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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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​Bebés portugueses com horário “escolar” de 40 horas

26 nov, 2019 • Opinião de Graça Franco


Vivemos ensanduichados entre os “bons trabalhadores/ e ou péssimos pais”. A culpa é da economia que não apenas nos “mata” mas nos formata.

Abaixo os complexos de culpa. Todos somos vítimas do produtivismo. Vem agora o Conselho Nacional de Educação (CNE) dizer que o horário dos nossos bebés ronda as 40 horas. Ainda pior do que o dos pais. Muito pior que a média de permanência escolar dos bebés europeus ( mais dez horas em média!).

E de quem é a culpa? Dos pais que desaprenderam de brincar e se habituaram a fazer da creche e das amas pequenos armazéns de criancinhas? Ou daquela enorme maioria, que não tem outro remédio, e chega exausta a casa, já sem forças para colo, com as compras para fazer, a casa para arrumar, o jantar por servir e a boca seca de beijos? Até nisso a culpa é da economia que não apenas nos “mata” mas nos formata dos zero aos 66 com o seu utilitarismo asfixiante.

Vivemos ensanduichados entre os “bons trabalhadores/ e ou péssimos pais”. Escravos é que sempre.

Se a mãe e o pai trabalham 35 horas cada e levam quase duas horas em transportes, não há maneira das criancinhas ficarem nos berçários, nas amas e nas creches menos de 36 horas. Se os pais trabalham 40, elas ficarão no mínimo 41. Mas há pior: há quem gaste muito mais a chegar ao trabalho, tenha duplo emprego ou trabalho por turnos e deixe as suas crianças entregues a cuidadores bastante mais tempo.

Resumindo: os nossos “sub-5” estão fora de casa mais dez horas por semana em média do que os seus pares europeus. Nem se trata de lutar pelas 35 horas ou pela semana inglesa da pré-escolaridade infantil. Precisamos de lutar por chegar, todos, ao século XXI, pelo direito das crianças ao colo dos pais e o nosso direito a brincar com elas.

Comecemos pelo inferno laboral dos pais. Vivemos literalmente para o trabalho. Avaliamo-nos pelo que fazemos e medimos o sucesso pelo que ganhamos. Daí estarmos a um passo de nos definirmos pelo que temos e não temos. Sem tempo para saber o que valemos ou o que somos. Pior ainda, sem tempo para podermos conhecer e acompanhar o crescimento dos nossos filhos ou sequer brincar com eles.

E querem que tenhamos mais filhos? Mesmo que não falte dinheiro e até haja vontade, educamo-los com que tempo?

Dos pouco mais de quatro milhões da nossa população ativa um quinto (750 mil) ganha o salário mínimo, o tal que passará a 635 euros em janeiro. Em média trabalhamos 36,1 hora por semana, o que significa mais dez horas do que um alemão ou um dinamarquês e mais três e meia do que um espanhol. Mais seis horas em média, ou seja, quase mais um dia de trabalho por semana do que a média europeia. Gastamos oito horas em transportes, o que significa, “grosso modo”, hora e meia por dia ou quase lá (a acreditar no inquérito IPSOS de Abril de 2017)

Mas há mais: na Europa 18,5% das mulheres em idade ativa trabalha a tempo parcial, na Alemanha mais de um quarto e na França mais de um quinto. Por cá apenas 8 por cento não trabalha a tempo inteiro. E é evidente que a maioria não o faz por opção, mas apenas porque os salários são tão baixos que não permitem a quase ninguém abdicar mesmo temporariamente de metade da remuneração.

Assim, não admira que na Europa o pluriemprego ronde em média os 4% (2,5 entre os menos instruídos e pouco mais de 5 nos com mais instrução e possibilidade de escolha). Por cá, entre os indiferenciados a percentagem é a mesma mas duplica para os graus de instrução superior, ficando-se nos 8 por cento.

