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Testemunho

Muro de Berlim caiu há 30 anos. "Foram semanas de entusiasmo e esperança. A desconfiança e a inveja só vieram depois"

09 nov, 2019 - 10:00 • Joana Azevedo Viana , Sofia Freitas Moreira (vídeo)

Um jornalista alemão recorda os meses que se seguiram à queda do Muro de Berlim. Faz este sábado 30 anos que o primeiro segmento da "cortina de ferro" foi derrubado.

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"Foram semanas de entusiasmo e esperança. A desconfiança e a inveja só vieram depois." Vídeo: Sofia Moreira/RR com Reuters
"Foram semanas de entusiasmo e esperança. A desconfiança e a inveja só vieram depois." Vídeo: Sofia Moreira/RR com Reuters

Martinus Schmidt ainda se emociona ao recordar aquele novembro de 1989. Na noite de dia 9, quando o Muro de Berlim começou a ser derrubado depois de 28 anos a separar a Alemanha em dois – e, por conseguinte, todo o continente europeu – o jornalista alemão estava em Lisboa a fazer as malas para partir para Berlim.

No dia seguinte, ao entrar no avião, pediu à hospedeira dois jornais para se entreter durante a viagem. Um era um diário alemão, o outro era o “Diário de Notícias”. Na capa do jornal português podia ler-se em manchete: “RDA abriu as fronteiras e deixa sair cidadãos.”

O título remetia para um artigo relativamente curto, de três colunas, na página 36, intitulado “RDA abre todas as fronteiras e Muro de Berlim tem os dias contados”. Martinus leu-o com atenção, procurando mais informações no jornal alemão, que noticiava um novo Governo na ainda República Democrática Alemã (RDA), a parte comunista do país. Apercebendo-se de que ia aterrar numa Alemanha muito diferente da que conhecera até então, olhou pela janela e chorou de emoção.

Trinta anos depois, ao recordar esse momento à Renascença, Martinus tem de se esforçar para não voltar a chorar. “O avião estava a descolar e deu uma volta sobre Lisboa e eu olhei lá para fora e fiquei emocionado”, conta com a voz embargada, num português com sotaque do Brasil, por influência da sua mulher. “Chorei de alegria por esse monstro do muro ter acabado e, por outro lado, de tristeza por estar a deixar Lisboa. E chegado a Berlim fui logo para a parte oriental, ainda do modo antigo, com passaporte, fazer entrevistas sobre o que estava a acontecer.”

Uma época de igualdade

Vindo de Portugal, onde trabalhara como correspondente de um jornal alemão e como 'freelancer' para a empresa de radiodifusão "Deutsche Welle", Martinus Schmidt tinha alguma urgência em encontrar emprego. E o primeiro que arranjou, provisório, foi num banco na parte ocidental de Berlim. O trabalho? Pagar o chamado "subsídio de boas-vindas" aos habitantes da RDA.

"Também pelo meu interesse como jornalista, arranjei este trabalho a pagar dinheiro à gente da RDA. Cada pessoa tinha direito a 100 marcos, que era o equivalente a mil escudos naquela época, quer fosse criança, homem ou mulher. Passei uns 30 mil documentos por dia. O meu trabalho era verificar os documentos para saber se tinham direito ao dinheiro." E assim foi durante duas semanas.

O lado ocidental da fronteira era um total mistério para quem vinha do Leste e Martinus só se apercebeu realmente disso nas semanas que se seguiram.

"De repente Berlim estava cheia de pessoas da RDA, que tinham direito a andar de transportes públicos gratuitamente. Não faziam compras, mas descobriram uma cidade completamente desconhecida, que nem sequer existia nos mapas de Berlim da RDA; nesses mapas havia uma zona deserta no que era o lado ocidental. E elas ficaram deslumbradas pela riqueza, pelo 'glamour', pelas coisas que podiam ver, mesmo sem poder comprar."

O alemão recorda uma época totalmente "igualitária", em que as pessoas de Berlim Ocidental queriam dar e partilhar tudo com os novos concidadãos vindos do Leste. No dia em que Martinus aterrou na cidade, a 10 de novembro de 1989, o então governador de Berlim, Walter Momper, proferiu um discurso que ficaria para a História, em que declarou: "Hoje o povo alemão é o mais feliz do mundo."

"Foi literalmente essa a atmosfera, de felicidade", recorda Martinus, novamente a conter as lágrimas. "Naquelas semanas depois da abertura do muro havia só entusiasmo e uma esperança enorme, uma liberdade descoberta por 17 milhões de alemães do Oriente e uma esperança de mudança na RDA. A desconfiança e a inveja só vieram depois."

Uma RDA sem futuro

Apesar de aquele momento ter apanhado muitos de surpresa, a receita para a queda da "cortina de ferro" que dividiu a Europa entre Ocidente capitalista e Oriente soviético entre 1961 e 1989 já estava a ser escrita há algum tempo.

"A RDA, na realidade, não tinha futuro, porque não tinha reservas, não tinha capacidades nem recursos para competir com a Alemanha Ocidental, mas naquela época ninguém pensava nisso, naquela época só valeu o sentimento e a realidade da liberdade, da livre circulação, não só em Berlim mas em toda a Alemanha."

Essa nova realidade não foi imediata para as autoridades da Alemanha de Leste. Na noite de 22 para 23 de dezembro, já Martinus trabalhava na delegação alemã da agência norte-americana Associated Press, foi mandado para as portas de Brandenburg, hoje um dos ícones maiores de Berlim.

