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Opinião de Graça Franco
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A culpa é da "troika" e do Crato

04 dez, 2019 • Opinião de Graça Franco


É incrível a desvergonha e a desresponsabilização que a interpretação do ministro da Educação sobre o relatório Pisa 2018 revela.

Os nossos miúdos de dezasseis anos tiveram azar. Nisto estou de acordo com Brandão Rodrigues, no seu comentário aos resultados do PISA 2018 que acaba de avaliar a sua capacidade de aplicar conhecimentos em áreas-chave. Segundo a tese do ministro, o azar deveu-se a terem nascido no tempo errado, apanhado a "troika", a crise, o desinvestimento e, claro, as políticas educativas de Nuno Crato nos três anos anteriores. É incrível a desvergonha e a desresponsabilização que esta interpretação significa.

Estes miúdos não voltam a ter quinze anos, mas talvez António Costa possa olhar para os resultados obtidos e salvar os que hoje ainda têm onze anos. Para isso, talvez deva começar por travar os desvarios experimentalistas do atual ministro. Tanto mais que já não teremos nenhum outro indicador útil para nos indicar o caminho. As séries dos resultados das provas de aferição tornaram-se inúteis porque incomparáveis.

Sim. Tiveram azar. Viveram de crise em crise, reforma em reforma, contestação em contestação. Mas o seu pior azar foi o de, depois de Crato, terem apanhado com um ministro que dá este exemplo de assunção das responsabilidades e padece, de novo, da síndrome do iluminado. Pretende reescrever a história, mudar currículos, destruir os vagos instrumentos de aferição da qualidade. Um ministro que, tal como o antecessor, quis reverter, mudar, deixar a sua marca em nome de uma ideologia de pretenso sucesso. Como se o sucesso pudesse ser decretável a partir da 5 de Outubro e não tivesse de ser acompanhado de uma pedagogia de trabalho, rigor, persistência, esforço e resiliência.

Tudo coisas essenciais à sobrevivência num mundo ultra-competitivo. Neste, a pior exclusão será a do conhecimento porque vai ser sobre ele que se vai edificar tudo o resto. O que é grave é a fotografia traçada pelo PISA 2018. Essa é que devíamos começar todos a discutir.

Os próximos tempos serão de “excelência” e entre os jovens alunos portugueses, 43,6 por cento, ou seja, quase metade, a nível de interpretação de textos, fica-se pelos dois níveis mais baixos na escala, isto é, “ Não consegue identificar a ideia principal de um texto moderadamente longo (nível 2) e/ou “compreender o significado literal de frases e pequenas passagens, o tema principal ou a intenção do autor…” ( nível 1).

Custa pensar que um quinto dos nossos alunos revelou dificuldades em aspetos básicos de leitura e que apenas 7,5 por cento atingem os dois níveis superiores de interpretação numa leitura demorada. Isto significa que coisas tão básicas quanto entender os manuais de instrução de máquinas, a forma como se devem ou não tomar medicamentos, a interpretação de como se devem movimentar na cidade, o acesso à cultura estão praticamente vedado a boa parte dos nossos jovens (não estamos a falar de trabalhadores em idade ativa, mas da geração dos nativos digitais).

Contas feitas aos dois últimos ciclos de avaliação, os resultados são verdadeiramente desanimadores: entre 2012 e 2015, as competências de interpretação e leitura tinham aumentado dez pontos, colocando-se bem acima da média, e, agora, caíram 6, ficando-se o saldo positivo dos últimos seis anos em 4 pontos. Em Ciências, a subida com Crato tinha sido de 11 pontos e a descida de Brandão foi de 9, desastre total. Em Matemática, a subida do PISA anterior foi 5 e o último manteve a cotação, seis anos estagnados.

Os nossos nativos digitais não estão preparados para o século XXI. Nem a família nem a escola os preparou e agora, provavelmente, já não se vai a tempo de arrepiar caminho. O estudo diz-nos que para o mesmo grau de sucesso em Matemática e Ciências, 48 por cento dos rapazes já escolheu engenharias e só 15 por cento das raparigas optaram pelo mesmo. Viva a consagração dos estereótipos de género.

