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Nuno Garoupa. “Os portugueses não confiam nos portugueses”

06 dez, 2019 - 22:00 • José Bastos

"A dez anos, vamos continuar no empobrecimento relativo, no desgaste das instituições democráticas, até que algum factor, mais económico que social, acabe por transmutar o regime de uma forma em que haverá perdedores e ganhadores”, alerta o autor do livro “Portugal, um retrato”. O colaborador da Renascença e ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos está de regresso aos livros com uma obra que avalia a política, a justiça e a corrupção em Portugal.

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"Tenho muitas dúvidas de que possa haver um governo que tenha um mandato suficientemente abrangente para levar a cabo mudanças profundas em Portugal”, sustenta Nuno Garoupa.

“É preciso não esquecer que o actual governo tem apenas 1,9 milhões de votos. Como é óbvio, tem toda a legitimidade democrática, porque ganhou as eleições, mas o governo tem o apoio de 1,9 milhões dos 9,2 milhões de adultos em Portugal, um dado que dá a ideia da incapacidade que os governos sucessivamente vão ter quando não têm mandatos abrangentes da sociedade portuguesa para fazer mudanças”, defende o professor universitário em Arlington, na Virginia, Estados Unidos, e uma das presenças mais originais, reformistas e respeitadas no complexo ecossistema do comentário político nacional.

Depois de “A Direita Portuguesa - da Frustração à Decomposição”, o colaborador da Renascença e ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos está de regresso aos livros com “Portugal, um retrato”, obra que avalia a política, a justiça e a corrupção em Portugal.


Dividido em capítulos, “O Sistema Político Português”, “Pensar a Justiça e a Regulação” e Portugal e o Mundo”, o livro reúne uma série de reflexões e inquietações sobre uma sociedade ameaçada por fenómenos actuais, como a corrupção na justiça e política, ou de origem mais longínqua, como “a aversão à mudança”.

Com prefácio de António Barreto, a obra desenha um retrato acutilante, mas perturbador de um país que, 45 anos depois do 25 de Abril, ainda procura realizar uma democracia madura, plena e inclusiva para o conjunto dos cidadãos.

“Os portugueses não confiam nos portugueses. Já não é o facto de não confiarem no Estado, é não confiarem nos portugueses”, afirma Nuno Garoupa identificando o que diz ser uma das maiores ameaças à evolução da democracia portuguesa: “o mais baixo capital social da Europa”.

“A minha previsão para os próximos dez anos é a de que vamos continuar neste processo de empobrecimento relativo, neste problema de desgaste das instituições democráticas, das taxas de abstenção que vão continuar a subir até que algum factor, mais económico que social, acabe por transmutar o regime de uma forma em que haverá perdedores e ganhadores”, diz em entrevista a partir da GMU School of Law, nos Estados Unidos.

Este livro é distinto do anterior “A direita portuguesa, da frustração à decomposição”, no sentido em que é um livro sobre a dinâmica do sistema político português mais global. Para quem defendia o programa de Passos em 2010, de profunda revisão constitucional abandonada nas eleições de 2011, “a ausência de reformismo como modelo de políticas públicas para Portugal” - que este livro parece demonstrar - é a razão primeira da estagnação económica, estagnação salarial e asfixia fiscal? É, em suma, o maior problema do país?

A agenda reformista do país relaciona-se directamente com a questão do nosso crescimento económico e da estagnação. Acontece que Portugal já está estagnado há 20 anos. Duas décadas, enfim, com pequenas flutuações. Este ano, Portugal está a crescer à volta de 2%, já se registaram períodos de crescimento negativos, taxas de crescimento inferiores a 1% e as razões já são causa e consequência e, portanto, neste momento, não podemos dizer que determinado tipo de reformas, só por si, serão alavancas de crescimento, uma vez que a falta desse crescimento já criou outro tipo de problemas económicos.

