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Entrevista

Bispo auxiliar de Caracas: "Na Venezuela não se corre o risco de uma guerra civil"

26 nov, 2019 - 06:35 • Ângela Roque

O bispo auxiliar de Caracas, José Fernández, não acredita num conflito generalizado, porque o povo venezuelano é "amante da paz". Em entrevista à Renascença, agradece a ajuda da Cáritas Portuguesa e denuncia a "grave crise humanitária" que já levou mais de quatro milhões e meio de pessoas a deixarem o país.

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José Fernández é bispo auxiliar de Caracas e subsecretário da Conferência Episcopal da Venezuela. Em Portugal a acompanhar uma delegação de representantes da Igreja venezuelana, falou à Renascença sobre a situação no seu país, onde as instituições da Igreja continuam a ser o principal apoio da população. Um papel que “é reconhecido”, diz, pela ajuda material que prestam, mas também pela atitude de “proximidade” ao povo.

Aos portugueses pede que não esqueçam a Venezuela e que continuem a apoiar a população através da Cáritas Portuguesa.

Qual é o objetivo desta visita a Portugal?

Queremos estabelecer laços de comunhão, de intercâmbio com a Conferência Episcopal Portuguesa e com a Cáritas de Portugal. É um povo próximo. Muitos portugueses que foram viver para a Venezuela nos anos 40 e 50 estabeleceram-se lá com a sua religiosidade, a sua devoção à virgem de Fátima, cuja festa se celebra na Venezuela, e de maneira especial em Caracas. Mas o que nos trouxe foi esta comunhão que o Papa propõe, para que a Igreja ajude as igrejas em necessidade.

É o vosso caso?

É, apesar de sermos um país tão rico, com tantos minerais e petróleo, vivemos uma situação de grave carência.

Só vão manter contactos com a Igreja em Portugal?

Sim, com a Conferência Episcopal e com a Cáritas Portuguesa, as duas instituições com as quais estamos a cooperar e que estão a ajudar os venezuelanos.

A Cáritas é como que o braço direito, vamos dizer assim, o braço social da Igreja, é a encarnação do Evangelho do ponto de vista social, na ajuda aos mais pobres e desfavorecidos. Não é uma simples ONG [Organização Não-Governamental], não faz caridade sem oração, torna visível o rosto misericordioso de Deus através do serviço solidário que presta.

"A situação atual é difícil. É uma sociedade que está deprimida, as pessoas vivem com uma atitude de pessimismo, porque não conseguem ultrapassar as muitas dificuldades económicas. A Venezuela enfrenta uma trágica crise humanitária, porque não tem havido políticas que favoreçam o bem do povo"

Tem sido importante a ajuda da Cáritas Portuguesa?

Sim, estamos muito agradecidos por toda a ajuda que nos têm prestado, com proximidade, com a sua oração e através de vários programas que nos têm ajudado a enfrentar a trágica situação em que vive o povo venezuelano.

Como está a situação atualmente na Venezuela?

A situação atual é difícil. É uma sociedade, podemos dizer, que está deprimida, as pessoas vivem com uma atitude de pessimismo, porque não conseguem ultrapassar as muitas dificuldades que se apresentam do ponto de vista económico. O salário mínimo mensal de uma pessoa é de 5 euros, há uma hiperinflação...

Vive-se uma crise humanitária?

Sim, a Venezuela enfrenta uma trágica crise humanitária, porque não têm havido políticas que favoreçam o bem do povo.

E nada mudou ainda?

Pouca coisa, algumas decisões foram meros paliativos. Houve ajuda governamental para as pessoas mais pobres, que não chegou a toda a população.

A Igreja Católica e as suas instituições, como a Cáritas, continuam a ser o principal suporte da população?

Sim, sim. Na Venezuela cresceram muito as Cáritas paroquiais e as Cáritas diocesanas fortaleceram-se, graças também ao trabalho que realiza a Cáritas Nacional, da Conferência Episcopal da Venezuela, que coordena todos os programas para servir e ajudar as pessoas. Há muita falta de recursos, sobretudo de alimentos. Criaram-se linhas solidárias para distribuição de comida, há locais onde já se distribuem pequenos almoços. Também temos bancos médicos para ajudar as pessoas que não têm acesso a fármacos.

Há muitas pessoas necessitadas no país?

Cerca de 70% da população está a precisar de ajuda e a viver uma crise humanitária e de saúde. Vivemos uma crise em todos os aspetos, não apenas crise política, mas também alimentar, económica. Alterou-se o modo de vida. Por exemplo, ao nível educativo, muitas crianças e jovens deixaram de ir à escola por não terem uma alimentação suficiente para conseguirem estudar... muitas não têm comida, nem roupa, nem calçado.

"Esperemos que a comunidade internacional mantenha a situação na Venezuela na agenda e que, a nível mundial, mas sobretudo a Europa, continue a ajudar a Venezuela, que não se esqueçam de nós"

O que é que faz mais falta? Alimentos, medicamentos?