Nos meios favorecidos, 93 por cento dos alunos só se veem doutores, mas apenas metade dos jovens de meios desfavorecidos acha que talvez consiga lá chegar. À partida, são 43 pontos de diferença “ambicional” que nos faz ganhar o "óscar" da discrepância social entre os europeus.

Na Alemanha, a diferença é de 45 pontos, mas deriva de uma composição totalmente diferente: um quarto dos favorecidos acha que talvez não consiga seguir para a Universidade e praticamente um terço dos favorecidos também não sonha com ela e vê outras saídas.

Por cá, em matéria de ambição, sucesso e excelência salvaram-se, como sempre e sobretudo, os mais ricos. Portugal surge entre os países com maior disparidade económica social e cultural e um daqueles onde mais pesa a educação dos pais e as condições económicas de partida no sucesso social das gerações seguintes.

Em Portugal, a probabilidade de um aluno que se encontre entre os os 25 por cento mais desfavorecidos ficar entre os dois piores níveis de desempenho na compreensão de textos é três vezes superior à de um aluno vindo dos 25 por cento por cento mais favorecidos (a classe média alta/ ou alta)

O elevador social está parado. Mas o mito do ensino privado “para meninos ricos” e público para os desfavorecidos também morre aqui. Há segregação social? Há. Em ambas encontramos alunos muito ricos e muito pobres. Embora exista maior homogeneidade nas escolas privadas, ela está muito longe da que lhe é imputada. Uma seleção total de alunos implicava um nível 1 (nós ficamos em 0,4), não há um ensino para a elite . É bom ter isso em conta em políticas de financiamento indireto como a gratuitidade dos manuais escolares.

A culpa de Crato

Se o desaire de Brandão Rodrigues é culpa de Nuno Crato, o mérito de Maria de Lurdes Rodrigues deve ser imputado aos seus antecessores. O absurdo desta tese leva-nos à seguinte conclusão: depois de quatro anos de governo socialista, em que os resultados em Português subiram 17 pontos, em Ciências 20 e em Matemática 21, o quadro resulta do trabalho desenvolvido pela oposição e pelos três anteriores ministros que se sucederam a ritmo alucinante entre finais de 2002 e 2006. Foram eles que ofereceram uma política de estabilidade, consistência, continuidade e investimento que esteve na base do sucesso obtido nesse ano de 2009.

Alguém compra esta tese? Ninguém, senhor ministro, nem mesmo a direita ou o PSD. Não nos tome por tolos.

Nos últimos seis anos, os primeiros três foram de avanço e os três últimos de marcha atrás. Resumindo, lá continuamos a marcar passo. Podemos fixar o número que nos define em todos os domínios 492. Para consolo, estamos na média.

Médias são médias, mas para não deprimirmos de todo, a Itália, Espanha (481), Hungria, Estados Unidos e Grécia (451) ficam abaixo. Em contrapartida a Holanda (519), Dinamarca, Bélgica, Finlândia, Suécia, Reino Unido, Noruega, Alemanha, Irlanda, República Checa e França (495) estão todos acima e nem é preciso referir que a China encima o topo de excelência exibe 591 pontos com Macau a pontuar 558. Vale a pena pensar quem vão ser os novos senhores do mundo onde a Europa “corre atrás do prejuízo”, com a honrosa excepção Estónia (523), em levas sucessivas de testes perante a liderança consolidada da Ásia (China, Singapura, Japão e Coreia).

Há sempre maneiras de ver copos meios-cheios e meios vazios. Mas, depois de entornar o conteúdo, é geralmente difícil reencher o copo. Brandão Rodrigues está claramente a entornar o copo. Ninguém vê?

Comentários
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  • Antonio Gomes
    04 dez, 2019 19:57
    A culpa morre outra vez solteira.