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Opinião de Graça Franco
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Portugal e o nosso “atraso de vida”

15 nov, 2019 • Opinião de Graça Franco


As crianças nascidas no quadro do casamento, que podemos entender como famílias estáveis, que ainda em 2013 eram a maioria (52%), passam agora a ser apenas 44% do total, com tudo o que isso significa de alteração contínua e extremamente rápida da nossa sociedade.

As 179 páginas divulgadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), esta sexta-feira, e que traçam o retrato de um país, deviam ser de leitura obrigatório para Governo e oposição e até para toda a Igreja, cujo peso na sociedade se vai esfumando perante uma laicidade cada vez mais invasiva de todo o terreno social. Está lá tudo. Portugal retratado como um país apanhado pela armadilha a que podemos chamar “atraso de vida”. Um país onde a vida ou não chega a acontecer ou se vai desenrolando lentamente, como se nada pudesse ocorrer no tempo certo.

Em 2013, metade da população tinha menos de 43 anos, o ano passado já passava dos 45. Estamos a envelhecer a ritmo acelerado. Somos menos. De tal maneira menos que, a este ritmo, lá para 2080, seremos pouco mais de 7,8 milhões. Agora ainda passamos dos dez, mas o salto natural é negativo há quase uma década e o número de óbitos superou o ano passado o de nascimentos em mais de 25 mil (o recorde dos últimos cinco anos!). A população desceu menos (uns escassos 18 mil) apenas porque o saldo migratório foi, como já tinha acontecido em 2017, ligeiramente positivo se só tivermos em conta as entradas e saídas de migrantes e emigrantes permanentes (o que para as estatísticas significa vir ou partir por mais de um ano, seja lá o que for que isso signifique).

Mas até este saldo positivo migratório dá que pensar: dos 43.000 que vieram residir por mais de um ano no nosso país, 8.000 eram cidadãos europeus (entre pensionistas, Erasmus e congéneres…) e só 14.000 eram de países terceiros (o que mesmo assim significa mais 6.000 do que em 2017), mas, pasme-se, mais de 20.000 dos que migraram para cá eram portugueses. Isto diz bem de como esta balança migratória é, no caso português, resultado do vaivém dos nossos emigrantes e muito menos um instrumento para medir a atractividade do país face ao exterior. Quem veio para ficar veio quase sempre da UE, Brasil, Angola e Suíça, e maioritariamente em idade ativa.

Do lado das partidas a mesma coisa. Em 2013 saíram de Portugal para residir fora do país por mais de um ano 53.000 cidadãos. O número do ano passado foi só 31.600. Significa que a Geringonça estancou a sangria? Não. Há outros 50.000 “temporários a sair na mesma” e nos dois casos quem sai são sobretudo portugueses. O ano passado só 7.000 eram estrangeiros a regressar a países de origem ou a buscar outros destinos.

Os outros 29.000 emigrantes permanentes, maioritariamente homens em idade activa, além de portugueses eram em 40 por cento sobrequalificados, com o mínimo de uma licenciatura. Percentagem superior aos que saíram com a mesma qualificação nos tempos da troika, quando menos de um terço já exibia licenciatura e mais de metade tinha menos de nove anos de escolaridade. E para onde emigraram os nossos homens (porque são maioritariamente homens e em idade activa que deixam o país)? Para os destinos do costume: França, Reino Unido, Suíça, Bélgica e Espanha. A geração de emigrantes mais qualificada de sempre está aí para quem a quiser ver.

E vale apenas referir que além destes emigrantes “permanentes” outros 50.000 saíram “temporariamente” (são muito menos do que os 85.000 do pior da crise, quando em 2014 atingimos um pico de saídas), mas continuam a sair. Mais ou menos instruídos, quem sai é quase sempre mais empreendedor do que os que decidem ficar e nesse sentido fazem sempre parte dos nossos “melhores”. Todos somados deixámos partir no ano passado 70.000 dos nossos.

Há mais exemplos do INE que dão que pensar: em matéria de envelhecimento já havia, em 2018, 159 idosos por cada 100 jovens (em 2013 ainda eram apenas 136). Mas a disparidade regional mostra um quadro muito diferente e bem pior: no Alentejo são mais de 200 idosos por cem jovens, na região Centro quase o mesmo, Lisboa engana com apenas 137 e faz com que o poder central desconheça a realidade de um envelhecimento muito mais acentuado nas restantes regiões. Para surpresa de todos é nos Açores e na Madeira que o envelhecimento é menos acentuado. Números que os ministros Brandão Rodrigues e Marta Temido deviam ver à lupa na gestão dos médicos e dos professores.

