Entrevista

A incrível vida do padre Adelino Ascenso. "Passei dez dias na selva com um pistoleiro"

28 nov, 2019 - 14:20 • Aura Miguel

Membro da Sociedade Missionária da Boa Nova, só depois dos 30 anos é que Adelino Ascenso decidiu ser padre, "quando estava num mosteiro tibetano no Nepal". Antes disso, e movido por uma "inquietação" que ainda hoje carrega, viajou pela América Latina e pela Ásia e chegou mesmo a "cumprir o sonho" de entrar no Tibete quando muito poucos estrangeiros tinham essa possibilidade. A propósito da visita do Papa Francisco ao Japão, país onde Adelino Ascenso viveu e trabalhou como missionário durante 12 anos, a Renascença sentou-se à conversa com o homem que deve o seu percurso na Igreja à pintura – concretamente, a uma exposição dos seus trabalhos que D. Serafim Silva decidiu visitar.

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Como é que foi parar a missionário?

Isso é uma longa história. Fui parar à Boa Nova a partir do momento em que decidi que gostaria de ser padre e talvez missionário; e isto decidi quando estava no mosteiro tibetano no Nepal. E depois, quando decidi, não fui bater a diversas portas, mas sim à primeira porta que era da Sociedade Missionária, e assim entrei.

Já conhecia a Sociedade Missionária da Boa Nova ou tinha lá alguém conhecido?

Não, foi-me apresentada por um grande amigo, então bispo coadjutor de Leiria-Fátima, D. Serafim Silva. Ele é que me apresentou a Sociedade Missionária, porque já me conhecia e, certamente na sua perspicácia, intuiu que eu, para vir a ser sacerdote, mais do que diocesano, deveria ser missionário. E então encaminhou-me para a Sociedade Missionária.

Provavelmente por conhecer o seu percurso de vida e o seu modo de ser, uma vez que só viria a ser ordenado padre com mais de 40 anos…

Sim, havia uma uma relação de amizade entre nós, ele conhecia o meu passado e as linhas pelas quais seguia e também conhecia o caminho que eu queria seguir.

Quando era novo, o que queria ser quando fosse grande?

Já não me recordo o que desejava, mas sei que não desejava ser padre. Aliás, eu costumo dizer que a minha vocação começou com uma recusa, quando a minha professora queria que eu fosse para o seminário, aos 11 anos de idade, e eu recusei.

E porque é que ela queria?

Não sei, não lhe perguntei. Certamente ela teria visto ou intuído alguma coisa e gostaria que eu enveredasse por esse caminho.

Talvez tenha identificado em si uma exigência maior...

Não sei, nunca falei com ela sobre isso.

Só se lembra do "não".

Recordo-me apenas do "não", porque isso foi muito forte na minha vida, pois a partir desse "não" começou uma luta com Deus que durou 25 anos, até decidir entrar no seminário, para ser ordenado padre.

Foram 25 anos de luta?

Sim, aliás, eu decidi um pouco antes, aos 30 anos de idade, quando estava num mosteiro tibetano no Nepal: é aquela história de sempre, ou seja, muitas vezes para descobrirmos o tesouro que está na própria casa, temos que viajar até longe e ver esse tesouro que está na nossa casa a partir de fora, a partir da periferia. Foi isso que eu fiz e quando estava no mosteiro tibetano, aos 30 anos de idade, decidi regressar às minhas raízes culturais e religiosas, para procurar e escavar na Igreja Católica, até encontrar aquela espiritualidade e essência que eu encontrava no budismo.

Mas antes de optar pelo seminário, como é que foi esse seu percurso de busca?

Eu fui para a Alemanha aos 22 anos de idade e dediquei-me ao estudo do alemão. Depois, dei aulas numa escola de línguas em Düsseldorf. Estudei e trabalhei simultaneamente. E fui para a Alemanha porque tinha o desejo de algo mais.

No fundo, partiu em busca de uma vida com outros horizontes...

Era uma necessidade de sair, a que o Papa Francisco agora apela, mas que eu já nessa altura sentia necessidade: sair de mim próprio e sair do meu centrozinho, daquele meio pequenino da província, da aldeia onde nasci. Sempre tive necessidade de romper fronteiras. Então, resolvi ir para a Ásia a partir da Alemanha.

Fez um pé de meia e depois partiu à aventura?

