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Crónicas da América
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Afeganistão. Uma guerra sem solução contada por quem a viveu

10 dez, 2019 - 10:24 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Quase 50 anos depois dos “Pentagon Papers” que puseram a nu a realidade da guerra no Vietname, surgem agora os “Afhganistan Papers” revelados pelo Washington Post. É a história secreta de uma guerra que dura há 18 anos e parece não ter fim. Foi Churchill quem disse que na guerra a primeira vítima é a verdade. Ei-la contada agora por quem conhece a realidade.

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No dia 11 de outubro de 2001, exatamente um mês após o 11 de setembro e poucos dias depois de os Estados Unidos terem começado a bombardear o Afeganistão, um jornalista perguntou ao presidente George W. Bush se era possível evitar naquele país um atoleiro idêntico ao do Vietname. “Aprendemos lições muito importantes no Vietname”, respondeu Bush.

Dezoito anos, 2.300 mortos, 20 mil feridos e um bilião de dólares depois, a verdade é profundamente irónica: aquilo que está a acontecer no Afeganistão prova que os EUA não aprenderam nada com o Vietname. De facto, a guerra já é a mais longa de sempre em que a América se vê envolvida e não há qualquer perspetiva de vitória. O atoleiro — de que o secretário da Defesa de Bush, Donald Rumsfeld, desdenhava poucos dias depois da declaração do presidente — é a realidade em que se transformou a guerra no Afeganistão.

Uma realidade mais ou menos conhecida de quem tem prestado atenção ao conflito e pouca atenção ao discurso oficial sobre ele. Porque o discurso oficial tem tentado mascarar a realidade com declarações sobre os “progressos” feitos no terreno que deixam no ar uma perspetiva esperançosa sobre o futuro do país.

Nada mais longe da verdade. Tal como sucedeu com o Vietname — e esta é a segunda ironia — os responsáveis americanos que foram passando pelo Afeganistão têm alimentado uma ficção cor-de-rosa em público, mas uma consciência do pesadelo em privado.

Foi isso que ficou a saber-se nesta segunda-feira quando o “Washington Post” divulgou aquilo que entrará para a história desta guerra como os “Afghanistan Papers” por analogia com os célebres “Pentagon Papers” que o “New York Times” revelou há quase 50 anos e que traçaram o retrato negro do estado da guerra no Vietname.

Tal como em 1971, a administração esforçou-se por evitar a sua divulgação, mas o “Post” travou uma luta de três anos nos tribunais e ao abrigo do Freedom of Information Act — a lei que defende o princípio de uma administração aberta — conseguiu obter os documentos.

São 2.000 páginas de entrevistas e depoimentos de militares, diplomatas, seguranças, civis, pessoal de saúde, membros de organizações não governamentais, que passaram pelo Afeganistão, por vezes em mais do que uma comissão de serviço, e sob sigilo contaram a sua experiência naquele país. E não apenas americanos, mas também alguns responsáveis afegãos, assim como militares e diplomatas de países da NATO, num total de 600 pessoas com conhecimento e vivência do terreno.

"Lições aprendidas" na guerra

As entrevistas foram conduzidas por uma agência federal denominada Inspeção Geral para a Reconstrução do Afeganistão, criada pelo Congresso em 2008 para investigar o desperdício e a fraude no país. A recolha começou em 2014 e foi compilada sob o lema “Lições aprendidas”. E justamente porque as entrevistas foram feitas sob sigilo permitiram saber o que cada um verdadeiramente pensa sobre o andamento da guerra — daí que a vasta maioria dos depoimentos não esteja sequer identificada.

O retrato é devastador e deprimente. Comecemos por citar um dos que está identificado: o general de três estrelas e “czar” da guerra durante as administrações Bush e Obama, Douglas Lute. “Nós não sabíamos o que estávamos a fazer. Ficamos desprovidos do entendimento básico sobre o Afeganistão. O que estamos a tentar fazer aqui? Não tínhamos a mínima noção da missão que nos foi atribuída”.

De facto, a missão foi mudando ao longo do tempo, como fica patente nos documentos. Começou por ser a expulsão da Al Qaeda do país para prevenir um novo 11 de setembro. Depois passou a ser a derrota dos talibãs e a criação de uma democracia no país. Mais tarde, os direitos das mulheres e mais tarde ainda refazer os equilíbrios regionais entre Afeganistão, Paquistão, Irão e Rússia.

“A estratégia era como a árvore de Natal, havia um presente para cada um”, ironizou um funcionário americano, acrescentando: “havia tantas prioridades e aspirações que era como se não houvesse estratégia nenhuma”.

O inimigo também carecia de melhor definição. Era a Al Qaeda? Os talibãs? Os jihadistas estrangeiros que afluíram ao país? E o Paquistão era um país amigo ou um adversário? E os “senhores da guerra” pagos pela CIA? Washington nunca clarificou devidamente.

O que criava situações embaraçosas aos comandantes militares. Os homens “pensavam que lhes ia mostrar um mapa a dizer onde estavam os bons (“good guys”) e onde estavam os maus (“bad guys”). Só após várias conversas é que percebiam que eu não tinha essa informação à mão”, desabafou um conselheiro das Forças Especiais do Exército. “Mas quem são os maus, onde estão?”, perguntavam os subordinados.

A confusão era extensiva ao próprio secretário da Defesa. Em setembro de 2003, com quase dois anos de guerra, Rumsfeld reconhecia: “Não tenho qualquer visibilidade sobre os maus. Temos graves carências em espionagem”.