Contudo, acho que o livro talvez possa reflectir é que a preocupação de fazer reformas em áreas fundamentais - justiça, regulação, a própria política orçamental - se foi perdendo e hoje, em 2019, quando olhamos para trás, vemos que grande parte desses temas se perderam. Hoje, há uma gestão do quotidiano. Até é surpreendente ter um governo que tomou posse há pouco mais de um mês e não há qualquer debate profundo para os próximos quatro anos, mas, simplesmente, há uma gestão do dia a dia em função, até, do que sejam as pressões dos mercados externos.

Assim, o reformismo não só é hoje parte da estagnação como perdeu, ele próprio, grande parte da força de há dez ou quinze anos.

E qual é, então, o grande desafio colocado no próximo ano ao país? Esse desafio reformista para o crescimento económico? Saber como evitar "passar de economia emergente a economia submergente". No livro, lê-se que, há uma década, Nuno Garoupa defendia que o processo de empobrecimento é sustentado e não gera nenhuma ruptura social ou política grave, mas será evidente daqui a uma geração. 10 anos e "troika" depois, o diagnóstico continua actual?

O diagnóstico continua actual. Aliás, a confirmarem-se as estatísticas oficiais, há 10 anos Portugal não estava na posição 21 ou 22, em termos de PIB per capita da União Europeia, e, neste momento, estamos com tendência a descer, não é? As previsões para a próxima década - já na próxima geração - apontam para que tenhamos apenas a Roménia, a Bulgária e a Grécia atrás de Portugal. Portanto, esse diagnóstico de 2008 está confirmado.

Portugal prossegue num processo de empobrecimento relativo. Isto é: não estamos a empobrecer em valores absolutos. Daí ser um processo lento a que, em geral o eleitorado não reage, mas é um processo de empobrecimento em que a nossa posição em relação aos restantes países da União Europeia é de crescente pobreza, em termos médios. Esse empobrecimento relativo reflecte a estagnação económica, a falta de vigor da economia e a completa ausência de reformas na área do estado de forma a atrair investimento, de forma a promover o crescimento.

Nesta altura, a questão mais grave já nem é o debate à volta destas questões, mas o facto de nem o governo nem os partidos da oposição não terem um programa alternativo, porque, para além da retórica, não há em cima da mesa qualquer tipo de pacote, de medidas que favoreçam esse crescimento económico. Porque o crescimento tem custos políticos. É evidente que nós não vamos colocar a economia a crescer sem custos políticos e isso os partidos políticos não querem assumir.

Também em 2009 defendia que a qualidade na produção das políticas públicas em Portugal é objectivamente medíocre, porque faltava planeamento, análise. “Falta quase tudo que se espera de um estado moderno e regulador”. Dez depois, com um OE 2020 em preparação, a crítica permanece?

É evidente que a frase e a ideia continuam actuais, no sentido em que, apesar de ter havido esforços pontuais na esfera da modernização administrativa - deste e do anterior governo -, nós continuamos sem avaliação legislativa, continuamos sem planificação legislativa, continuamos sem avaliação retrospectiva de políticas públicas. Um bom exemplo foi a discussão, nestas últimas semanas, no sector da edução. Uma discussão em que se voltou a colocar em cima da mesa a questão das passagens administrativas, dos chumbos e de outros temas e não há qualquer discussão baseada em estudos e avaliações.

O mesmo em relação à questão, entretanto abandonada, do englobamento dos rendimentos. É de notar que toda a discussão feita não teve qualquer projecção, nem qualquer estudo qualitativo ou quantitativo dos efeitos da medida, quer nos contribuintes quer na economia. Portanto, continuamos sem avaliação de políticas públicas, ponto final.

É na falta de avaliação e planeamento que se ancoram explicações para momentos em que o Estado falha, como em Pedrogão ou, três meses depois, nos incêndios de 15 de outubro, ou em Borba, ou em Tancos?