Medicamentos sim, mas produtos alimentares também, muito. As pessoas comem o que há, sem equilíbrio, e a ingestão de mais hidratos de carbono já fez aumentar os casos de diabetes. Nota-se no rosto de muitos venezuelanos que estão deprimidos, por um lado, e por outro vê-se no seu estado físico que têm falta de alimentos.

Esperava mais ajuda da comunidade internacional?

Esperamos que a comunidade internacional mantenha a situação na Venezuela na agenda e, que a nível mundial, mas sobretudo a Europa, continue a ajudar a Venezuela, que não se esqueçam de nós. Porque procuramos uma saída para esta crise e a saída passa por mudanças no estilo de Governo, que não explore os mais pobres para se manter no poder.

Há perseguição aos católicos na Venezuela?

Há assédio, podemos falar de assédio. Pintam as paredes das igrejas e das casas paroquiais quando o discurso de determinado sacerdote enfrenta o Governo. Nós, sacerdotes e religiosos, não queremos causar caos nem desestabilização social, mas queremos que se promovam melhores políticas e que os venezuelanos tenham qualidade de vida. Às vezes falamos disso.

Penso que as dificuldades fortaleceram a vida de fé dos venezuelanos.

A população reconhece o papel da Igreja?

A presença e assistência da Igreja é reconhecida, sim. As pessoas confiam na Igreja Católica porque tem estado sempre próxima, através dos sacerdotes e das religiosas. Não se trata só de dar ajuda material, estamos próximos, as pessoas sentem que não estão abandonadas.

O apoio do Papa tem sido importante?

Tem sido fundamental. O Papa já se pronunciou em várias ocasiões, embora alguns já tenham tentado dizer o contrário, desacreditando-o. Não é um ator político, mas teve um papel importante na busca de uma saída para o problema da Venezuela e em várias ocasiões teve muito presente a vida dos venezuelanos e rezou por nós. Está preocupado.

Que solução vê para o futuro da Venezuela?

Uma das soluções que os venezuelanos têm, como crentes e pessoas de bem, é ensinar aos filhos os valores. Em termos de saídas… seria necessária uma educação que valorize a dimensão religiosa, a vida. Sem educação não há futuro na vida dos povos. Se educamos, cultivamos o espírito e cultivar o espírito é cultivar a renovação, que é a força dinâmica que faz com os os povos progridam.

"O povo venezuelano gosta de paz, é amante da paz, e quer que as soluções sejam pacíficas. E a Igreja promove essas soluções, através de vários comunicados e apelos que temos feito pedimos saídas pacíficas"

Mas progredir é difícil com o atual regime?

Mais do que difícil, é impossível. Mas os cristãos têm esperança, e têm de esperar como os camponeses, que aguardam que o seu cultivo desenvolva. É o que estamos a fazer.

Não receia uma guerra civil?

Creio que na Venezuela não há condições para haver uma guerra civil, não. O povo venezuelano gosta de paz, é amante da paz e quer que as soluções sejam pacíficas. E a Igreja promove essas soluções, através de vários comunicados e apelos que temos feito pedimos saídas pacíficas. Isso é o mais importante, porque a guerra o que traz é violência, morte, destruição.

Mas acredita na mudança pacífica de regime? Na destituição do atual Presidente, Nicolás Maduro?

A saída tem de passar por eleições, para que se possa de novo reconhecer as várias autoridades do país, não só a nível da presidência, mas de todos os departamentos do Estado.

A saída terá também de passar por uma mudança de mentalidades. A população tem de reaprender que é pelo trabalho que se conseguem as coisas. Ora, estes regimes baseiam-se na mentalidade da dependência, mas o ser humano é um ser criador, tem capacidade de criar, de ser empreendedor e de ser agente de transformação, da sua vida e da vida dos seus semelhantes.

A mudança terá ainda de passar pela família, se recuperarmos as famílias também recuperamos o país.

Uma das coisas tristes da atual crise foi que muita gente deixou a Venezuela, saíram mais de quatro milhões e meio de pessoas, para tentarem vida noutros locais e ajudarem os familiares que ficaram. Em muitos casos partiram os pais, pai e mãe, e os filhos vão crescendo com carências afetivas a nível familiar.

Quer deixar algum apelo aos portugueses?

Que não se esqueçam dos seus concidadãos, dos portugueses que estão na Venezuela, porque ajudando os portugueses também ajudam o país e todos os venezuelanos a passarem menos necessidades.

Não queremos ser um país que dependa de outras nações, mas precisamos de ajuda. Ajudem-nos através da Cáritas, neste momento em que faltam alimentos e tudo o mais. Mas ajudem também na busca de soluções políticas, das melhores soluções para todos, portugueses, mas também italianos, espanhóis, tanta gente que foi para a Venezuela depois da II Guerra Mundial, porque encontraram um país de possibilidades. Acreditamos que um mundo novo é possível.
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