As três administrações que lidaram com o conflito (Bush, Obama e Trump) evitaram sempre falar em construção do país (nation building), mas já gastaram 133 mil milhões de dólares no Afeganistão, mais do que o Plano Marshall para a Europa do pós-guerra ajustado à inflação.


Após 11 meses como presidente, Obama advertiu que “os dias dos cheques em branco acabaram. Os afegãos têm de assumir responsabilidades pela sua segurança e a América não tem interesse em lutar numa guerra sem fim”. Mas nada mudou, o dinheiro continuou a afluir a um ritmo que o país não conseguia absorver.

Os congressistas americanos convenceram-se que a solução residia nas infra-estruturas. Escolas, pontes, canais e outros projetos civis trariam maior segurança. Um erro colossal, alertaram responsáveis das agências de ajuda internacional. Um deles estimou que 90% do que se gastou foi exagerado. “Perdemos a objetividade. Davam-nos o dinheiro, diziam-nos para o gastar, e nós fazíamo-lo, sem razão”, admitiu.

Um exemplo caricato. Num distrito afegão, do tamanho de um concelho nos EUA, havia três milhões de dólares para distribuir diariamente. Quando o responsável pela ajuda perguntou a um congressista americano em visita se conseguiria gastar aquele montante no seu próprio município, a reação foi óbvia: “Nem pensar!”. Eis a resposta: “Bem, isso foi o que vocês nos obrigaram a gastar aqui e estou a fazê-lo com populações que vivem em cabanas de lama sem janelas”.

Criou-se assim o terreno ideal para o alastrar da corrupção. Embora em público os funcionários americanos proclamassem a sua intransigência com a corrupção, na prática fechavam os olhos porque muitos dos aliados afegãos eram os maiores prevaricadores. O governo do presidente Hamid Karzai era uma “cleptocracia auto-organizada”, nas palavras de um coronel do Exército.

Com juízes, chefes da polícia e burocratas a extorquir subornos, e com os americanos a tolerar tais práticas, os afegãos voltaram-se de novo para os talibãs para restaurar a ordem. Era a legitimidade popular de um governo eleito que ficava em xeque. “O nosso maior e único projeto, triste e inadvertidamente, claro, pode ter sido o desenvolvimento da corrupção em massa”, lamentou Ryan Croker, um diplomata que fez duas missões no Afeganistão. “É irreparável”.

Droga, corrupção e falta de confiança

Um cancro que afeta igualmente o exército afegão. Enquanto em público iam dizendo que estavam a construir um exército e uma polícia robustas, os comandantes americanos admitiam em privado não ter qualquer confiança na missão. Incompetente, desmotivado, infiltrado pelos talibãs, com deserções constantes, o exército em formação era também fértil em corrupção. Havia comandantes que declaravam possuir milhares de “soldados fantasma” para receber os respetivos salários. Sem esquecer o desaparecimento constante de bens vitais como gasolina, por exemplo.

Do ponto de vista operacional ninguém tinha dúvidas sobre a incapacidade deste exército para derrotar os talibãs ou mesmo evitar os seus ataques. Mais de 60 mil foram mortos, um número considerado “insustentável”.

Outro problema grave era a droga. Na polícia, cerca de um terço dos elementos alistados eram talibãs infiltrados ou toxicodependentes. O Afeganistão tornou-se o maior produtor de ópio do mundo nestes 18 anos, apesar dos 9 mil milhões de dólares gastos pelos EUA para combater o flagelo. Segundo a ONU, no ano passado foi responsável por 82% da produção de ópio no mundo.

Ironiza o general Douglas Lute: “Dissemos que queríamos estabelecer uma economia de mercado florescente. Penso que devíamos ter especificado um mercado de droga florescente. É a única parte do mercado que está a funcionar”.

É esta a realidade afegã contada por quem a viveu (ou vive ainda) mais de perto. A história secreta da guerra. Até ontem. Com maior ênfase na administração Bush, naturalmente, as declarações oficiais de progresso no país foram-se sucedendo ao longo dos anos. Nunca ou raramente corresponderam à verdade.

Como fica agora bem patente graças à divulgação pelo “Washington Post” destes “Afghanistan Papers”, os vários governos americanos fizeram esforços para enganar o público, distorcendo dados, viciando sondagens, coartando declarações.

Em 2001, na sequência do 11 de setembro, a invasão do Afeganistão quase não suscitou controvérsia no Ocidente. Ao contrário do Iraque que, em 2003, provocou o maior cisma ocidental, o Afeganistão foi a guerra justa. Foi consensual a ideia de que era indispensável destruir a Al Qaeda lá onde ela se refugiava e tinha a cobertura dos talibãs. Tão consensual que a NATO invocou pela primeira vez na sua história o artigo 5º, fazendo do ataque aos EUA um ataque a todos os membros da Aliança.

Sucederam-se contingentes ocidentais no Afeganistão, incluindo de militares portugueses. Só americanos já por lá passaram 775 mil. Ao fim de 18 anos, o registo é sombrio: 157 mil mortos — cerca de 100 mil entre forças de segurança afegãs e insurgentes; 43 mil civis afegãos; 3800 seguranças americanos; 2300 militares americanos; 1150 militares da coligação internacional; 424 trabalhadores humanitários; 67 jornalistas.

E a situação no terreno parece tão insolúvel quanto o era quando o conflito começou. O general Douglas Lute desafia: “Quem virá a público dizer que isto foi em vão?”. Uma pergunta ainda sem resposta.

Mas, por ora, fica uma certeza, exprimida nas palavras do antigo embaixador James Dobbins: “Não invadimos países pobres para os tornar ricos. Não invadimos países autoritários para os tornar democráticos. Invadimos países violentos para os tornar pacíficos. E falhámos claramente no Afeganistão”.

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