Eu iria mais longe, porque a questão até é mais grave. No caso dos incêndios, até houve uma comissão técnica independente a produzir um relatório como um conjunto de medidas a implementar. Nunca mais ouvimos falar dessas medidas. Não há sequer acompanhamento ou publicidade a esse conjunto de medidas e a sua implementação. Portanto, já não é só o Estado falhar, mas é o Estado falha, avalia essa falha e depois não faz nada ou faz muito pouco. Isso tem a ver com falta de planificação, falta de planeamento, falta de estratégia e falta de avaliação.

Há também uma prevalência no espaço público do discurso das corporações, do funcionalismo público, salvo a imprensa especializada os jornais parecem ter um défice de debate de questões como facilitar o crescimento económico e aumentar a produtividade. Este registo prejudica o debate sobre a qualidade da democracia em Portugal e como pode ser contornado?

Prejudica a qualidade da democracia e vai de encontro a um problema mais vasto, porque a questão não é só a acção dos "lobbies", das corporações e forma de intervenção no debate público que é normal que assim seja numa democracia, mas há uma enfase excessiva na comunicação e imagem e não na substância. Por exemplo, quase todas as corporações defendem os seus interesses dizendo que estão a defender o interesse público, mas nunca há uma quantificação desse interesse público. Dou outro exemplo, o da Web Summit. Já vamos na terceira edição, o evento já se tornou polémico devido ao financiamento do Estado e, até agora, não foi possível fazer uma avaliação dessa Web Summit.

De resto, os números que circulam na comunicação social não têm qualquer base de estudo, são números lançados pelo ministério, sem qualquer análise rigorosa. Em geral, esses próprios estudos não são públicos. Portanto, não podem ser aferidos pela sociedade civil e tudo isto, evidentemente, condiciona o debate. Já não é fácil fazer um debate sobre se o Estado deve ou não financiar uma Web Summit - e dou o exemplo da Web Summit como poderia ter dado qualquer outro - sem ter números realistas, rigorosos, avaliações com rigor para se poder tomar uma posição mais avalizada.

Quem diz a Web Summit diz uma série de outros exemplos. Por exemplo, o tema do lítio, agora discutido na praça pública, ou as questões da saúde e da educação. Tudo isso anda sempre a ser debatido em função de estratégias de comunicação, estratégias de imagem, um certo interesse público abstracto, mas nunca é um debate baseado em algum rigor.

Este quadro deve-se ao Estado e deve-se à ausência da sociedade civil, porque o Estado podia ser totalmente ineficaz neste capítulo e ter uma sociedade civil fortíssima que produzisse e incentivasse esse tipo de debate. Mas a sociedade portuguesa também não o faz.

“Mais do que para a mexicanização estamos a caminhar para uma coisa a que chamaria mais de italianização, num quadro idêntico ao de quando a democracia-cristã dominou, com pequenas variações, o sistema político em Itália, que é o que acontece neste momento em Portugal. O Partido Socialista domina há 30 anos o sistema político, com pequenas flutuações.”

E a reforma do sistema eleitoral é um elemento chave para apurar a qualidade da democracia, mas pode ou não ter elementos perversos. Uma reforma que crie melhores condições de governabilidade pode levar à mexicanização do regime numa altura em que o PS em democracia já leva uma boa dose de anos no poder?

Mais do que para a mexicanização no sentido literal do que aconteceu no México, com o PR,I é um pouco díficil, porque, apesar de tudo, ainda tempos o Presidente da República e os tribunais independentes do Partido Socialista. Mas acho que estamos a caminhar para uma coisa a que chamaria mais de italianização, num quadro ao de quando a democracia-cristã dominou, com pequenas variações, o sistema político em Itália que é o que acontece neste momento em Portugal. O Partido Socialista domina há 30 anos o sistema político, com pequenas flutuações.

