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Expropriações geram polémica

Ribeira de Pena. “Só saio daqui quando me derem uma casa igual à minha”

18 nov, 2019 - 06:08 • Olímpia Mairos

Angústia, indignação e protestos em Ribeira de Pena. Moradores não querem deixar as habitações devido à construção da barragem de Daivões. Câmara critica processo de expropriações e ameaça impedir acesso de camiões à obra. Iberdrola garante "realojamento adequado e justo".

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Na aldeia de Ribeira de Baixo, no concelho de Ribeira de Pena, são mais os que já partiram do que os que ficaram. As casas ali localizadas vão ficar submersas por causa da construção da barragem de Daivões, integrada no Sistema Eletroprodutor do Tâmega (SET), e grande parte das famílias já abandonou o local.

Numa das várias casas já desocupadas pode ler-se uma frase de despedida na parede: “adeus Ribeira de Baixo, ficará sempre no meu coração”. De uma outra moradia foram levadas as portas e janelas, enquanto que à porta de outras permanecem escombros e alguns pertences de quem ali residiu e saiu para construir vida noutro local.

Maria da Glória Gonçalves, de 69 anos, é uma das resistentes. Vive com o marido e um filho numa casa que construiu com “muito sacrifício”, há 40 anos, e teima em ficar até que a Iberdrola, empresa responsável pelo empreendimento hidroelétrico, lhe dê uma habitação “igualzinha” à que possui atualmente.

“Esta casa é o meu suor e o do meu marido. Sempre trabalhei, e muito na lavoura, para ter uma casa e não andar, no fim da minha vida, aos pontapés de ninguém e, afinal, ando. E, por isso, nem que a água aqui chegue, só vou daqui quando me derem uma casa como a que tenho”, afirma Maria da Glória.

A moradia de dois pisos tem “quatro quartos, uma sala, uma cozinha, um corredor ao meio, uma casa de banho, dois grandes fundos, outra casa de banho em baixo, uma cozinha para queimar a minha lenha e o quintal para colher as minhas coisas”, descreve Maria da Glória.

Glória aceitou e recebeu uma indemnização na ordem dos 80 mil euros, com medo do tribunal, mas agora está disposta a devolvê-la, porque “não chega para comprar um terreno e construir uma casa como a que tenho”.

“Não é segredo para ninguém. Recebi 78.522 euros, mas estou disposta a dar-lhe o dinheiro que me deram para me fazerem uma casa como a minha”, diz à Renascença.

Aos 84 anos de idade, Ana Maria também teima em não abandonar a casa que tanto lhe custou a construir há 53 anos.

“Trabalhamos muito para a ter, compramos o terreno e fizemos a casa com seis quartos, pois tivemos seis filhos”, explica a octogenária com a voz embargada pela tristeza de ter de deixar tudo para trás. “Tínhamos uma casa em condições para meter os nossos filhos quando vinham de férias e agora ficamos sem nada”, acrescenta.

Ana Maria e o marido já não se sentem com forças nem para lutar em tribunal nem para construir uma nova casa. Prometem ficar até à última, ou seja, até que a água ali chegue. E depois logo se verá. Alugar uma habitação por ali perto é a solução mais viável.


Contentores “são uma provocação, uma ofensa”

Os prazos para a saída das casas afetadas pela construção da barragem têm vindo a ser adiados, apontando-se agora o limite da ocupação para a primeira semana de 2020. “Tinham dito que era para sair até dia 04 de novembro, mas agora, pelos vistos, vamos poder passar na nossa casa o Natal e a passagem de ano”, adianta Ana Maria.

Aos que não têm alternativa de habitação imediata, a Iberdrola oferece realojamento temporário em contentores metálicos por um período de dois anos, mas Maria da Glória Gonçalves não aceita.

“Eles vão-me meter num contentor e eu vou plantar o quê? Onde é que vou plantar as cebolas, as batatas, as couves, os feijões, onde vou criar as galinhas? Na estrada? No alcatrão?”, questiona indignada.

Também Ana Maria se recusa a mudar-se para os contentores provisórios, pois considera que “não são dignos para lá viver”.

A solução dos contentores também não agrada ao presidente da Câmara Municipal de Ribeira de Pena, João Noronha, que considera ser “uma provocação, uma ofensa a quem tinha uma determinada qualidade de vida, uma habitação digna e condigna e está a ser empurrado para uns contentores metálicos”.

“Isso só demonstra o pouco respeito que as pessoas estão a ter neste processo”, acusa o autarca, considerando que a melhor solução teria sido a de “chave na mão, ou seja, que as pessoas pudessem sair das suas casas e irem para outra pronta a substituir”.

O autarca refere que, atualmente, no concelho não há casas para arrendar, porque “estão ocupadas por engenheiros de diferentes empresas que trabalham na obra” e sugere que “esses engenheiros passem para aquela situação dos contentores e as nossas pessoas sejam realojadas nessas casas”.

