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Alentejo

Med On Tour. "Seremos melhores médicos depois de conhecermos estas pessoas"

10 dez, 2019 - 13:00 • Rosário Silva

Jovens estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa andam, por estes dias, por dois concelhos do Alentejo a fazer rastreios cardiovasculares porta a porta.

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O dia começou com mais uma ação porta a porta para a realização de rastreios cardiovasculares. Sem a obrigatoriedade de cumprirem um plano rígido, os jovens voluntários, estudantes de medicina, seguem rua acima, num bairro onde, informaram os bombeiros de Reguengos de Monsaraz, vivem pessoas já com alguma idade.

Por estes dias, participam no projeto Med On Tour, uma espécie de medicina em digressão, que decorre nos concelhos de Reguengos de Monsaraz e Viana do Alentejo, numa iniciativa da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa (AEFML), com o apoio da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM).

“Esta iniciativa surgiu da vontade dos estudantes de sair das faculdades, onde têm prática clínica, para locais mais à periferia, onde sentem que o pouco que fazem acaba por fazer uma grande diferença”, refere Elisabete Neto, diretora de saúde pública na ANEM, à Renascença, que acompanha mais um dia de ação em Reguengos.

Casa a casa, devidamente identificados, os futuros jovens médicos seguem com o entusiasmo de quem abraça uma profissão por vocação, mas não escapam à “indireta” de Rosa Fama.

“É para médicos que andam a estudar? Olha, não queiram depois tratar bem os doentes, não”, atira, acompanhando com um gesto que indica alguma rispidez associada à atitude de muitos médicos, já vivenciada por muitos de nós.

Os jovens sorriem à boa disposição do casal que os acolhe em sua casa. Rosa tem 83 anos e, tal como o marido, Manuel, sofre de diabetes. Não estavam à espera desta visita, que agradecem e louvam.

“É importante que venham pois ficamos a saber mais sobre a nossa saúde, e assim é que devia ser, os mais novos a cuidarem dos mais velhos”, diz Rosa, logo coadjuvada pelo marido.

“Isto está mau em todo o lado, de médicos e enfermeiros, e acho que devia haver mais vezes estas visitas, até para que possam aprender e não seja só na teoria”, adiciona Manuel Fama, que já tinha passado, de manhã, pelo centro de saúde local.

“O centro não tem condições para nada. Ainda hoje fui fazer análises, cheguei lá, ainda não eram 8 horas e já estava uma grande bicha para as análises, apenas com uma funcionária e ainda por cima com pouca desenvoltura nas teclas. Isto não pode ser assim”, opina o homem, prestes a completar 82 anos de vida e que gostava de ter um hospital na sua terra, à semelhança do que existia há seis décadas no concelho.

Entre perguntas, respostas e conselhos, os jovens pesam, fazem medições, picam o dedo e ainda arranjam tempo para ajudar o casal a programar uma balança digital. A despedida faz-se com beijos e palavras de afeto, tal e qual avós e netos.

“Para mim é como voltar às origens”, conta-nos Carolina Conceição, natural da Batalha, distrito de Leiria, a frequentar o 4.º ano do mestrado integrado em Medicina, na FML.

“Daqui levo a simpatia e o bom humor dos habitantes de Reguengos. Acho que nos têm recebido de forma incrível e estão sempre a dar-nos coisinhas boas”, revela a estudante de 21 anos. Questionada pela Renascença se, no futuro, o Alentejo pode ser uma opção profissional, responde: “A minha ambição é não ficar em Lisboa, queria fugir para outras zonas longe dos grandes centros urbanos, e o Alentejo é uma possibilidade, sim.”

Também Francisco Ribeiro, “embora não tenha ainda muito bem delineado o futuro”, considera que o interior “é uma opção a ser considerada.” De Lisboa, Francisco é o mais novo do grupo, tem 20 anos e está a frequentar o 3.º ano do mestrado integrado em Medicina. “Acho que é uma experiência muito importante, pois o contacto próximo que estabelecemos com as pessoas acaba por nos tirar da nossa zona de conforto.”

Da Madeira para o continente, Laura Castro encontra semelhanças entre o Alentejo e a sua terra natal. “Esta região faz lembrar um pouco a minha casa, com as pessoas aqui todas reunidas, muito acolhedores, ouvem o que temos a dizer, têm vontade de medir a tensão, de fazer a picadinha e isso ajuda o nosso trabalho”, sublinha a estudante, também do 4.º ano do mestrado integrado em Medicina.

Com 21 anos, Laura considera a experiência, a sua primeira, “muito positiva”. Quanto ao futuro, “ainda é cedo” para decisões, mas “voltar para casa é sempre uma opção, até porque lá também há muita falta de médicos, principalmente nas zonas mais rurais”, lembra.

A medicina em digressão a “olhar mais para o outro”

Durante quatro dias, os concelhos de Reguengos de Monsaraz e Viana do Alentejo recebem estes jovens no âmbito do Med On Tour, um projeto que visa “complementar a formação curricular do atual plano de estudos do Mestrado Integrado em Medicina”, adianta Marco Tomás, coordenador de Saúde Pública e Sexual da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa (AEFML), há três anos a organizar este género de iniciativas.

“Pretende-se promover a prática de conhecimentos adquiridos, o desenvolvimento das capacidades na interação médico-doente, o contacto com deferentes realidades de prestação de cuidados de saúde no país e a intervenção na população em geral no âmbito da medicina preventiva”, explica.

“Fazemos estes rastreios, a educação para a saúde, formações escolares, e estamos com idosos, no sentido de aumentar não só a literacia em saúde mas também sensibilizar os futuros profissionais de saúde para a necessidade de uma prática, de uma medicina mais humana e mais a olhar para o outro”, acrescenta Elisabete Neto, da ANEM.

Os locais de intervenção privilegiam municípios da periferia, onde o acesso a cuidados de saúde primários não é tão fácil como em áreas urbanas, permitindo à população beneficiar desta iniciativa.

“Esta experiência é sempre muito positiva e muito gratificantes, os estudantes saem daqui de coração cheio e a própria população gosta de nos receber, pois somos pessoas novas que eles acabam por ver”, lembra Elisabete Neto.

Com o Med On Tour, também os futuros médicos ficam a conhecer o país real onde podem vir a exercer a sua profissão, além de sensibilizar para a necessidade da prática de uma medicina humanizada, centrada nas pessoas e nas suas necessidades.

“Temos oportunidade de pôr em prática alguns dos conhecimentos teóricos que recebemos na faculdade e é com as pessoas que nós aprendemos", diz a diretora de Saúde Pública na ANEM. "Não vimos só cá deixar coisas. Nós também aprendemos muito com elas. Seremos melhores médicos, com certeza, depois de conhecermos estas pessoas.”
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