O grande problema da reforma eleitoral é de facto criar mais problemas do que resolver problemas. É por isso que a reforma eleitoral tem de ser equacionada em função dos objectivos que se pretende atingir. Se se pretender atingir mais proporcionalidade isso pode conflituar com o objectivo de maior proximidade entre o eleitor e o eleito, porque quando se defende sistemas mistos com círculos uninominais está-se a criar um problema de proporcionalidade. Portanto, temos de definir claramente os objectivos pretendidos. Apesar de ser favorável à reforma da lei eleitoral, também entendo que já não estamos em 1976, mas em 2019.

Tenho muitas dúvidas que se não for muito profunda uma reforma da lei eleitoral tenha agora qualquer impacto na abstenção ou na mobilização de novos eleitorados. Isto é: acho que já estamos num momento em que há um certo afastamento de grande parte da sociedade portuguesa e isso já não é reversível com pequenos ajustamentos na lei eleitoral ou com o voto antecipado. Esse vazio exige já reformas muito profundas que nenhum partido nem a própria sociedade civil considera oportunas.

E pensar a Justiça como? Defendia, há dez anos, que não há politica de justiça porque não há confrontos de ideias, de projectos, ideologia, coisa que não há em Portugal, porque o confronto ideológico em Portugal sempre foi feito na regulação económica (papel do Estado na economia), regulação social (papel do Estado na sociedade) e nas politicas sociais (educação e saúde), mas nunca na justiça? Porquê?

E esse cenário perdura, porque a Justiça continua a ser uma matéria tecnocrata que diz respeito aos juristas e, evidentemente, não há lugar a debate ideológico nenhum na área da justiça. A situação da Justiça complicou-se nestes dez anos.

Mas em 2005 teve lugar o que, à época, com o PS no governo, parecia uma “ofensiva contra o poder judicial”, com a polémica com as férias dos magistrados. Parecia que as coias iam mudar?

Isso foi um "fait-divers". Como hoje se percebe, não teve qualquer impacto na realidade. Foi apenas uma questão meramente de exercício de poder entre o governo de José Sócrates e a corporação dos magistrados judiciais e que, evidentemente, acabou por não ter qualquer efeito prático. A situação complicou-se depois de tudo isso porque temos dois desenvolvimentos em sentidos opostos. Por um lado os governos, tanto o de Passos Coelho como o actual governo de António Costa, insistem a justiça está muito bem e que as reformas da justiça já estão feitas. Portanto, passou-se da fase em que havia uma reflexão sobre o que havia a fazer na justiça para uma situação em que a justiça está muito bem.

É a comunicação social, o Correio da Manhã, a alimentar a percepção de uma justiça complicada, porque, dizem, de resto, ela está a funcionar nos melhores padrões internacionais - esta é a mensagem do governo anterior e do actual - e, por outro lado, estão duas áreas em que os problemas se agravam. Uma dessas áreas, óbvia para qualquer cidadão, que é da justiça administrativa e fiscal, onde toda a gente tem problemas com a AT, a autoridade tributária e toda a gente tem problemas com a segurança social. Os problemas não se resolvem porque os tribunais administrativos e fiscais levam 5, 6 e 7 anos a resolver estas questões. É um problema a condicionar muito o investimento e a relação do cidadão com o Estado.

Ainda há pouco, saíram notícias de que o Estado havia feito mais um investimento de vários milhões no funcionamento da AT e não investiu no funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais. Portanto, aqui há um problema e também já percebemos que nenhum partido tem propostas e ninguém tem forma de resolver isto. A outra área problemática é a área penal em que, por mais que o Estado, o Partido Socialista e o PSD insistam que funciona, está atafulhada, atolada, em inquéritos sobre corrupção. Inquéritos sobre corrupção a não chegar ao fim, a ter condenações complicadas e tudo isso cria um desgaste enorme na área da justiça.

“Sempre defendi que o processo Sócrates não deve ser usado para avaliar a justiça penal portuguesa. Porque é um processo a envolver um primeiro-ministro e em qualquer país é sempre um processo complicado. Agora, em qualquer Estado de Direito não é aceitável que o ex-primeiro-ministro tenha sido detido em 2014 e ainda não haja julgamento em 2019”

Em 2010, já escrevia que pior na justiça era impossível. Anos depois, nem o FMI conseguiu por a justiça a funcionar? Pelo menos os salários dos magistrados passaram, por exemplo, por melhorias consideráveis no último governo PS...