Fiz um pé de meia, principalmente, com base em exposições de pintura, porque eu dedicava-me à pintura. Fiz duas exposições na Alemanha que, felizmente, tiveram muito sucesso e isso foi o meu pé de meia para viajar pela Ásia.

E esse jeito para a pintura, aprendeu-o na Alemanha ou já vinha de Portugal?

Em criança já gostava. Cada um de nós tem sempre alguma forma de expressão, que pode ser a poesia, a pintura, a música... mas há sempre uma necessidade de nos exprimirmos. E eu exprimia-me, principalmente, através do desenho e da pintura.

E ainda continua?

Não, nem sei bem explicar porquê. Várias vezes me fazem essa pergunta e eu respondo sempre da mesma forma: é que agora pinto de uma outra outra maneira; é outro género de pinturas.

Voltemos à sua viagem à Ásia. Partiu sem destino ou tinha um objetivo?

Tinha um destino concreto, principalmente a Índia. Foi nos anos 80, naquela onda dos jovens que procuravam alguma coisa e partiam para o Oriente, esfomeados, quase a morrerem à míngua. Eu vivia na Alemanha, tinha uma vida aparentemente invejável, mas o meu coração estava cheio de espaços vazios e isso levou-me a partir para a Ásia. Portanto, o foco era a Índia, o Nepal e toda aquela zona, mas nem sequer sonhava entrar no Tibete, que era o meu desejo desde os 15 anos de idade, pois calculei que isso seria impossível.

Foi direto à Índia para onde e como?

Passei primeiro três meses na Índia. Até lá chegar atravessei a Turquia, o Paquistão, o Irão, à boleia também mas sobretudo usei transportes públicos. Atravessar o Irão era muito perigoso naquela altura, em 1984. Depois, atravessei o Paquistão, cheguei à Índia e fui diretamente para Bombaim, hoje Mumbai.

E, pelo caminho, onde é que pernoitava?

Ficava nos hotéis mais baratos ou então dormia o ar livre. Abro aqui um parênteses para recordar que, uma vez, no Uruguai, estava no meu saco-cama na margem de um rio, numa paisagem belíssima, a ver a lua cheia refletida nas águas do rio e comecei a contar os países onde eu tinha dormido ao relento só no meu saco-cama, e nessa altura eram 21 países. Portanto, havia uma grande ligação e comunhão com a natureza.

Mas a viagem ao Uruguai foi já depois da Índia...

Sim, essa foi a minha segunda grande viagem.

Voltando à Índia: porquê este país quando partiu da Alemanha?

Acho fundamental termos uma meta específica porque, se não tivermos uma meta, é como caminhar no deserto, se não tivermos um ponto de referência andamos à deriva. E eu tinha um ponto de referência que era a Índia. Cheguei à Índia e aí logo se veria...

Mas tinha alguém, algum contacto de referência, ou ia sozinho?

Não, ia sozinho...

Como um caminhante solitário?

Não solitário, mas sozinho (risos). Mas depois fui conhecendo gente, outros jovens que viajavam de forma idêntica, ou não. Depois, na Índia viajei de norte a sul, de este a oeste, passei lá três meses a viajar por diversos lugares. Depois da Índia parti para o Nepal.

A Índia não lhe bastava? Ainda não era aquilo que procurava?

Ainda não era aquilo, porque a minha intenção, na minha busca, era viajar por diversos países da Ásia. Foi isso que me levou ao Oriente. Fiquei quatro meses no Nepal e, nessa altura, estive num mosteiro tibetano, aí permaneci durante um tempo relativamente longo... Interessava-me estudar o budismo. Considerei que talvez fosse por aí, porque desde os meus tempos na Alemanha tive sempre uma grande simpatia pelo budismo, sentia-me muito próximo do budismo, ainda quando estava em Portugal mas sobretudo na Alemanha.

Mas não se ficou pelo Nepal e entrou no Tibete. Como conseguiu?

Este mosteiro ficava a 5 ou 6 quilómetros do centro de Katmandu. Havia ali vários estrangeiros e nós criámos um grupo de 16 para enviarmos os nossos passaportes para Hong Kong para obter um visto de entrada na China, através de um agente. Entretanto, enquanto o passaporte andou por aí, fui até aos Himalaias. Quando recebemos o visto, houve 15 que tentaram entrar em grupo diretamente no Tibete, mas não tiveram autorização e foram todos enviados para trás.

