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Mohammad Shtayyeh

PM da Palestina. "Europa deve preparar-se para o dia a seguir à morte da Iniciativa Trump"

30 out, 2019 - 16:25 • José Pedro Frazão em Ramallah, Cisjordânia

Com Hamas e Fatah a negociar um acordo para novas eleições nos territórios ocupados e com Israel ainda sem novo Governo formado, a Renascença resume-lhe a conferência de imprensa do primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana em 12 pontos.

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Anexação do Vale do Jordão, o "cesto de vegetais" dos palestinianos

Para os palestinianos, o anúncio da anexação de um território correspondente a um terço da Cisjordânia é mais uma prova de que Benjamin Netanyahu, o ainda primeiro-ministro de Israel, nunca se preocupou com o processo de paz, defende Mohammad Shtayyeh.

"O Vale do Jordão não é apenas um pedaço de terra, é o 'cesto de vegetais' da Palestina. Netanyahu quer anexar o Vale do Jordão porque tem uma estratégia sistemática de destruição da solução de dois Estados. Sempre defendeu que os quatro pilares de um [futuro] Estado palestiniano têm de ser destruídos: Jerusalém [que não quer partilhar], a anexação do Vale do Jordão [porque tem valor económico e dimensão geográfica], a área C onde estão os colonatos israelitas [vista como possível espaço para a expansão dos mesmos] e a Faixa de Gaza [que Israel mantém isolada]. Sem estes quatro pilares, não há Estado palestiniano."

O próximo homem forte de Israel

Netanyahu não conseguiu convencer Benny Gantz a entrar no executivo de forma a conseguir formar Governo, no rescaldo das eleições de setembro. Agora, é a vez de Gantz, da coligação Azul e Branco (centristas), tentar encontrar uma solução que quebre o impasse.

“Gantz não vai ser muito diferente de Netanyahu", defende Shtayyeh. "Nenhum deles tem uma plataforma política para nos oferecer, nenhum deles quer acabar com a ocupação nem fala [da solução] de 'dois Estados'. A diferença entre Bibi [Netanyahu] e Benny [Gantz] é a mesma entre a Coca-Cola e a Pepsi. Não há muita diferença. Nunca disseram algo de positivo para relançar o processo de paz.”

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O papel mediador dos EUA

Clinton, Obama, Bush e agora Trump. O chefe do Governo em Ramallah conclui que Washington deixou de ter condições para garantir uma mediação isenta do processo de paz.

"Todos os Presidentes norte-americanos quiseram acabar com o conflito, mas nunca conseguiram. Porquê? Porque nunca quiseram seguir o Direito Internacional e cada um seguiu os seus próprios parâmetros. Todo o processo de paz foi um falhanço, porque o mediador não era honesto. Precisamos de um mediador honesto. A administração norte-americana nunca provou ser esse mediador. Veja-se a atual equipa. Jared Kushner é um doador para os colonatos. São mediadores totalmente parciais em total harmonia com Netanyahu."

Iniciativa Trump não

Jared Kushner, genro do Presidente dos EUA, está por estes dias em Jerusalém para conversações com os líderes políticos israelitas. A Autoridade Palestiniana diz nada esperar de um plano que, na sua opinião, vale zero.

"Não conseguiram sequer um parceiro europeu, árabe ou palestiniano. O único parceiro que conseguiram, Benjamin Netanyahu, vai para casa. Não conhecemos o conteúdo da Iniciativa Trump. Mas sabemos o que não está lá. Não está lá nada sobre Jerusalém, sobre os refugiados palestinianos, sobre a solução de dois Estados, sobre as fronteiras de 1967 ou sobre a remoção dos colonatos israelitas ilegais e ilegítimos. Estes aspetos foram sujeitos a acordo entre nós e os israelitas, como parte do resultado final das negociações."

As intenções de Israel

O processo de paz está estagnado, enquanto os palestinianos continuam a exigir o fim da ocupação dos territórios palestinianos. Em Ramallah, o Governo acusa Israel de não querer voltar às fronteiras de 1967.

“A paz é sobre intenções. Nunca sentimos que a intenção de Israel fosse realmente o fim da ocupação. Tudo no processo de paz vai dar ao fim da ocupação. Não serve aos palestinianos viverem sob ocupação com uma vida de luxo, de cinco estrelas. Queremos o fim da ocupação israelita. Israel foi reconhecido como Estado com base nas fronteiras de 1967. Agora digam-me: hoje, onde estão as fronteiras de Israel? Se as fronteiras forem as de 1967, o problema acaba. O debate em Israel não é sobre os que defendem a ocupação ou a paz. É sobre os que querem manter o statu quo e os que querem anexar certas partes do território palestiniano. A nossa estratégia é quebrar o statu quo."

Uma conferência internacional para conseguir a paz

Mohammad Shtayyeh defende que o processo de paz tem de ser redesenhado através de uma conferência Internacional sem a presença dos EUA e com forte empenho europeu.

“Propomos que a Europa, os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) e os países árabes se juntem para uma Conferência Internacional onde a Europa não esteja apenas à espera de ver o que os norte-americanos vão dizer. Queremos um empenho sério da Europa neste processo. Os israelitas nunca quiseram uma parceria com os europeus, desde o tempo de Miguel Moratinos [alto representante da UE para o processo de paz, entre 1996 e 2003]. Na verdade, os israelitas também nunca quiseram os norte-americanos como parceiros neste processo. Nenhum dos enviados especiais americanos foi autorizado a entrar na sala, ficando no corredor à espera que acabássemos a nossa conversa bilateral. Israel não quer uma testemunha do que é a realidade na mesa das negociações.“

Europa deve desempenhar papel relevante

Perante a plateia de jornalistas europeus, o primeiro-ministro palestiniano não se cansou de incitar a União Europeia a tomar as rédeas para formar uma coligação que ponha fim à ocupação israelita dos territórios palestinianos, de acordo com as fronteiras de 1967.