Autarquia ameaça impedir acesso de camiões às obras

Ribeira de Pena é o concelho mais afetado com a construção do Sistema Eletroprodutor do Tâmega, onde se incluem as barragens do Alto Tâmega, Daivões e Gouvães. São 49 casas, de um total de 59, que vão desaparecer quando, em junho do próximo ano, começar a encher a barragem.

Face ao processo de expropriação em curso, a autarquia está disponível para oferecer um terreno no centro da vila para 24 casas, mas exige que a elétrica espanhola suporte os custos das infraestruturas do loteamento.

“São lotes de 500 metros quadrados, para que as pessoas além da sua casa possam ter um espaço para o seu quintal, o seu jardim, as suas árvores de fruto. Estamos a falar de um valor que ultrapassa o milhão de euros, valor de mercado, e só queremos que a Iberdrola pague as infraestruturas desse loteamento, porque nós não temos capacidade financeira para suportar esse encargo”, explica o autarca.

O presidente da autarquia de Ribeira de Pena exige ainda que a Iberdrola, “através de uma medida que está contemplada no pacto, a medida 29 do Plano de Ação Socioeconómico da Declaração de Impacte Ambiental (DIA), atribua às pessoas o diferencial entre o valor da indeminização e o custo da nova habitação”.

“A Iberdrola terá que suportar o diferencial dos 70 ou 80 mil euros da indemnização para os 100 ou 120 mil euros que a casa possa vir a custar”, exemplifica o autarca à Renascença.

Se as propostas não forem aceites, o presidente da autarquia de Ribeira de Pena ameaça com medidas de protesto.

“A Iberdrola não precisa de licenciamentos da Câmara, ou seja, a Câmara não passa licenciamentos para que as obras estejam a acontecer e continuem a acontecer, mas as obras decorrem no nosso território, as viaturas têm que circular nas nossas estradas municipais e, portanto, nós poderemos condicionar que esses trabalhos decorram com a normalidade que nós queremos”, ameaça o autarca.

Iberdrola garante “realojamento adequado e justo para todos os casos”

Segundo dados da autarquia de Ribeira de Pena, dos 49 casos de famílias que terão de ser realojadas no concelho, seis encontram-se resolvidos, 19 estão em tribunal e 24 em negociação. Números que não batem certo com os que são apresentados pela concessionária.

“O enchimento da Albufeira de Daivões vai afetar 43 casas. Atualmente, existem oito moradores que continuam a viver nas suas casas. Destes oito casos, seis vão ocupar as habitações provisórias facultadas pela Iberdrola. Os restantes dois já possuem outra habitação alternativa”, afirma a elétrica espanhola em resposta à Renascença.

A Iberdrola acrescenta ainda que tem procurado agilizar “um processo de realojamento adequado e justo para todos os casos” e garante que “mantém um contacto estreito com todos os moradores, fazendo um seguimento próximo das necessidades de cada um deles”.

A concessionária do Sistema Eletroprodutor do Tâmega mostra-se “solidária com o desconforto que esta mudança de lar possa causar” e avança que “está a articular com as autoridades competentes medidas de compensação adicionais ao processo de expropriação, que favoreçam o realojamento das famílias, com base na Medida 29 do Plano de Ação Socioeconómico da Declaração de Impacte Ambiental (DIA)”.

Sobre a recente proposta da autarquia de oferta de um terreno para loteamento, a Iberdrola, revela à Renascença que já “tem acordado com a Câmara Municipal de Ribeira de Pena que assumirá o custo da urbanização dos lotes destinados a realojamentos de habitantes permanentes ou ocasionais interessados nesta solução”.

Para a manhã desta segunda-feira está marcada na sede da APA, no Porto, mais uma reunião entre o município de Ribeira de Pena, a Iberdrola, e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N). Reunião que pode colocar um ponto final no diferendo que separa os que vão ser desalojados e a autarquia da Iberdrola.

Recorde-se que o ministro do Ambiente e da Ação Climática, João Pedro Matos Fernandes, já garantiu, em recentes declarações à imprensa, que tudo fará para que haja um acordo no caso do realojamento das famílias afetadas pela construção da barragem de Daivões.

“O meu papel será sempre o papel supletivo e político em relação à decisão da administração para aproximação das partes. E tudo farei, porque tem mesmo que correr bem este processo. É muito importante para o país, obviamente salvaguardando as expectativas legítimas das pessoas”, afirmou o governante, em Vila Real.

Para Matos Fernandes, o Sistema Eletroprodutor do Tâmega, que engloba as barragens de Daivões, Gouvães e Alto Tâmega, um dos maiores projetos hidroelétricos realizados na Europa nos últimos 25 anos, com 1.500 milhões de euros de investimento, é fundamental para a descarbonização do país e para que “em 2023, se possa encerrar Sines”.

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