E não foi integrado nesse grupo?

Não fui, permaneci no mosteiro mais três ou quatro semanas e, depois, arrisquei ir para a fronteira, no meio de tibetanos e de nepaleses, mas eu era o único estrangeiro. Chegámos lá, entreguei o passaporte e fiquei em silêncio. Eles demoraram uns 15 ou 20 minutos a decidir: um abanava a cabeça que não, o outro procurava lá num livro... até que, a certa altura, puseram o carimbo no passaporte e deixaram-me entrar no Tibete. Então, um senhor que falava um pouco de inglês disse que eu era o primeiro estrangeiro a entrar no Tibete naquelas condições. Claro que fiquei radiante por cumprir o meu sonho de entrar no Tibete.

E o que fez no Tibete?

Em primeiro lugar, estava tão eufórico que fui caminhar sem me dar conta dos perigos que podia haver por ali e fui mordido por um cão, que podia estar raivoso. Disseram-me que devia ir ao hospital mais próximo, que era em Katmandu, a dois ou três dias de distância do local. Mas arrisquei ficar e, felizmente, o cão não estava raivoso!

Qual foi o seu destino?

Fui para Lhasa e depois saí para as montanhas. Foram experiências muito fortes porque "passear" pelas montanhas do Tibete a mais de 4.000 metros acima do nível médio das águas do mar, a dormir em grutas ou em casas de camponeses ou em templos tibetanos, claro que não foi fácil...

Como é que fazia? Como se entendia com a língua?

A língua era por gestos, por sorrisos e havia nos tibetanos aquela hospitalidade de receberem o hóspede, o estrangeiro. Ainda por cima, eu era o primeiro estrangeiro que eles viam aparecer naqueles lugares, porque aquilo, em 1985, não era permitido.

Encontrou miséria? Como era a situação de vida em relação ao Nepal?

Encontrei muita miséria. Não aquela que se vive ou se presencia em Katmandu, na grande cidade, mas a miséria das montanhas, daqueles que pouco têm para comer. É uma miséria diferente.

Mas no seu caso, quando lá chegou, não havia hotéis, nem pousadas, nem nada disso. Como é que fez?

Chegava a uma aldeia com a minha mochila e fazia gestos para dizer que precisava de comer e de dormir. Eu já tinha lido e sabia que aquilo funcionava assim. É que, normalmente, as pessoas não acolhem logo o estrangeiro, têm primeiro de consultar as autoridades da aldeia. Então, eu chegava à entrada de uma aldeia e fazia sinais se me davam alguma coisa para comer e algum lugar para dormir e depois esperava. Eles iam consultar os responsáveis da aldeia e decidir quem é que acolhia o estrangeiro.

Alguma vez lhe disseram que não?

Não. Tive experiências extraordinários como, por exemplo, dormir com os seminómadas em tendas, em lugares totalmente isolados. Claro que são experiências muito fortes, mas nunca me senti minimamente ameaçado.

E depois do Tibete, ainda regressou ao mosteiro do Nepal?

Estive no Tibete dois meses e meio e depois regressei a Katmandu. Estive mais três semanas no tal mosteiro, pois a cidade, em si, já não me interessava.

Mas vivia de quê?

Vivia do tal pé de meia que tinha trazido da Alemanha. Mas claro que o dinheiro foi acabando e eu, no Tibete, decidi regressar à Europa. Regressei à Alemanha um ano e um mês depois de ter partido para a Ásia.

E, na Alemanha, o seu coração continuou inquieto?

Sempre, ainda hoje continua inquieto. E oxalá que o meu coração continue sempre assim, inquieto.

Mas deu-se conta de certos contrastes quando lá chegou, por exemplo, relacionados com o estilo de vida nas cidades grandes da Europa, em que temos tudo facilitado...

Claro, a valorização, por exemplo, de um duche quente. No Tibete, eu banhava-me nos rios e com temperaturas muito frias, mas desse luxo de tomar um banho quente já não nos damos conta na Europa. Claro que há um grande contraste, de tal forma que eu não me sentia muito bem na Alemanha.

Porquê, era tédio... rebeldia?

Talvez uma mistura de tédio e rebeldia, porque era muito rebelde interiormente, talvez uma insatisfação... Era a continuação da busca. Então, depois de seis meses, como um pêndulo entre Alemanha e Portugal, voltei a partir, para a América Latina. Aí passei 15 meses, mas foi uma viagem muito aventureira, porque parti sem dinheiro e sem dia de regresso.

