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Pedro Cabrita Reis em Serralves. "Uma vastidão de objetos" faz "Um Olhar Inquieto"

19 nov, 2019 - 14:10 • Maria João Costa (entrevista) com redação. Fotos: Gonçalo Filipe Lopes/RR

A exposição "Um Olhar Inquieto" é inaugurada esta quarta-feira, pretexto para que o autor, Pedro Cabrita Reis, um dos principais artistas da sua geração, estivesse à conversa com a Renascença, no programa "Ensaio Geral".

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Pedro Cabrita Reis nasceu no bairro de Campo de Ourique, em Lisboa, mas considera-se "um homem do sul".

O artista plástico assume esta posição em entrevista ao programa "Ensaio Geral" da Renascença, em vésperas da abertura, no Museu de Serralves, da sua nova exposição - "A Roving Gaze" ("Um Olhar Inquieto").

Cabrita Reis define a mostra como uma "vastidão de objetos" que, "organizados, de alguma maneira, constroem este olhar inquieto".

"A arte leva-nos a uma permanente inquietação, uma permanente interrogação e é daí que vem a sua importância e é daí que vem a sua vitalidade", adianta.

Temos aqui, antes de mais, uma única obra de grande escala, uma peça, poderíamos dizer, que reflete também o seu percurso, não de forma cronológica. O que é este seu olhar inquieto?

Esta peça, que se chama, enfim, em português "Um Olhar Inquieto", é composta por um conjunto de cem painéis com uma estrutura de alumínio e digamos, o próprio painel feito em MDF e nos quais estão colocadas uma infinidade de coisas que vêm de sítios tão diferentes, como o meu atelier, lojas de produtos industriais, do lixo da cidade ou algumas partes desse lixo, que me interessam por razões particulares, coisas que os amigos trazem, coisas que se encontram por acaso na beira da estrada, enfim. É uma vastidão de proveniências para uma vastidão de objetos, mas que, no fundo, todos organizados, de alguma maneira, constroem este olhar inquieto.

Este olhar inquieto sempre o teve. Quando é que sentiu que esse olhar inquieto era a sua imagem de marca também como artista? Quando é que sentiu que o artista nasceu?

Eu deveria dizer que eu acredito que toda a gente, todas as pessoas, têm um olhar inquieto, porque inevitavelmente cada pessoa, cada ser humano, independentemente das suas condições sociais, ou de raça, ou de género ou de outra qualquer natureza, recebe em permanência estímulos do exterior, daquilo que o rodeia e naturalmente transforma esse estímulos em pensamento, em análise, em ideias, em sensações, em emoções. Naturalmente que o olhar é sempre inquieto, porque está em permanente palpitação por causa de tudo aquilo que diferentemente ocorre em torno de nós próprios.

É essa também a função da arte, inquietar e gerar curiosidade?

A arte tem, digamos, o grande privilégio de não ter um programa moral de encontrar respostas. Outras áreas do exercício do pensamento humano, eventualmente, preocupam-se em dar respostas a interrogações. Mas eu continuo a acreditar que aquilo que torna a arte permanentemente viva e que tem atravessado toda a história da humanidade e que a acompanhará, enquanto houver humanidade, [é o facto de a arte fazer] acima de tudo perguntas. A arte serve apenas e acima de tudo para permanentemente continuar a interrogar. A interrogar-se no mais profundo de nós próprios ou a interrogarmo-nos sobre a nossa posição do mundo, enquanto seres, seres políticos, ser pensadores, enquanto cidadãos, enquanto homens e mulheres, enquanto, enfim, pessoas.

A arte leva-nos a uma permanente inquietação, uma permanente interrogação e é daí que vem a sua importância e é daí que vem a sua vitalidade.

Essas interrogações também as faz nesta exposição, porque questiona o politicamente correto, questiona o papel dos museus desde logo. É isso que faz nesta exposição aqui em Serralves?

Eu enquanto artista e presumo que não serei apenas eu, qualquer outro artista, encara a sua atividade como um exercício de interrogação e de reflexão. Naturalmente que essa reflexão, essas interrogações, esse olhar sobre o mundo mais ou menos inquieto é um olhar de curiosidade e um olhar de atenção e não há nada, absolutamente nada, que nos seja, enquanto artistas, vedado. Não há para a prática artística quaisquer limites ou tabus de índole qualquer ela que seja, moral ou outras. Ao artista compete justamente assumir essa responsabilidade única de não deixar nada que não esteja sujeito a um escrutínio, a um pensamento, a um olhar, sujeito a transformação, sujeito a continuarmos a inquirir até que ponto é que nós poderemos com a arte ou com o nosso pensamento transformar o mundo. Só um permanente exercício de olhar é que nos pode devolver um permanente exercício de inteligência e nos pode devolver a capacidade de podermos estar e comunicar com os outros.

O Pedro Cabrita Reis é algarvio de coração.

Eu sou algarvio de coração. Auto-adoptei-me e considero-me não algarvio, mas um homem do sul.