Mas essa é a questão, não é? Para além dos objectivos corporativos, que são perfeitamente aceitáveis, é natural que as corporações queiram ganhar mais e isso não encerra nenhuma crítica, não se percebeu essa alteração. Não se percebeu o valor social desses aumentos de salários aos magistrados porque, evidentemente, o desempenho das magistraturas não melhorou. Não se percebeu essa decisão do governo.

Não se percebeu - ainda menos - que essa decisão tenha sido negociada com o CDS, mas o CDS pagou nas urnas o preço daquilo que não sabe explicar e, por outro lado, é necessário não esquecer, Rui Rio. Anda há 18 meses a dizer que quer propor a reforma a sério e profunda da justiça e, ao fim de 18 meses, ainda não se percebe que reforma é essa, para além da alteração de umas cadeiras no Conselho Superior do Ministério Público. Portanto, isso significa que os partidos apresentam discursos que, depois, nem sequer conseguem concretizar em medidas que os eleitores percebam o que significam.

Estamos, de facto, perante uma situação em que há uma espécie de aceitação de que esses problemas não têm solução. O segredo de justiça não tem solução. A celeridade nos processos penais não tem solução, a reforma do Ministério Público não tem solução.

Há mais de 15 anos que defende uma profunda reforma do MP - estes últimos anos foram de grande protagonismo do MP, até porque um processo que envolve um ex-primeiro-ministro é sempre complexo em qualquer país com efeitos políticos e reflexos na opinião pública difíceis de ignorar - mas aqui coloca-se um problema de celeridade. O caso pode só ficar resolvido na justiça em 2029, 2030...

É uma solução absolutamente icónica na justiça portuguesa, não é? Sempre defendi que o processo Sócrates não deve ser usado para avaliar a justiça penal portuguesa. Porque é um processo a envolver um primeiro-ministro e em qualquer país é sempre um processo complicado. Agora, em qualquer Estado de Direito, sendo um processo complicado, não é aceitável que o ex-primeiro-ministro tenha estado detido em 2014 e em 2019, ainda não tenha começado o julgamento.

Isto não é aceitável. A única razão que poderia suavizar este facto era de que poderia tratar-se de uma caso único, mas não é um caso único, porque todos os processos que por aí andam apresentam o mesmo problema. Olhamos, depois, para as estatísticas de corrupção e verificamos que grande parte dos inquéritos na área terminam arquivados.

Daí, o Nuno Garoupa defender que falar de corrupção em Portugal é cada vez mais complicado “num país com corrupção, mas sem corruptos”?

Obviamente, porque sabemos até por estatísticas europeias o que são as perdas impostas à economia portuguesa pela corrupção e pela endogamia e, depois, não há combate à corrupção nem à endogamia.

Só queria também realçar ser evidente que, quer do programa eleitoral do PS quer dos programas eleitorais dos partidos da oposição, incluindo os novos partidos na Assembleia da República, e aqui refiro, também, a Iniciativa Liberal e o Chega, não consta programa algum contra a corrupção.

O que todos os partidos têm é retórica, mas medidas concretas no seguimento do relatório da OCDE ou nas propostas da ONG Transparência Internacional, nenhum partido tem a mais pequena ideia de como fazer isso. De resto, a prova é que a própria direita - em registo crítico ao PS - quando diz que há combate à corrupção alude a Joana Marques Vidal. Ou seja, nomear uma pessoa A ou a pessoa B para procurador-geral da República é "o combate à corrupção".

Isto revela o estado do debate anti-corrupção em Portugal: ninguém tem qualquer ideia concreta de como executar uma estratégia nacional de combate à corrupção. Este dado é, na minha opinião, o mais grave de toda esta situação.