Essa foi mesmo radical!

Foi mesmo radical. Eu queria ter a experiência da América Latina e não só a experiência da Ásia, para fazer o contraste.

Quantos anos tinha na altura?

Tinha 30.

E usava cabelos compridos e fitas na cabeça?

Não, fitas nunca usei. Cabelo comprido, sim, relativamente. Também não tinha tempo nem dinheiro para ir ao barbeiro.

Mas se partiu sem dinheiro e sem bilhete de regresso, vivia de quê?

Trabalhei. Por exemplo, estive na exploração do ouro, no chamado garimpo selvagem, aí encontrei algum ouro, pouco, que me deu a possibilidade de apanhar um avião militar do Peru novamente para o Brasil.

A dureza desse trabalho é como se vê nas fotografias ou é diferente?

Não é como se vê nas fotografias da Serra Pelada, onde o garimpo é organizado. Este garimpo onde eu estive é o denominado garimpo selvagem ou garimpo de rio. Claro que aí também tive experiências muito positivas, passei pela experiência de conhecer um pistoleiro com quem andei pela selva durante dez dias.

Em que zona?

A selva amazónica, no estado do Mato Grosso, 750 km a norte de Cuiabá.

E como é que o acompanhava?

Ia a pé com ele, cada um com a sua catana, a abrir caminho e a comer o que encontrávamos. A comunhão com a natureza foi uma das tónicas fundamentais que, de certo modo, também sempre me orientou.

"Deus acompanhou-me sempre, ombro com ombro. Alguém diz que 'Deus gosta de quem luta com ele' e eu senti essa presença divina várias vezes."

Essa experiência na América Latina durou mais tempo do que a outra aventura pela Ásia...

Sim, e durou mais tempo porque eu não tinha possibilidades de regressar, não tinha bilhete de regresso. Estive em Guayaquil, no Equador, em vias de embarcar num barco que ia para o Japão, para trabalhar e assim ganhar a minha viagem, mas o Japão ficava demasiado longe da Europa...

Nem sonhava que mais tarde iria lá parar...

Não, não sonhava. Depois, estive também em Santos à espera de um barco que me levasse a Hamburgo, mas os barcos quando aportavam em Santos já vinham completos de Buenos Aires, e também não tive hipótese. E depois de seis semanas de espera, indo lá todas as semanas perguntar, desisti.

Como acabou por regressar à Europa?

Estava no Peru, juntei todas as minhas economias e comprei o bilhete mais barato que encontrei, na Aeroflot, e fiz uma longa viagem de 24 horas, com escalas em Cuba, no Canadá, na Irlanda, até chegar ao Luxemburgo.

E Deus no meio disso tudo? No Tibete estava no mosteiro mas e na América Latina?

Deus acompanhou-me sempre, ombro com ombro. Alguém diz que "Deus gosta de quem luta com ele" e eu senti essa presença divina várias vezes. Recordo uma vez, no Equador, quando a caminhar pelo meio da selva sozinho, entretanto escureceu e eu tive de me atirar ao chão, para dormir e enrolar-me num plástico, chovia abundantemente e eu estava no meio da selva, escutava os sons indecifráveis à volta, estava sem sapatos, só com calções, todo molhado... Exausto e cheio de medo. Mas houve um momento em que eu pensei: "Não, Adelino, tu já passaste por situações muito perigosas e tu vais ver que daqui a algumas horas o dia nasce e nada de mal te terá acontecido." Aí senti essa presença divina, ombro com ombro. Tive várias experiências desse tipo.

Chegado à Europa, para onde foi e o que é que fez?

Depois de regressar sem dinheiro nenhum no bolso recomecei a dar aulas, principalmente de línguas. Primeiro estive na Alemanha, mas depois vim definitivamente para Portugal.

E sem esquecer a decisão que tinha tomado no mosteiro tibetano, à procura das raízes espirituais na sua terra e a discernir?

Exatamente. Comecei a discernir, a caminhar e a organizar as coisas para poder, então, enveredar por esse caminho. Continuei a dar aulas, a fazer traduções e voltei a dedicar-me, com bastante intensidade, à pintura. Foi aí que travei conhecimento com vários pintores portugueses.

E expunha os seus trabalhos?