"Para nós, a Europa é importante porque todas as capitais europeias pedem uma solução de dois Estados. A Europa não está parcialmente ao lado dos palestinianos, mas em linha com os nossos princípios. Vocês acreditam numa solução de dois Estados, nós concordamos. Alguns Presidentes [dos EUA] também acreditavam, como Obama e até George W. Bush. A Europa pode desempenhar um papel relevante. A Europa deve assumir a liderança para se preparar para o dia a seguir à morte da Iniciativa Trump. O plano de Trump vai ser um nado-morto."

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O novo papel da Rússia

O combate ao autoproclamado Estado Islâmico no Iraque e na Síria e as alianças que se estabeleceram na região deram a Moscovo o papel de nova potência no Médio Oriente. Por esse motivo, os palestinianos acreditam que os russos podem fazer parte da solução.

“Se os norte-americanos falam num último acordo, os russos também têm o seu último acordo. Os russos estão a tornar-se o mais importante ator no Médio Oriente - na Síria, no Egito, no Mediterrâneo. A última incursão da Turquia [na Síria] é um claro modelo para o empenho russo na região. A Rússia está muito ativa na região. A relação entre Rússia e Israel é muito boa e a relação entre Rússia e Palestina também é muito boa. A Rússia tem qualificações para fazer parte da Conferência Internacional."

Menos apoio dos árabes?

O primeiro-ministro palestiniano recusa a leitura de um arrefecimento da causa palestiniana junto dos países árabes. Certo é que, de forma pública, o conflito de Gaza e da Cisjordânia rivaliza nos últimos anos com o foco dado ao Irão, quer por Israel quer pelos muçulmanos sunitas.

“Netanyahu conseguiu mudar o foco de Israel para o Irão como centro do conflito na região. Ele afirma que há normalização de relações com os árabes, mas isso não é normal.”

Conflito entre Fatah e Hamas

O conflito interno palestiniano ameaça passar a eterno. A Fatah, partido de Mahmoud Abbas, que controla a Autoridade Palestiniana, rivaliza no poder com o Hamas, que efetivamente controla a Faixa de Gaza. O primeiro-ministro palestiniano revela propostas inaceitáveis do Hamas e insiste que as eleições são a chave para desbloquear o impasse.

“Hoje em dia há dez atores que fazem de Gaza um campo de guerra por procuração: Irão, Qatar, Turquia, Irmandade Muçulmana Internacional, Hamas, Autoridade Palestiniana, Israel, Egito, Estados Unidos e Chipre. Pedimos ao Hamas que tente proteger a solução de dois Estados. Assinámos quatro acordos com o Hamas. Nenhum deles foi implementado.

O nosso modelo para a reconciliação palestiniana baseia-se numa só Autoridade, num só Estado de Direito, um só sistema de justiça, uma só polícia, uma só arma de guerra. Isto é um Estado. O modelo do Hamas é totalmente diferente. Baseia-se na divisão de trabalho. O Hamas disse-nos: 'Vocês ficam com a superfície e nós tratamos do subterrâneo, vocês trazem o dinheiro e nós gastamo-lo, vocês ficam com as varandas e nós com o átrio, vocês são o Governo mas nós somos o partido que está realmente no poder.' Isto é totalmente inaceitável para nós. Abbas defendeu que se o nosso modelo não serve para eles, temos de consultar o povo. Vamos voltar a eleições e regenerar a democracia. A Autoridade Palestiniana tem apenas 27 anos, é nova e se calhar não muito madura.”

Obstáculos para as eleições

Jerusalém é uma questão política, Gaza é uma questão interna palestiniana. Esta é a tese da Autoridade Palestiniana para separar a abordagem sobre dois obstáculos significativos à realização de eleições nos territórios, onde a população foi às urnas pela última vez em 2006.

“Precisamos que o Hamas concorde de forma a Gaza fazer parte delas. Precisamos que Israel concorde de forma a que Jerusalém Oriental seja incluída. A lei eleitoral palestiniana tem um circulo único. O plano B passa por designar candidatos de Gaza na lista única caso o Hamas não nos deixe fazer eleições em Gaza. E há soluções criativas com base na tecnologia. Esperamos que a Europa possa pressionar Israel para termos eleições em Jerusalém. Nesse caso, poderemos ter eleições no espaço de quatro a seis meses. Primeiro fazem-se consultas e só depois se anuncia uma data. Se fixar uma data e o Hamas ou Israel recusarem, o Presidente [Abbas] fica numa posição dificil. Se o Hamas disser que sim, o Governo está tecnicamente preparado. No mínimo a lei estabelece três meses para organizar as eleições. Do nosso lado há a intenção de as fazer.”

Mais mulheres no Parlamento

A uma pergunta da Renascença sobre a renovação de caras na liderança palestiniana, o primeiro-ministro guarda as cartas para depois, mas sublinha a aposta num maior equilíbrio de género nas listas da Fatah.

“O mais importante é a quota para as mulheres. Um terço dos primeiros três candidatos é uma mulher. O segundo candidato do número 4 ao 9 tem de ser uma mulher. Como não existiram eleições nos últimos 12 anos, vão ver muitas caras novas. No Parlamento vamos ter de certeza mais de 100 caras novas, porque as pessoas estão a envelhecer. Das caras antigas não vejo muita gente interessada em concorrer.”

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