Para cúmulo , além de uma percentagem quase dupla de pluri empregos e menos de metade de empregos parciais, se fizermos as contas à média de horas trabalhadas acabamos a trabalhar mais três semanas anuais do que alemães e holandeses e ainda temos menos três dias de férias, como nos mostra um trabalho de Frederico Cantante (Observatório das Desigualdades do ISCTE - dados de 2017).

Não é preciso muito mais para percebermos até que ponto as nossas vidas profissionais explicam porque temos tão poucos filhos e cada vez mais tarde. E também porque a forma como nos organizamos laboral e socialmente dizem tanto sobre as nossas vidas: se pelo menos um quarto dos pais trabalham muito mais horas do que a maioria dos seus parceiros europeus, gastam um tempo infinito de transportes, tem muitas vezes duplo e triplo emprego - que tempo lhes sobra para brincar com os filhos?...

Há aqui dois direitos humanos a ser violados: o direito à infância e o direito ao lazer. Não adianta culpabilizar os pais exaustos e sobretudo as mães por terem desaprendido de brincar e algumas vezes delegarem no berçário ou na ama, mais do que deviam ou podiam. Há também aqui uma questão cultural. Em múltiplos países o pré-escolar é valorizado como uma forma essencial ao sucesso de uma escolaridade futura. Mas, em pé de igualdade, exige-se a participação dos pais na responsabilidade da estimulação precoce.

Os horários escolares são feitos à medida da disponibilidade dos pais. Se a mãe estiver em casa ou desempregada, a criança não pode ficar fora de casa mais de 4 a 5 horas e tem obrigatoriamente de ir comer a casa. Não pode faltar às duas horas de “aprendizagem ativa”, o que faz da vida em família uma autêntica correria. Em contrapartida, a escola abre das 7 às 19, mesmo no berçário e na creche, para o caso de isso se mostrar indispensável para o apoio familiar a pais que trabalham longe ou em sectores como os serviços. Não há escola a tempo inteiro para quem opte pelo comodismo ou não precise dela.

Em matérias culturais Portugal é ainda prejudicado pela diferente divisão das tarefas domésticas e pelo clássico perfecionismo na sua execução. Portugal é um dos países onde se dedica mais tempo aos vários trabalhos domésticos, muito acima da média europeia, por exemplo a passar a ferro. Devemos ser os europeus mais aprumadinhos. O último estudo da FFMS realizado já este ano mostra que as mulheres, quer exerçam ou não um trabalho pago, suportam mais do triplo do trabalho não remunerado do que os homens na mesma situação. Cerca de 74 por cento das tarefas realizadas em casa são efetuadas pelas mulheres e só num terço dos jovens casais a partilha é igualitária.

“No cuidado e educação dos filhos, as mulheres também suportam mais do triplo de trabalho do que o pai. A mulher ocupa-se, em média, de 73% das tarefas relativas ao cuidado e educação dos filhos e o pai de 21% e só em 35 % dos casais as tarefas são divididas” de forma mais paritária. Curiosamente são essas as famílias que mais rapidamente aceitam um segundo ou terceiro filho.

Conclui o estudo que “ao ritmo que, na última geração, evoluiu a contribuição do homem para a execução das tarefas domésticas, faltam entre cinco e seis gerações para que se igualem as posições da mulher e do homem nos casais em que ambos trabalham fora de casa”. E mais: “no que diz respeito à contribuição do pai para o cuidado e a educação dos filhos, não houve nenhuma evolução na última geração”. É altura para os pais aprenderem a fazer plasticinas, construir legos, vestir e despir bonecas, brincar às casinhas e fazer compras em mini-mercados.

Vale a pena pensar que o tão almejado aumento da produtividade nacional não passa exatamente por aumentar mas por combater este excesso produtivista. A obsessão pelos relógios de ponto. As promoções dependentes da permanência absurda e improdutiva nos locais de trabalho. O Papa Francisco tem feito uma pedagogia sem cessar sobre estas matérias. Talvez seja hora de lhe dar mais ouvidos. Estar com os filhos não é apenas um prazer. É sobretudo um dever. E os economistas garantem que, além de bom em termos de educação, aumenta a produtividade e reduz o défice. Acreditem que é verdade.

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