Fazia exposições e também era diretor artístico de uma galeria de arte em Leiria. Um dos pintores que conheci foi o Artur Bual, com quem estabeleci uma amizade muito intensa até eu partir para o Japão. Foi uma amizade bastante forte, com ele e também com a sua esposa.

E nessa altura que idade é que tinha?

Tinha 34 anos.

E foi então que se cruzou com o bispo de Leiria?

Sim, é curiosa a forma como cruzei com o antigo Bispo de Leiria-Fátima, o D. Serafim. Recordo que nos conhecemos no dia 8 de janeiro de 1988. Eu tinha feito uma exposição em Leiria e estava a tomar um café e, a certa altura, um jornalista veio ter comigo e disse: "Olha, está ali um padre a ver a exposição e diz que quer falar com o artista."

A exposição tinha algum tema específico?

Não tinha tema, era apenas o meu estilo principalmente surrealista, a óleo, aguarela e também uma técnica a esferográfica.

E como foi o encontro?

Fui lá falar com aquele padre, que afinal era bispo, era o D. Serafim, coadjutor de Leiria-Fátima. Estabeleceu-se uma relação muito próxima, que perdura até hoje, pois continuamos a ser muito amigos. A partir desse momento, começámos a privar um com o outro. Eu partilhava as minhas experiências, o que pensava e sentia, o que tinha vivido e o que queria viver.

Quando decidi entrar no seminário não disse nada a ninguém - porque sempre gostei de tomar as decisões sozinho - mas, depois de ter tomado a decisão de entrar no seminário, disse ao D. Serafim e perguntei-lhe o que é que é que ele achava. E ele disse: "Olha, já tinha pensado nisso, mas não te tinha dito nada, precisamente porque te conheço, não te queria influenciar.”

Como é que ele tinha percebido?

Ele é muito perspicaz e conhecia-me muito bem. E quando eu lhe disse que gostaria de ser padre, que era essa a minha meta, ele comentou: "Bom, está bem. Eu acho que, tendo em conta o teu percurso, deverás ser missionário." E foi assim que ele me encaminhou à Sociedade Missionária e eu entrei.

Portanto, partiu para o Porto...

Fui para o Porto, para o seminário de Valadares. Fiz o curso filosófico-teológico na Católica no Porto e vivi no Seminário de Valadares.

Com altos e baixos, com mais ou menos entusiasmo?

A decisão estava tomada, eu tinha 37 anos. E quando se toma uma decisão aos 37 anos, com tudo o que isso significou, ou seja, romper com muitas coisas, eu tinha namorada… Portanto, foi algo muito doloroso. Mas, a partir do momento em que se toma uma decisão, tão radical e com tanto sofrimento, é um absurdo voltar para trás. Quer dizer, nós temos de procurar uma razão para prescindir da vida que se tinha, por isso, é claro que houve dúvidas, crises e interrogações...

Até é saudável... seria estranho se não houve crises.

Claro que ouve momentos em que eu pensei: "Porque é que eu deixei a vida que tinha para estar agora aqui nisto? Será que eu vou encontrar aquilo que desejo e procuro aqui?" Mas vamos amadurecendo. No início é mais difícil, porque uma decisão aos 37 anos é uma decisão muito radical, temos de deixar a vida que levamos para enveredar por uma vida completamente diferente. E vamos com uma carrada de exigências que faça contrapeso com aquilo que deixámos para trás. E aí surge, naturalmente, a deceção.

É preciso largar tudo, não é? Para ficar limpo dos vícios que se traz...

Exatamente. Portanto, foi uma experiência de kenosis [esvaziamento] muito intensa, muito forte

E quando é que foi ordenado?

Fui ordenado com 43 anos, no dia 21 de fevereiro de 1998, em Leiria, pelo D. Serafim.

E neste seu percurso, qual foi a sua experiência missionária?

Na Sociedade Missionária da Boa Nova fiz uma experiência de dois meses como missionário em Angola. Foram dois meses em tempo de férias, porque disse ao meu formador que gostaria de passar esses dois meses em missão. Não queria gozar férias, mas viver intensamente esse tempo.

Fui para a zona da Quilenda, na diocese do Sumbe. Vivia, principalmente, na paróquia da Gabela e depois levaram-me para uma aldeia que ficava lá na Quilenda, mesmo na África profunda, foi uma experiência muito forte e intensa.