Mas o Algarve está-lhe, de facto, no coração. Tem vivido no Algarve. Produz vinho, azeite gosta de fazer pão, tudo isso faz parte também daquilo que na arte se chama de “poesia-inspiração”?

Vamos ver inspiração é uma palavra que nos parece trazer esta ideia de que há uma coisa que é "vida" e a outra coisa que é "inspiração". Ora eu gostaria de propor um entendimento diferente. Eu gostaria de propor que utilizássemos a palavra “vida” e nos esquecêssemos da palavra “inspiração”, porque, de facto, é da vida que se colhe tudo aquilo que fazemos mais tarde ou quando se escreve um romance, ou uma poesia ou uma música, ou quando se pinta um quadro, ou quando se reflete, digamos, sobre a filosofia. É daí que vem tudo aquilo que nós autores, pessoas diferentes, pomos naquilo que fazemos.

Inspiração às vezes parece ser algo que vem ter connosco, não, nada vem ter connosco. A única coisa que realmente existe é a nossa relação enquanto seres vivos com o mundo, com o que nos rodeia, com os outros, com o interior de nós próprios, com as interrogações que permanentemente colocamos. Portanto no campo faço as coisas que me dão, de alguma maneira, uma medida de mim diferente da medida do atelier.

Pedro Cabrita Reis. "Um artista está sempre a ser artista"
Pedro Cabrita Reis. "Um artista está sempre a ser artista"

Eu pergunto-lhe como é o seu processo criativo, ou seja quando parte para a obra na sua cabeça já vai com um projeto fechado ou ele vai nascendo e surgindo a medida que está no atelier, com todos aqueles materiais que estão também é que expostos nesta exposição, desde o seu fato de trabalho, as latas de tinta, como é que é esse esse processo no atelier?

O meu processo criativo tem um horário muito particular, que vai desde o momento em que eu acordo até ao momento em que eu adormeço, portanto é uma inevitável e incontornável verdade, porque um artista está sempre a ser artista. Não se para de ser artista para ir almoçar. Ou para ir ver a mãe, ou para ir jantar com a família, ou para sair com os amigos. Não. É-se sempre aquilo que se é e, quando se é artista, é-se artista a toda a hora, sempre, em qualquer circunstância. Cada coisa que se vê, cada ruído, cada som que se ouve, tudo isso é matéria para aquilo que se faz.

O meu processo criativo e posso afirmar que, provavelmente, todos os artistas são assim, faz-se de uma mescla, de uma mistura, de uma convergência de todas essas experiências; umas conscientemente sentidas e outras, que não se dá por elas, mas que entram no nosso pensamento e lá ficam a germinar e mais tarde aparecem de outra forma num outro trabalho qualquer.

Tudo é parte daquilo que é o facto de eu ser artista. Nada há que esteja fora do meu trabalho. Tal como não há, na realidade, um atelier. O atelier é o mundo inteiro.

Também tem ajudado muito jovens artistas de várias formas, recordo um trabalho que teve em Lisboa no British Bar, em que as montras foram palco do trabalho de vários artistas e que o Pedro Cabrita Reis no também promoveu, mas também assinou muitas cartas para que alguns artistas pudessem sair de Portugal. Como vê este imenso mercado de arte hoje? Como é que vê a circulação de arte hoje hoje em dia em território nacional?

Eu não sou nem nunca fui uma pessoa de queixas nem de lamúrias. Sou uma pessoa que acredita na força de intervenção, sou uma pessoa que acredita necessidade da mudança, sou uma pessoa que acredita que, se for o caso, é é preciso chegar a limites extremos no sentido de fazer valer a verdade, fazer valer a justiça, fazer valer, neste caso particular, a criação de condições de qualidade de trabalho para os artistas, principalmente para os artistas jovens, porque a única arte que devemos de facto criar todas as condições para que ela se revele é a arte que nos trazem os artistas mais jovens.

Os artistas jovens têm uma tarefa muito muito complicada e era preciso nunca perder de vista que é com essa gente que nós podemos imaginar mudar o país, criar condições para o desenvolvimento de uma contemporaneidade.

No que diz respeito a este território da criação plástica ou artística, seja ela a dança, seja ao cinema, sejam as artes plásticas, a música, por aí fora, eu devo dizer que deveríamos exigir com mais vigor por parte de quem manda uma atitude acima de tudo de risco e de acreditar, porque não basta temporariamente e oportunamente deitar umas migalhas para dizer à imprensa que se fez o que se podia, justamente o que é preciso fazer é o que não se podia, porque devemos esperar sempre mais e se há algum território no qual um país se deva rever, no qual o país deva imaginar que é daí que virá mais e melhor progresso, é com certeza no território do pensamento, no território da criação, no território da investigação científica, no território de ensino e da educação. Esses são territórios de investimento prioritário.


O programa "Ensaio Geral" com Pedro Cabrita Reis pode ser ouvido na íntegra a partir de 29 de novembro.

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