Corria a informação de que ia ser aberta passagem oficial no segmento do muro naquela zona central da cidade e o jovem jornalista foi incumbido de cobrir o evento. "Foi fascinante. No dia 22 foi a abertura oficial e o primeiro-ministro da RDA, Hans Modrow, falou 'Talvez o muro possa ser substituído por uma grade'. Os governantes da RDA ainda não tinham percebido o significado dessa abertura, que o muro e a fronteira não tinham futuro."

E com a queda daquela barreira física, um evento impensável em si mesmo até então, outras coisas inéditas começaram a acontecer. Como quando a rádio da Alemanha comunista transmitiu um plenário do Parlamento em que o ainda ministro da Segurança de Estado da Alemanha Oriental pediu desculpa aos deputados por lhes chamar "camaradas".

"Estava a atravessar a RDA escutando a transmissão de rádio, que estava a passar um debate no Parlamento, e pela primeira vez aconteceu os deputados vaiarem Erich Mielke, que geria a polícia secreta [a Stasi] e que era responsável por muitas violações de Direitos Humanos. Ele foi corrigido pelo presidente da câmara, que lhe disse para não lhes chamar 'camaradas', porque no Parlamento havia não só 'camaradas' mas também deputados de outros partidos que não eram comunistas. Então ele corrigiu, pediu desculpa e disse a famosa frase: 'Iche liebe alle – Eu amo todos os homens.' O Parlamento estava em tumulto, repugnado e chocado com a falta de vergonha do ministro a falar de 'camaradas' e isto foi tudo transmitido na rádio estatal da RDA. Fiquei muito surpreendido com essa nova abertura."

Surpreendidas estavam também as autoridades estrangeiras, como as portuguesas. Martinus recorda a sua viagem pela RDA logo a seguir à queda do muro e os encontros improváveis que ali aconteceram.

"Para nós, do Ocidente, foi uma surpresa que aquele sistema aparentemente eterno tivesse quebrado. Paralelamente com a abertura das fronteiras, os órgãos do partido [comunista], as instituições do Governo [da RDA] desfizeram-se rapidamente e o Governo completo foi trocado. Três ou quatro meses depois houve eleições gerais na RDA e eu fui cobrir isso junto com a minha então namorada, que depois virou a minha esposa. Foi aí que conheci João Pinheiro, então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, que estava a visitar a RDA, Cavaco Silva [então primeiro-ministro]... Eles todos vieram e estavam surpreendidos pelas novas expectativas."

A viragem e o futuro

O ambiente de festa e alegria começou a esmorecer na viragem da década, com a adesão da Alemanha à União Económica e Monetária, em julho de 1990.

"Centenas de empresas da RDA tiveram de fechar, faliram por causa da competitividade com empresas daqui. Os mercados quebraram, muitas pessoas ficaram desempregadas e muita gente começou a refletir sobre o futuro com medo de um futuro incerto", recorda Martinus Schmidt.

Até então, na RDA não havia desemprego, pelo menos não oficialmente, sublinha o jornalista. "Quem não trabalhava era sancionado, era um crime na RDA ficar sem emprego, alguém que ficava sem trabalho arriscava-se a ser preso. Então esse desemprego que começou a partir de 1990, depois da União Monetária, foi o que baixou o astral do povo, foi muito deprimente."

Em agosto desse ano, Martinus começou a trabalhar para uma revista na ainda RDA, a "Super Illu", que no final de setembro o mandou cobrir a situação no território. "As pessoas estavam não só com esperança mas já exigiam coisas concretas, diziam 'O Ocidente teve vantagens com a unificação, então vocês têm de pagar a minha vida', era mais ou menos assim."

Três décadas depois da queda do muro, só há poucos meses é que a taxa de desemprego na antiga Alemanha de Leste caiu para um nível mais baixo do que antes da unificação, recorda.

Aos 63 anos, Martinus acredita que as divisões RFA-RDA que ainda restam "na cabeça das pessoas" estão limitadas à sua geração, embora assuma que persistem alguns resquícios dessas divisões, como o facto de o salário médio na antiga Alemanha Ocidental ser superior ao da parte oriental. Para o jornalista, essas são desigualdades que irão desaparecer em breve.

"As pessoas da minha idade sentem essa divisão ainda, porque a viveram. O sistema comunista destruiu sistematicamente a tradição, a tradição da Igreja, da família, do povo. Por exemplo, na RDA, foi política do Estado não falar da Alemanha; 'Deutschland' era uma expressão proibida, só existia a República Democrática Alemã, o bom, e a República Federal, o mau, que foi sempre visto como o sucessor do nazismo. Mas os mais jovens não têm dúvidas de que o processo vai ser cada vez mais igual. Acho que, com mais uma geração, daqui a 20 anos, as diferenças vão diminuir e desaparecer. As diferenças entre Leste e Oeste que não desaparecem são as regionais, por exemplo, eu venho do norte da Alemanha, perto da Holanda, e falo diferente e tenho um palato diferente de um bávaro. Essas diferenças vão sempre existir, mas a origem, o ser de Leste ou do Oeste, daqui a mais uma geração isso já não vai ser notado."


Recorde a Grande Reportagem da Renascença nos 20 anos da queda do Muro:

Especial Muro de Berlim Trabalho multimédia produzido em 2009, vencedor de um prémio do Obciber - Observatório de Ciberjornalismo. Optimizado para desktop. Esta página pode não ser visualizada correctamente em dispositivos móveis.
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