E como é que foi parar ao Japão?

Quando entrei na Sociedade Missionária, em 1991, entrei logo com a ideia de propor que a Sociedade Missionária se abrisse ao Oriente, porque não tinha lá missões. Claro, eu tinha acabado de chegar, as pessoas escutaram-me mas sem resultado imediato. No entanto, a ideia permaneceu no meu coração e, quando eu estava em vias de ser ordenado diácono, já tinha escrito ao superior geral com esta proposta, a dizer que, se isso acontecesse, eu estaria disposto a ir. Nessa altura, propus a Índia ou o Japão, como um género de trampolim para se chegar a outros países da Ásia.

Ganhou o Japão.

Sim, depois de ordenado diácono, fui fazer um curso de missiologia a Madrid, já em preparação para o Japão. A Sociedade Missionária apostou no Japão, porque havia então algumas dificuldades para os missionários entrarem na Índia, enquanto que para o Japão era mais fácil. Portanto, eu recebi imediatamente um visto por três anos e parti para o Japão.

E tinha lá contactos?

Fui viver com um padre do Instituto das Missões Estrangeiras de Espanha. Eles já trabalhavam lá e eu integrei-me no grupo deles, em Osaka.

E a língua?

O japonês é muito difícil. Nós ainda hoje, quando chegamos ao Japão, dedicamos os dois primeiros anos ao estudo da língua, num regime intensivo de quatro horas por dia, cinco dias por semana, com muito trabalho de casa, durante dois anos. E assim se vai aprendendo, gradualmente, a falar, a ler e a escrever, por esta ordem de dificuldade. Claro que cada um tem o seu ritmo, uns aprendem mais rapidamente, outros mais lentamente e, depois, começamos a trabalhar.

Já conhecia o Japão?

Não. Conheci muito japoneses principalmente quando estive na Alemanha, mas o Japão não conhecia.

E quantos anos viveu no Japão?

No total, estive 12 anos no Japão. Vivi lá seis anos, depois fui para Roma estudar quatro anos e voltei para mais seis anos. E depois, vim para Portugal.

Como foi o confronto com uma realidade assim tão diferente, nas regras de convívio social, nas saudações e no estilo silencioso que assumem, na própria vida da Igreja Católica... quer partilhar connosco a maneira como foi conhecendo o Japão?

O Japão é um país fascinante, mas é muito difícil estabelecer amizades com japoneses. É muito difícil, para um estrangeiro, entrar naquele círculo, porque há um conceito na cultura japonesa, que está no sangue de cada japonês, que é o conceito de harmonia. E a harmonia implica que o japonês sozinho não existe, existe na família, na empresa, etc, e são como uns círculos concêntricos. Ora, um estrangeiro é um corpo de fora, por isso dificilmente entra num desses círculos, simplesmente não lhe é permitida a entrada.

Por exemplo?

Por exemplo, o círculo da família: eu passei 12 anos no Japão e só entrei em casas de famílias quando fui visitar doentes católicos. Era muito raro, praticamente só entrei em duas ou três casas de famílias japonesas. Mesmo os católicos vivem nesse conceito dos círculos concêntricos, dos círculos fechados onde é muito difícil um estrangeiro entrar.

É verdade que, no Japão, há um provérbio que diz "prego que se destaca precisa de ser martelado"?

É exatamente isso, para o nosso conceito é bem estranho. Mas tem a ver, precisamente, com esse termo da harmonia, que atravessa toda a cultura japonesa como um fio de luz. Portanto, se nós não entendermos nem valorizarmos essa necessidade que o japonês tem de viver em harmonia, sentimos sempre a reação do japonês como um ato de frieza, mas que não é. Porque os japoneses são muito sentimentais e até são muito calorosos, não parecem, mas são.

Expressam-se de uma maneira diferente e nós não os sabemos ler...?

Exatamente. Se entramos no Japão e passamos lá alguns anos, temos sempre de fazer um exercício de inculturação. É imprescindível, de outra forma a pessoa desiste ou enlouquece.

E como é que aprendeu isso?

No segundo ano da minha permanência no Japão fui viver com um sacerdote japonês. E, a partir daí, pedi ao arcebispo que me nomeasse para uma equipa só com sacerdotes japoneses, para mergulhar um pouco mais na sua cultura. Isso fez-me muito bem, ajudou-me a entrar, apesar de não ter a pretensão de dizer que conheço bem a cultura japonesa: não conhecemos a cultura japonesa, nem nos portamos como os japoneses, somos sempre estrangeiros. E é bom que seja assim. Agora, temos é de fazer sempre um exercício de inculturação para tentar entendê-los. E, nesse sentido, o Japão é extremamente rico.