Se virmos o rácio de idosos por 100 potenciais trabalhadores activos já vamos em 34. Isto mostra bem a importância de rever já a fórmula de financiamento da Segurança Social. Pode ser mais IVA, podem ser mais taxas sobre o uso das tecnologias ou sobre o capital ou uma espécie de cabaz de impostos novos, mas insistir em fazer recair o peso cada vez maior das reformas em pagamento sobre os trabalhadores no activo, em número cada vez menor, só pode ser um erro colossal.

Vamos às causas. O número de filhos por mulher continua na cauda da Europa, embora tenha subido muito ligeiramente para voltar aos 1,4 (num típico efeito do pós crise). Porquê tão poucos se os dados da Fundação Francisco Manuel dos Santos provam que a fecundidade “ideal” dos jovens casais portugueses, ainda em idade fértil, é de pelo menos “dois”? Ou seja, se cumprissem com esse “ideal”, seria o suficiente para assegurar o rejuvenescimento da população. Talvez a resposta esteja na baixa e tardia assunção da conjugalidade.

Os casamentos aumentaram 3% face ao ano anterior (será a indústria da “festa” a funcionar?), mas nos quase 35 mil que se efectuaram o ano passado quase 60 por cento era precedido pela coabitação. Quanto à idade dos noivos é também sistematicamente mais elevada, quase 34 anos nos homens e 32 nas mulheres.

Será que casam mais tarde porque querem viver sem compromissos durante mais tempo ou o número indica apenas que antes não podem ou não conseguem casar?

E as questões que se levantam face à baixa nupcialidade são várias. Porque é que Portugal apresenta uma taxa tão baixa de apenas três casamentos por 1.000 habitantes? Quando em países como a Alemanha e a Suécia a taxa é superior a cinco por 1.000, na Dinamarca são seis e na Lituânia oito. Menos casamentos do que em Portugal, mas na mesma ordem dos 3 por 1.000, só na Eslovénia, Itália e Luxemburgo. Dá para pensar o que faz o Estado para apoiar a família? Será que ser solteiro, face ao Estado, compensa?

A descristianização continua patente na contínua redução da percentagem dos casamentos religiosos, que em 2018 se reduziu para apenas 32,5% (menos 4 pontos do que em 2013). Contudo, também aqui a diferença regional é muito significativa e cria novos desafios à pastoral cristã: a Norte (42%) e no Centro (38%) a percentagem de casamentos católicos é superior à média nacional, mas no Algarve e em Lisboa, mais de 80% dos casamentos são apenas civis.

Quanto aos filhos nascidos fora do casamento e sem coabitação dos pais, que em 2013 ainda eram menos de 15%, não pararam de crescer e em 2018 são já 18,7%. Estes números não são apenas preocupantes pelo crescimento exponencial das famílias monoparentais, mas porque se sabe que estas estão sobre-expostas ao risco de pobreza e as suas crianças duplamente expostas ao mesmo risco. Vale a pena pensar o que está na base de um fenómeno que reclama um olhar urgente e atento das políticas públicas.

Se somarmos as crianças nascidas em famílias monoparentais às que nascem de pais em coabitação fora do casamento temos, nada mais, nada menos, do que 56% das crianças nascidas em 2018. Se olharmos o caso de Lisboa, este número sobe para mais de dois terços dos novos nascimentos. Conclusão; as crianças nascidas no quadro do casamento, que podemos entender como famílias estáveis, que ainda em 2013 eram a maioria (52%), passam agora a ser apenas 44% do total, com tudo o que isso significa de alteração contínua e extremamente rápida da nossa sociedade.

O quadro total não passa apenas pela leitura transversal destes números. Há muitos mais para esmiuçar, mas estes já dão suficiente matéria para pensar para o fim-de-semana. Espero que quem de direito não os largue.

Comentários
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  • João Lopes
    21 nov, 2019 09:31
    Artigo interessante!
  • Desabafo Assim
    17 nov, 2019 15:43
    Isto nunca vai acabar abruptamente, vai acabar por cair de podre, antes fosse, mas não será assim. Um(a) anónimo(a) anda por ai escondido na floresta de árvores ou das pessoas e um dia tocará a corneta e tudo se precipitara e a todos os que não acharam suficiente entregar o próprio filho para marcar o dever do Homem serão simplesmente apagado pois se o não for felizes os que forem para o inferno dantesco pois Deus terá um plano para eles. Não conheço a conjuntura dos sinais, pois só conhecemos o que nos é dado, mas este pequeno país à beira mar não poderia estar melhor, a maioria adulta, prontos.
  • César Augusto Saraiva
    17 nov, 2019 Maia 12:50
    Sim Senhora; muito bem explicado! Esperamos, pois, que os altos responsáveis se debrucem sobre esta realidade tão negativa para o País...
  • Graça Franco
    17 nov, 2019 00:36