E quanto ao Tribunal Constitucional (TC)? Defende que os 60 acordãos mostram estar partidarizado e, no tempo da "troika", havia quem ironizasse que, no limite, o TC “ilegaliza a bancarrota do país”, passe a "bouttade", mas não se conhece nenhuma proposta de reforma do TC nos últimos 20 anos. Porquê?

Não só não há nenhuma proposta de reforma como o próprio TC numa conjuntura menos complicada desapareceu do radar público. O TC não existe nos últimos quatro anos, excepto nalgumas questões mediáticas e pontuais, nalgum acordão que tenha chamado mais à atenção. Isto significa que o próprio TC vive em função do ciclo político. Ora, um TC que vive em função do ciclo político já constitui, ele mesmo, uma crítica implícita ao próprio TC.

É evidente que os partidos nada alteraram como, aliás, se viu nas recentes nomeações de juízes para o TC, em que, mais uma vez, os partidos não prestaram contas, não houve reflexão alguma, não houve qualquer concurso, continuamos com as nomeações de juízes com eram feitas há 20 ou 30 anos - para o TC como para qualquer outro alto cargo do Estado. Na República Portuguesa, o processo de escolha e nomeação dos seus altos cargos continua a ser feita como era em 1979.

Quarenta anos depois, não há qualquer evolução em função das novas tecnologias, do facto de hoje existir melhor capital humano no país, do facto de haver uma globalização, uma abertura ao exterior. Os processos de nomeação continuam endogâmicos, partidarizados e sem qualquer processo de prestação de contas. Isso também explica porque é que, neste momento, há uma taxa de abstenção superior a 50% nas eleições para a Presidência da República e para a Assembleia da República. Que deste quadro a classe política não queira retirar ilações já é um problema da classe política.

“Já percebemos quem vamos ter no próximo ano a novo governador do Banco de Portugal.(…) O processo de escolha não é internacional, não é aberto e não é transparente e, portanto, os reguladores, eles próprios, eclipsaram-se.(…) O processo de escolha dos reguladores já não é um tema sequer de debate. A escolha dos reguladores é parte das sinecuras dos partidos e isto está aceite e assumido quer pelo PS, quer pelo PSD.”

E a regulação da banca, onde se esvaíram 20 mil milhões da riqueza nacional? A solução está na União Bancária? É mais um dos casos onde a resolução dos problemas do país está no exterior?

A União Bancária teve um efeito muito positivo na regulação bancária em Portugal, mas também podemos dizer que, mais uma vez, pouco ou nada se tem avançado neste capítulo. Por exemplo, tivemos o caso da vice-governadora do Banco de Portugal ir para comissária europeia por confiança directa do governo e ninguém levantou qualquer objecção ao facto de Elisa Ferreira ser uma reguladora, não é? Portanto, como é que uma reguladora, que é suposto ser independente do governo, é, ao mesmo tempo, pessoa da máxima confiança do governo para ser nomeada para a Comissão Europeia?.

Depois, também já percebemos quem vamos ter no próximo ano novo governador do Banco de Portugal. Não há qualquer esforço em curso para alterar o processo de escolha do governador. Não há sequer qualquer conversa. Pelos vistos, daquilo que vou entendendo à distância, até parece que o processo de nomeação do novo governador é decidido nos comentários televisivos ao domingo, de certo comentador que vai dizendo que Mário Centeno vai ser próximo governador. O processo de escolha não é internacional, não é aberto e não é transparente e, portanto, os reguladores, eles próprios, eclipsaram-se.

Penso que este governo, quero dizer o Partido Socialista nos últimos quatro anos, foi ainda pior na forma como escolheu os reguladores. Temos o caso da Anacom, que foi bastante paradigmático, e também casos no Banco de Portugal, na CMVM, e isto reflecte que o processo de escolha dos reguladores já não é um tema sequer de debate. A escolha dos reguladores é parte das sinecuras dos partidos e isto está aceite e assumido, quer pelo PS quer pelo PSD, e, portanto, os reguladores assim funcionam.