Em que sentido, por exemplo?

Por exemplo, na saudação que os japoneses fazem ao inclinarem-se. No início da Eucaristia, habitualmente, o padre entra na igreja e beija o altar, mas no Japão nunca se beija o altar, porque isso tem outra conotação. Portanto, faz-se uma inclinação. Depois, na saudação da Paz, nós abraçamos, beijamos ou damos um aperto de mão, mas no Japão faz-se uma inclinação. E esta inclinação pode ser ainda mais calorosa do que um simples aperto de mão, um abraço ou um beijo. É isto que temos de entender.

Outro exemplo: costumamos dizer que os japoneses não expressam aquilo que sentem, porque estão sempre a sorrir e não sabemos o que estão a pensar. Mas se convivermos com japoneses e entrarmos no ambiente em que eles deixam cair as máscaras, nós vemos o que eles são na realidade.

Os portugueses são bem vistos no Japão? É verdade que os japoneses têm grande admiração por nós?

É verdade, os japoneses têm uma grande admiração pelos portugueses. É que Francisco Xavier chegou ao Japão em 1549 e muito japoneses continuam a pensar que ele era português. Claro que não perco uma oportunidade para lhes dizer que ele não era português… Mas, de facto, há uma grande proximidade aos portugueses, até na própria História da Igreja no Japão. Por exemplo, o Bispo Luís Cerqueira chegou ao Japão em 1598 e foi um homem notável, porque logo em 1601 criou um seminário destinado à formação para o clero local. Ele foi buscar os sete melhores alunos ao Colégio Jesuíta e meteu-os nesse seminário e, em 1604, ordenou o primeiro padre japonês, filho de mãe japonesa e pai português.

Outra grande ligação está expressa na História do Japão escrita por Luís Fróis (que chegou a Quioto em 1564), tudo isso são elementos que os japoneses estudam na sua própria História.

O Papa Francisco, quando era jovem, pediu aos seus superiores para ir para o Japão e cumpriu agora o seu grande sonho. Como é que olha para esta visita do Papa?

Olho com grande esperança. É uma visita importante, sobretudo para os poucos cristãos católicos japoneses, mas não só para eles, porque o Papa é uma figura de referência até para os não-cristãos, é uma autoridade do ponto de vista humano. Nesse sentido, encaro esta visita com grande esperança, como mensageiro da paz para o mundo inteiro.

Os dados revelam que o número de católicos não aumenta no Japão...

Talvez os católicos cresçam interiormente. Acredito que muitos valores cristãos estejam ensopados na terra da cultura japonesa, mas não acredito numa conversão explícita em massas, isso não é para o Japão.

E são penalizados se se converterem? Enfrentam algumas consequências?

Tem algumas consequências publicamente, mas já não há perseguição. Isso terminou em meados do século XIX, depois de 250 anos de perseguição. Agora, há total liberdade de culto, só que ainda há muitas complicações, que exigem dos missionários o tal exercício de inculturação.

Quer explicar melhor?

Por exemplo, há muitas interrogações sobre a forma de tratar os antepassados, que eram budistas ou xintuístas. Eles questionam: "Se morremos como cristãos, vamos para o paraíso, mas onde estarão os meus antepassados? Não vou encontrar os meus antepassados?". Esta é uma interrogação frequente.

Depois há outra coisa mais pragmática sobre o cemitério: "Os meus antepassados estão no cemitério budista, mas eu quando morrer vou para o cemitério cristão; então como é, as minhas cinzas não ficam juntas com as cinzas dos meus antepassados?". São questões muito importantes, de influência confuciana, relacionadas com o respeito ancestral.

Questões que, no entanto, não o desanimam como missionário... Esteve lá 12 anos e, se calhar, tem vontade de voltar...

Claro que não desanimei. Eu apaixonei-me pelo Japão. E não me canso de repetir que não há missão sem paixão e eu apaixonei-me pelo Japão. Tal como me apaixonei pelo trabalho que estou a fazer agora em Portugal e como espero apaixonar-me pelo trabalho que farei no futuro.
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