAE de origem ocidental saíram agora à rua para assinalar os seis meses de protestos em prol da democracia. Ameaçados pelo monolitismo repressivo de Pequim, os manifestantes querem continuar a usufruir dos hábitos e garantias jurídicas britânicos, outrora prometidos, como em Macau, no enunciado de “um país” que deveria tolerar dentro de si “dois sistemas”. Será que continuará a ser assim?

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