Já aqui se falou dos efeitos da pressão externa em Portugal, uma pequena economia aberta, como é que este país se vai desenvolver num quadro de Brexit, com o futuro do euro a depender da Alemanha, com as democracias iliberais a exercer enorme pressão. Por exemplo, a nossa versão do estado social resistiria a uma implosão ou enfraquecimento da União Europeia?

É evidente que Portugal é uma pequena economia com muito pouco controlo sobre a sua capacidade de desenvolvimento económico. Ao contrário do que disse o Presidente da República, não somos a economia do avanço tecnológico e a economia preparada para ser o piloto desse progresso. Em muitas áreas, já estamos atrasados tecnológicamente em relação à média europeia e dos Estados Unidos. Agora, o que é assumido - e as últimas eleições reflectiram isso - é o compasso de espera: está tudo a aguardar a ver o que acontece na Europa.

E, enquanto nada acontecer, nós vamos crescendo a 2%, o que vai dando para distribuir mais uns rendimentos aqui, mais uns rendimentos ali, para manter a coligação social que impera em termos eleitorais, uma coligação de funcionários públicos com os pensionistas, mais ou menos, 2 milhões a 2,5 milhões de votos, e que são eles que decidem o status-quo eleitoral. Depois, a partir daí, há assumido que vamos esperar a próxima catástrofe económica, a próxima crise, e ver o que acontece. Se é no próximo ano ou não, isso não sei.

O próprio Presidente da República já tem esse discurso de "em 2020 vai ser muito complicado, o próximo ano vai ser muito complicado, afinal vai ser menos complicado porque vai haver menos crise económica". Há um total assumir por parte das entidades públicas de que Portugal já não controla o seu destino, não tem soberania sobre o seu destino, simplesmente está à espera de ver o que acontece na União Europeia e no mundo em geral.

"A minha previsão para os próximos dez anos é a de que vamos continuar neste processo de empobrecimento relativo, no desgaste das instituições democráticas, até ao momento em que algum factor, provavelmente até mais económico que social, acabe por transmutar o regime de uma forma em que haverá perdedores e ganhadores como houve nas mudanças anteriores"

É, então, deslocada a ideia de que um leitor de “Portugal, um retrato" ou um leitor desta entrevista pode concluir que as elites políticas e sociais em Portugal resistirão até ao limite às reformas profundas e estruturais - nunca aproveitando os tempos de "vacas gordas" onde os custos sociais podem ser diferidos - porque o reformismo é sempre a contra-gosto, a contraciclo e, sobretudo por imposição externa? A probabilidade maior é a de que continuará a ser assim, apesar de todos os desafios da nova economia e globalização?

Isto reflecte experiências históricas. Em Portugal, todos os regimes caíram sempre pelo seu desgaste interno, porque os regimes não aceitam mudar. Foi assim com a Monarquia, foi assim com o Estado Novo e, portanto, com este regime democrático não vai ser diferente. Apenas uma nota: quando digo que este regime democrático vai cair por si, não estou a dizer que, a seguir, vem aí um regime não democrático.

Há várias formas de democracia. Evidentemente, no discurso da praça pública, o actual regime partidocrático assume-se como sendo a única democracia possível. Não é. Há muitas formas de rearranjar a nossa democracia. Esta forma de arranjo da democracia datada de 1976 está, neste momento, já num estado de enorme desgaste institucional.

Essas formas de rearranjar a democracia passam por quê?

Não vão ser formas pacíficas. Seja qualquer for a opção, não será pacífica, porque o regime actual não aceita alterar seja o que for. Portanto, não vai ser um processo fácil como não tem sido em toda a Europa, como não tem sido em Espanha, como não tem sido no Reino Unido, na Hungria, na Polónia. Não vai ser fácil. Portugal está atrasado, mas vai lá chegar. É evidente que hoje, em 2019, já não temos o discurso de 2018 a dizer que somos o único país sem forças radicais no Parlamento. Já temos. Já não temos o discurso de ser o único país não polarizado em "esquerda radical vs. direita radical". Já estamos.

As coisas acontecem naturalmente atrasadas em Portugal. Chegam com atraso porque, historicamente, sempre foi assim. As coisas parece que já chegam atrasadas aos Pirenéus e, depois na fronteira do Guadiana, voltam a atrasar outra geração, mas as coisas acontecem.

Não há, apesar de tudo, um ar de esperança nesse "pessimismo antropológico" de que se reclama? Uma esperança que pode ser fundada na "geração mais bem preparada de sempre"', na "geração Eramus",e na pressão externa para uma "transposição" mais rápida dos Pirinéus?

Há dois aspectos: um positivo e um negativo. O positivo é o da emigração de quadros, uma emigração importante porque, por um lado, é verdade que afecta e diminui conjunturalmente a qualidade das elites em Portugal. Mas o facto de termos hoje muitos quadros pelo mundo fora, gente muito preparada e gente que de alguma forma voltará, mais cedo ou mais tarde, e isso, eu acho, vai ter um impacto importante na sociedade portuguesa.

... mas a sociedade portuguesa é descrita no livro como uma sociedade onde há "um combate ao estrangeirado"...

E há. Tanto que a palavra "estrangeirado" tem uma conotação negativa. Mas queria falar do outro lado negativo, o problema do capital social. Neste momento, a sociedade portuguesa tem um capital social muito baixo, o mais baixo da Europa. Ou seja, não há níveis de confiança. E isto é parte do problema que enfrentamos: os portugueses não confiam nos portugueses. Já não é o facto de não confiarem no Estado, é não confiarem nos portugueses. E, quando há níveis tão baixos de confiança, níveis tão baixos de capital social é muito difícil que haja uma transição consensual e pacífica de regimes.

A minha previsão para os próximos dez anos é a de que vamos continuar neste processo de empobrecimento relativo, neste problema de desgaste das instituições democráticas, das taxas de abstenção que vão continuar a subir até ao momento em que algum factor, provavelmente até mais económico que social, acabe por transmutar o regime de uma forma em que haverá perdedores e ganhadores como houve nas mudanças anteriores.

Escreve que o atraso não é um fado, mas a solução não é fácil. Romper com instituições extractivas ou elites endogâmicas não se faz por decreto ou em legislaturas de quatro anos e tudo o que era "conversa de café" há 150 anos passou agora para as redes sociais - talvez seja mais democrático e eficaz…. será quando acaba de dizer que os portugueses nem sequer confiam nos portugueses?

Mais democrático será, mas mais eficaz... Tenho as minhas dúvidas. É evidente que o que já havia há 150 anos - e muitos autores e filósofos e sempre notaram - essa enorme resistência à mudança a enorme aversão à mudança tem hoje esta explicação: é um problema de "baixo capital social". O que aconteceu é que, nos últimos 100 anos, não houve, de facto, um aumento desse capital social, pelo contrário, e neste momento o Estado e as instituições democráticas que foram uma grande esperança em 1974, 75, 76 e 77 têm hoje um défice de credibilidade que afecta a execução de políticas públicas e a capacidade de empreender mudanças.

Tenho muitas dúvidas de que possa haver um governo que tenha mandato nas urnas, um mandato suficientemente abrangente, para levar a cabo mudanças profundas em Portugal.

É preciso não esquecer que o actual governo tem apenas 1,9 milhões de votos. Como é óbvio tem toda a legitimidade democrática, porque ganhou as eleições e a Assembleia da República foi eleita democráticamente. As pessoas que não quiseram votar não votaram. Mas o governo tem o apoio de 1,9 milhões dos 9,2 milhões de adultos em Portugal. Um dado que dá a ideia da incapacidade que os governos sucessivamente vão ter quando não têm mandatos abrangentes da sociedade portuguesa para fazer mudanças.

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